Opinião

É juridicamente viável acordo coletivo em ação direta de inconstitucionalidade?

Autor

  • Fabiano Cotta de Mello

    é advogado professor universitário e mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Foi assessor técnico jurídico do TJ-RS e do TJ-MT.

1 de agosto de 2022, 17h19

Por motivo de segurança jurídica e de excepcional interesse financeiro e social, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso (AL-MT) editou a EC 98/2021 acrescentando o artigo 140-G à Constituição do estado de Mato Grosso, garantindo aos servidores estaduais da administração direta e indireta, de todos os poderes, salvo os exclusivamente comissionados, que foram admitidos sem concurso público de provas e títulos, mas que recolheram contribuição previdenciária para o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) durante 25 anos continuados ou interpolados, o direito de se manterem aposentados ou de se aposentarem nesse regime, mantidos os respectivos deveres de contribuição.

Ainda em 2021, o Procurador-Geral de Justiça ajuizou perante o TJ-MT a ADI 1015626-30.2021.8.11.0000, sob o argumento de que a reforma constitucional viola os artigos 10, 129, II, e 140, parágrafo único, da Cemt, bem como a regra-princípio constitucional do concurso público.

Registro que a EC 98/2021 visa resolver um grave problema jurídico, social e financeiro, pois regulariza, ainda que de forma excepcional, a situação — criada pela própria Administração Pública estadual — de não inclusão dos servidores estabilizados extraordinariamente pelo artigo 19 do ADCT no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), uma vez que, nos termos do artigo 40 da Constituição Federal, o RPPS é restrito aos servidores efetivos.

O STF, analisando lei do estado de Roraima, afirmou em data recente a inconstitucionalidade da vinculação ao RPPS dos servidores estabilizados, uma vez que configura ampliação indevida do rol previsto no caput do artigo 40 da Constituição Federal, que é norma constitucional de absorção obrigatória pela legislação infraconstitucional (ADI 5.111/RR, Pleno do STF, relator ministro Dias Toffoli, j. 20.09.2018).  

Todavia, foi a  inércia da Administração Pública que fez com que milhares de servidores estaduais, ao arrepio da lei, contribuíssem para o RPPS de Mato Grosso e, chegada a hora da aposentadoria e, alguns, até já aposentados, foram surpreendidos com ações civis públicas ajuizadas pelo MP.  

Logo, o problema é concreto e grave. Pois, se de um lado a Constituição Federal veda categoricamente o tratamento igualitário entre servidores efetivos e servidores estabilizados, inclusive para fins previdenciários; de outro, a Administração, na prática, durante décadas, não promoveu esse tratamento assimétrico, tendo os servidores estabilizados contribuído para o RPPS.  

Nesse contexto, durante o trâmite da ADI 1015626-30.2021.8.11.0000, em audiência de conciliação, as partes (MP, governo do estado e AL-MT) firmaram um acordo, com vistas a preservar a permanência dos servidores com estabilidade extraordinária no RPPS, mediante o preenchimento de determinadas condições.

O acordo foi homologado judicialmente pela relatora, invocando o artigo  artigo 51, I, do RITJMT, e a ADI foi julgada parcialmente extinta, com resolução de mérito, nos termos do artigo 487 do CPC, prosseguindo seu trâmite tão-somente acerca da inconstitucionalidade, ou não, de uma expressão contida no artigo 140-G da Cemt.

Embora a homologação do acordo tenha sido festejada, e com razão, como solução justa para um grave problema social, do ponto de vista do controle abstrato de constitucionalidade, talvez essa extinção anômala da ADI, mesmo que parcial, ainda não encontre sustentação na doutrina e jurisprudência constitucional brasileira. O que não impede que o TJ-MT inove e ocupe posição de vanguarda no cenário nacional.  

Todavia, até aqui, a jurisprudência do STF é clara no sentido de que o autor de processos objetivos de controle de constitucionalidade, como ADI, ADC e ADPF, não pode desistir do pleito após protocolado.

A partir do ajuizamento da ação passa a valer o princípio da indisponibilidade do interesse público, independentemente dos interesses das partes envolvidas.

Isso porque o legitimado para a ação não é o titular da pretensão material. Logo, não pode desistir de direito que não lhe pertence.

A desistência é incompatível com o sistema de controle abstrato de constitucionalidade, sendo vedada taxativamente pela Lei 9.868/1999, ao dispor em seu artigo 5º que, "Proposta a ação direta, não se admitirá desistência" (ADI 164/DF, ADI 387-MC/RO, ADI 3.201/MA, ADI 2.230-MC/MT).

Modo igual, também não é possível a desistência de pedido de medida cautelar (QO na ADI 2.188-5/RJ, relator ministro Néri da Silveira, DJ: 09.03.2001).

Já se admitiu, todavia, a desistência de recurso de embargos declaratórios dentro de processo objetivo de controle de constitucionalidade (ADPF 46).

Em recente precedente, o STF decidiu ser inviável se restringir o objeto da ADI por emenda à inicial, uma vez que a pretensão do autor equivaleria à desistência parcial da ação (ADI 4507/DF, relatora ministra Carmem Lúcia, j. 05.08.2020).

