Opinião

O que é a gravação ambiental clandestina para fins eleitorais

Autor

  • Guilherme Barcelos

    é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) mestre em Direito Público pela Unisinos-RS pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.) graduado em Direito pela Urcamp-RS membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF e professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) advogado e sócio-fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília).

1 de agosto de 2022, 9h07

A temática inerente à (i)licitude das gravações ambientais clandestinas no âmago dos processos judiciais eleitorais definitivamente é uma das mais tormentosas que envolvem a Justiça Eleitoral. Desde há muito a controvérsia impera. E, sobre ela, tivemos a oportunidade de escrever aqui e aqui.

Spacca
Já a jurisprudência eleitoral acerca do tema parece ter contribuído para essa tormenta. Notadamente a partir de 2012, o TSE passou a considerar como ilícitas as gravações ambientais clandestinas em matéria eleitoral (cível ou penal), entendimento que foi mantido anos à fio. Em 2016, todavia, houve um abrandamento, sendo que a corte passou a compreender que a gravação realizada em local público não poderia sofrer a pecha da ilicitude e da imprestabilidade. O entendimento novamente foi mantido por certo tempo. Até que, em 2019, em dois casos provenientes de Santa Catarina, houve guinada completa. E a Corte Superior Eleitoral, de uma hora para outra, fez superar aquilo que ela própria vinha decidindo desde 2012.

Há, no interregno, repercussão geral pendente de julgamento perante o STF — RE nº 1.040.515 (Tema 979). Na espécie, votou o relator do RE, ministro Dias Toffoli, para reputar como ilícitas as gravações ambientais clandestinas no bojo da jurisdição eleitoral, salvo se for realizada em local público ou com fins de defesa ou negativa. Pediu vista o ministro Gilmar Mendes. E o julgamento se encontra suspenso.

Voltando à jurisdição eleitoral propriamente dita, em idos de 2021 e 2022 ocorreu novo "turning point", especialmente a partir das investidas do ministro Alexandre de Moraes. O TSE passou a considerar as gravações ambientais clandestinas novamente como provas ilícitas, sobretudo a partir da inovação legislativa introduzida pelo "pacote anticrime". Falo aqui do artigo 8-A da Lei das Interceptações, que consagra as gravações ambientais clandestinas como elemento probatório apenas para fins de defesa ou negativa, salvo quando precedida de decisão judicial autorizativa da prática [1].

Porém, o que é isto, a gravação ambiental clandestina? Há, não raro, alguns equívocos de compreensão acerca do que seria uma gravação ambiental clandestina, sobretudo em âmbito processual eleitoral. Assim sendo, o texto de hoje buscará desenvolver a temática sob a ótica conceitual, visando apresentar, com pretensão de clareza, o que efetivamente seria uma gravação ambiental clandestina, diferenciando-a de outros elementos probatórios, como a interceptação ambiental e a escuta ambiental.

Eletrônica como prova
O emprego de meios eletrônicos para registrar ou documentar algum acontecimento da vida cotidiana, nos tempos hodiernos, é comum e difundido por grande parte da sociedade mundial, afinal, vivemos na era da tecnologia. Com a evolução tecnológica, do mesmo modo em que o avanço é utilizado para situações do cotidiano, o manejo de modernos mecanismos eletrônicos é muito presente em se tratando da produção de provas, estando à disposição não só do aparato estatal, mas também do próprio particular, algo que requer os seus cuidados.

Se a eletrônica não conhece fronteiras, nas legislações de todo o mundo civilizado erigem-se rígidos limites para essa atividade, em prol das universalmente consagradas inviolabilidades do sigilo das comunicações e da privacidade do indivíduo. A tecnologia, como meio hábil à produção probatória, é deveras útil e necessária. Porém, essa utilização, mesmo que por particulares, deve ser limitada, não se podendo transformar o processo judicial em uma espécie de "vale-tudo". Hoje em dia mais ainda.

A utilização de novos instrumentos de comunicação, como aplicativos de mensagens instantâneas, é a realidade cotidiana, havendo, inclusive, dúvidas acerca de qual seria a esfera de proteção do usuário, se o sigilo de dados ou o sigilo das comunicações. Isso, diga-se, a depender da resposta, modificaria a própria ritualística a ser observada para a produção da prova (a quebra do sigilo das comunicações atrai um conjunto de regras mais rígido, inclusive quanto à fundamentação das decisões judiciais eventualmente autorizativa da prática).

O TSE mesmo já possui precedentes no sentido de reconhecer que o acesso aos conteúdos das mensagens trocadas nessas plataformas e mídias sociais reclama prévia autorização judicial (p. ex. Ac.-TSE, de 22.3.2018, no RO nº 122.086). Esse posicionamento, no entanto, tomou como parâmetro o sigilo de dados. Ocorre que a tônica de hoje demanda uma reanálise, penso, de modo que se passe a reconhecer que a problemática gira em torno do sigilo das comunicações, com todos os desdobramentos que isso requer. Conversa para outra oportunidade.

Já o STJ possui considerável cadeia decisória a lidar com o tema. Em casos penais a Corte tem se debruçado sobre a licitude de provas eletrônicas, como aquelas derivadas do acesso ao conteúdo de mensagens trocadas via Whatsaap. Cito uma, p. ex.: "As mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web devem ser consideradas provas ilícitas e, portanto, desentranhadas dos autos" (RHC 99.735, rel. min. Nefi Cordeiro). Esses elementos produzidos a partir de print screen têm surgido cada vez mais no bojo dos processos eleitorais, sendo que tal julgado é farol oportuno a clarear o debate, mesmo na esfera da jurisdição eleitoral.

Outra questão relevante, ainda quanto às provas obtidas via print screen, é o fato de o STJ recentemente ter decidido, no bojo do REsp nº 1.903.273/PR, rel. min. Nancy Andrighi, que a divulgação pública de mensagens trocadas na rede social WhatsApp configura ato ilícito. Segundo o que foi decidido, o sigilo das comunicações visa resguardar o direito à intimidade e à privacidade dos jurisdicionados e, embora o inciso X do artigo 5º da CF trate da inviolabilidade das comunicações telefônicas, tendo em vista o avanço da tecnologia nas últimas décadas e o consequente advento de novas formas de comunicação, aplica-se, por simetria, às conversas mantidas por meio de redes sociais como o WhatsApp. Essa decisão é extremamente importante, notadamente quanto ao reconhecimento do abrigo dessas conversas não pelo sigilo dos dados, apenas, mas, também, pelo sigilo das comunicações.

Pois a controvérsia inerente às gravações ambientais clandestinas, embora não seja nova em si, transita pelo mesmo campo, isto é, da prova eletrônica ou digital e da proteção de direitos fundamentais subjacentes, como a privacidade na perspectiva da reserva do diálogo. Penso, aliás, que a questão vai além da privacidade, denotando discussões outras, como a proteção do direito de não produzir provas contra si, como o fato de o Direito não poder premiar a torpeza e, ainda, como a necessidade de se preservar a cadeia de custódia da prova. Ainda há, entretanto, algumas confusões acerca do que seria uma gravação ambiental clandestina, existindo certa penumbra conceitual, especialmente quando lidamos com elementos outros, como a interceptação ambiental ou mesmo a escuta ambiental. E é isso o que procuraremos esclarecer agora.

Interceptação ambiental e escuta ambiental
A interceptação ambiental é a captação sub-reptícia da conversa entre presentes, efetuada por terceiro, dentro do ambiente onde se encontram os interlocutores, com o desconhecimento destes. Na interceptação ambiental, uma terceira pessoa, sem o consentimento de quaisquer dos interlocutores, acaba por captar a conversação mantida por estes. Noutras palavras, a interceptação ambiental consiste na captação de sons ou imagens de duas ou mais pessoas, feita por uma terceira figura, sem que aquelas saibam que estão sendo monitoradas ou vigiadas.

O artigo 3º da Lei nº 12.850/2013 prevê, a esse respeito, que "Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova: […] II – captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; […]".

Trata-se, por conseguinte, a exemplo da interceptação telefônica stricto sensu, de um instrumento probatório vinculado estritamente à investigação criminal ou a persecução processual penal. Além disso, trata-se de algo vinculado exclusivamente a persecução dos ilícitos penais previstos na própria legislação de regência e, obviamente, submetido à prévia decisão autorizativa da prática, com o que, verificando-se, por exemplo, sua prática na seara cível eleitoral, restará, pois, maculado tal elemento probatório pelo vício da ilicitude, a exemplo da interceptação telefônica e, no nosso particular entender, da escuta telefônica, além da escuta de natureza ambiente, como veremos a seguir.

Já a escuta ambiental se caracteriza como sendo a captação de conversa entre presentes, realizada por um terceiro, com o conhecimento de um dos interlocutores, em detrimento de outro(s). A figura da escuta ambiental guarda afinidade terminológica com a modalidade de interceptação ambiental, sujeitando-se, aliás, à mesma disciplina destas. Em que pese à disciplina ser a mesma, como se vê, a diferença que há para com a figura da interceptação ambiental está, justamente, no conhecimento que um dos interlocutores possui acerca da captação da conversa, tudo em detrimento do interlocutor diverso ou dos demais interlocutores.

Tais elementos também são referidos e regulamentados pelo artigo 8-A da Lei das Interceptações, mas não se confundem com a gravação ambiental clandestina.

Gravação clandestina propriamente dita
A gravação clandestina propriamente dita é aquela realizada por um interlocutor, sem o conhecimento do interlocutor diverso, consistente no registro de conversa telefônica mantida entre ambos. Trata-se, na verdade, de uma gravação telefônica clandestina, em que um dos interlocutores registra o diálogo mantido, sem o conhecimento do interlocutor diverso.