Entendo que idêntica lógica aplica-se quando o objeto da ADI for restringido ou esvaziado devido a um acordo homologado judicialmente nos autos da ação direta. Pois também haveria efeito equivalente à desistência da ação.

Também não parece invocável a alegação de que a homologação do  acordo autorizaria a extinção anômala do processo de controle normativo abstrato por perda de seu objeto, uma vez que essa só ocorre 1) com a revogação pura e simples do ato impugnado ou 2) com o exaurimento de sua eficácia (ADI nº 2859/DF, ADI nº 4365/DF, ADI nº 1.979/SC-MC e ADI nº 885/DF).

De outro lado, não desconheço que na ADPF 165 ACORDO/DF, o STF admitiu acordo coletivo que, na prática, importou no esvaziamento do controle de constitucionalidade, com extinção do processo nos termos do artigo 487, III, do CPC. Todavia, como salientado pelo ministro Marco Aurélio naquela oportunidade, diversamente do que ocorre na ADI e na ADC, não há vedação legal à disponibilidade do objeto de controle na  ADPF (Lei 9.882/1999).

O julgamento da ADPF 165 ACORDO/DF foi adjetivado como "marco histórico do processo coletivo brasileiro". Pois o STF entendeu viável a realização de acordo coletivo num processo de índole objetiva.

Esclarece-se que processo objetivo é aquele em que não há conflito intersubjetivo, como ocorre na ADPF, na ADC e na ADI.

A questão é importante porque não há previsão legal específica para que avenças coletivas sejam firmadas por legitimados coletivos privados, no caso concreto, por associações que representavam poupadores: a ADPF tratava das perdas com expurgos inflacionários dos planos Bresser, Verão e Collor 2. A evidenciar que o sistema processual coletivo brasileiro padece de deficiências que devem ser superadas pela jurisprudência.

Ademais, esse precedente do STF passou a estabelecer os parâmetros para a homologação de acordos coletivos por todos os tribunais e juízes do país.

Como já referido, embora a título de obter dictum, restou consignado no acórdão, na manifestação do ministro Marco Aurélio, que, embora seja cabível o acordo coletivo em sede de ADPF, não seria viável em ADI nem em ADC, pois processos indisponíveis: "Pudesse transportar para a arguição de descumprimento de preceito fundamental as regras relativas à ação direta de inconstitucionalidade e à ação declaratória de constitucionalidade, isso sob o ângulo da indisponibilidade, teria obstáculo à homologação do acordo".

Essa ponderação merece análise pelo TJ-MT no julgamento da já referida  ADI 1015626-30.2021.8.11.0000.

Embora louvável a intenção do referido acordo coletivo — afinada, inclusive, com o CPC/2015 que: 1) determinou ao Estado a promoção, sempre que possível, da solução consensual dos conflitos (artigo 3º, §2º), 2) previu a possibilidade de negócios jurídicos processuais e outras convenções entres as partes litigantes (artigos 190, 191, 200, 373, §§3º e 4º) e 3) determinou a criação de Câmaras de Mediação e Conciliação para solução de conflitos no âmbito da Administração Pública (artigo 174) —, há que se ponderar se:

1º) É juridicamente viável acordo coletivo em ADI?

2º) Com a homologação do acordo coletivo o TJMT solucionou a questão jurídica: inconstitucionalidade do art. 140-G da Constituição Estadual?  

3º) O relator do processo tem poderes para, por decisão singular, homologar o acordo coletivo ou deve submeter o pleito ao Órgão Especial do TJMT por tratar-se de uma ADI cuja regra, inclusive para deferimento de liminar, é a observância do princípio da colegialidade das decisões dos Tribunais?

4º) O direito transacionado é disponível (direito patrimonial de caráter privado  artigo 841 do CC), como ocorreu na homologação do acordo coletivo pelo STF na ADPF 165 ACORDO/DF?    

5º) Os contratantes são titulares do direito do qual dispuseram no acordo?

6º) Foi preservado o interesse da coletividade, com ampla publicidade do acordo firmado, com aplicação analógica do artigo 94 do CDC?

7º) A OAB foi cientificada da existência da ação e chamada a participar das negociações?

8º) O acordo coletivo homologado em ADI tem poder para rescindir coisa julgada já formada em ações individuais e/ou em ações civis públicas?   

Certamente, essas relevantes questões serão abordadas quando do prosseguimento do julgamento da ADI 1015626-30.2021.8.11.0000, cuja conclusão foi adiada na sessão do dia 14.07.2022 devido aos pedidos de vista formulados por  três membros do Órgão Especial.  

À solução da ADI, deve-se avaliar a possibilidade de um juízo de ponderação entre os princípios constitucionais em conflito, fazendo preponderar a segurança jurídica e a dignidade da pessoa humana, com manutenção no RPPS dos servidores estabilizados já aposentados ou que já tenham preenchido dos requisitos para aposentadoria, dadas as peculiaridades do caso concreto, inclusive com excepcional interesse financeiro e social reconhecidos expressamente pelo constituinte reformador no texto da norma impugnada.

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