O tema das gravações telefônicas é polêmico. A princípio não seria vedado registrar o teor de falatório telefônico próprio. Contudo, a respectiva divulgação poderia ser vedada, especificamente na hipótese de não haver justa causa hábil a tanto e, sobretudo, se pretender, de antemão, a produção de uma prova a ser utilizada para a acusação de outrem (uma espécie de "pegadinha" probatório- -acusatória). E o próprio STJ, como demonstrado acima, vem evoluindo no sentido de assentar limites a essa atividade probatória particular, o que ganha relevo na esfera judicial eleitoral, afinal, a prática estaria imersa em um contexto de disputas eleitorais, paixões políticas e afins. O cidadão, imerso direta ou indiretamente em disputas político-eleitorais, não pode se achar uma espécie de "xerife", eis a questão.

Ao final e ao cabo: o que é isto, a gravação ambiental clandestina?
Gravações ambientais são aquelas consistentes no registro de conversa entre presentes, por meio de áudio ou audiovisual, realizado por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro. Trata-se de gravação de conversa própria, promovida sem o conhecimento do interlocutor diverso, e de forma sub-reptícia.

A diferença substancial aqui é a inexistência do "fator terceiro", pois é o próprio interlocutor que registra eventual diálogo, tudo com o absoluto desconhecimento do outro. Por essa razão, ou seja, pela inexistência da figura da terceira pessoa a captar o conteúdo da conversação, seja o Estado ou um particular, a gravação ambiental (clandestina) não pode ser enquadrada no conceito de interceptação ou escuta, mesmo ambientais.

O que se tem atualmente, a respeito do tema, é uma evolução no ordenamento jurídico a disciplinar a temática. E eu falo aqui do artigo 8-A da Lei das Interceptações. E, ainda que não estejamos falando aqui acerca de processo penal em sentido estrito, não há como olvidar que os processos, mesmos os cíveis-eleitorais, são processos eminentemente acusatórios, lidando, ademais, com o cerceio potencial de direitos fundamentais, como o exercício de um mandato eletivo outorgado pelo voto popular e o direito de elegibilidade.

A redação do atual artigo 8-A da Lei das Interceptações passou a referir que "Para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizada pelo juiz, a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos…". Considerando, então, que a gravação ambiental clandestina denota a captação destes sinais, notadamente ópticos e acústicos, áudio e/ou áudio-vídeo mesmo, é que a disciplina legal abrange a prática e a prática a ela se encontra submetida, inclusive quanto à reserva de jurisdição. Ou seja: para fins acusatórios, como sói acontecer no bojo da jurisdição eleitoral, a gravação ambiental se encontra submetida à reserva de jurisdição. Logo, a gravação ambiental clandestina, considerada como tal aquela formulada por um interlocutor sem o conhecimento do outro, produzida de maneira premeditada e com fins acusatórios, sem autorização judicial, será prova ilícita.

E eu nem me refiro ao inciso II do artigo 8-A naquilo que se refere à limitação da possibilidade da produção da prova a crimes com pena superior a quatro anos. Isso porque a questão nos parece muito mais direcionada aqui às interceptações ambientais ou às escutas ambientais, a exemplo do que ocorre na precitada Lei do Crime Organizado.

A gravação ambiental clandestina, a seu turno, vai encontrar disciplina especifica no §4º do mesmo dispositivo legal, segundo o qual "A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação". Vale dizer: a gravação ambiental clandestina, considerada como tal aquela realizada por um interlocutor sem o conhecimento do outro, é prova a ser utilizada como meio de defesa, salvo se autorizada judicialmente, observados, no mais, os requisitos inerentes à fundamentação da decisão, como a própria indispensabilidade da medida, considerada a inexistência de produção da prova a partir de meios menos gravosos.

E, finalmente, por que a redação do artigo 8-A seria aplicável à seara eleitoral (cível ou penal eleitoral)? Ora, os processos eleitorais têm feito acusatória ou, se assim se quiser, sancionatória. E poderia, tal redação, ser aplicada aos processos em curso? Sim, deveria. E deveria, digo, simplesmente porque os processos eleitorais são processos de cunho sancionatório, restritivo de direitos fundamentais, de modo que a redação do artigo 8-A, mesmo para os processos em curso, deve ser aplicada, considerada a retroatividade da lei mais benéfica ao réu, ao demandado, ao representado, ao investigado, ao impugnado, enfim, àqueles que estiverem respondendo por alguma ação, sobretudo quando for de cunho desconstitutivo da vontade popular.

 


[1] Os casos do TSE, por sua vez, são os seguintes: REspe n° 0600530-94.2020.6.26.0171, rel. min. Alexandre de Moraes, Agravo de Instrumento nº 29.364, acórdão, relator(a) min. Alexandre de Moraes, publicação: DJE – Diário da justiça eletrônica, Tomo 206, data 9/11/2021 e RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 40.483, acórdão, relator(a) min. Mauro Campbell Marques, publicação: DJE — Diário da justiça eletrônica, Tomo 221, data 30/11/2021).

Autores

  • Brave

    é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF), mestre em Direito Público pela Unisinos-RS, pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.), graduado em Direito pela Urcamp-RS, membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF e professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), advogado e sócio-fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!