Opinião

Normas Jurídicas: razões de segunda ordem

Autor

  • Victória Mariano Gomes

    é pós-graduanda em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e mestranda em Direito pela Universidade Nacional Lomas de Zamora (UNLZ).

30 de abril de 2022, 15h25

Existe uma razão indispensável que confere autoridade à norma jurídica: ordenação da sociedade. É no procedimento pelo qual as normas realizam essa ordenação que o Estado de Direito se materializa e onde encontramos o esteio da administração das regras em meio a sociedade e a inevitável realidade da desarmonia de opiniões.

Joseph Raz, em exploração ao conceito de Estado de Direito [1], evidencia o papel das chamadas "razões de primeira ordem", incumbidas pela integração das perspectivas individuais do homem, aquelas que personalizam o indivíduo; e o papel das "razões de segunda ordem", atinentes às próprias razões, prevalecentes na tomada de uma decisão e alheias aos juízos de valores. Raz as diferencia, sobretudo, para demonstrar o melhor desempenho das deliberações judiciais quando observadas tais diferenciações.

Alimentado pela razão de primeira ordem, determinado agente possivelmente não tomaria a melhor decisão, comparada a observância da razão de segunda ordem, defende Raz. Isso porque, o implacável questionamento existente na tomada de um veredito demanda, invariavelmente, tempo e desgaste, quando, em contrapartida, com razões preestabelecidas legitimamente  razões de segunda ordem  o caminho pode ser mais categórico, hábil.

Nesse sentido, as "razões de segunda ordem" configuram, especialmente, disposições normativas que, estabelecidas, tornam a rediscussão política e moral por parte do judiciário, desnecessária [2]. Essa é a legitimação da coordenação realizada pela norma jurídica que, apreendida com essa autoridade, permite a consolidação de uma sistemática estatal que reconheça a pluralidade existente entre as condutas humanas. Ao deixar as pré-compreensões morais nas "razões de primeira ordem", as normas ganham uma configuração de base de conduta que traz previsibilidade e segurança.

Mas, há um cuidado importante. Nesse contexto, invariavelmente lidamos com três peças chaves fundamentais: normas, Estado de Direito e interpretação. As duas primeiras são  instantaneamente  identificáveis porquanto tratamos diretamente delas, a segunda, no entanto, merece alguns parágrafos diagnósticos; a começar pelo fato de que, no que se refere à jurisdição, a interpretação esbarra na criatividade sobre o processo de concretização de normas que – também esbarra – no moralismo jurídico [3].

Sobre essa linha tênue, a ideia de Raz nos repreende essencialmente sobre duas coisas: 1) as razões de segunda ordem preconizam limites normativos definidos pelo direito positivo e impostos pela Constituição Federal e 2) embora a interpretação, inerente à atividade jurisdicional, incorpore a noção de percepção do sistema jurídico considerando toda a sua complexidade, diretrizes ontológicas que impulsionam o idealismo axiológico não pertencem às razões de segunda ordem.

Existe uma intimidade entre a interpretação e a discricionariedade, na jurisdição. Sem dirimir as faces do que conhecemos como atividade discricionária, sabemos que se trata da liberdade de ação nos limites do direito, seja na esfera judicial ou legislativa [4], sabemos, portanto, que lidamos com o interposto de duas margens, quais sejam, a liberdade mínima relacionada a textos mais determinados e precisos, e a liberdade máxima relacionada àqueles que requerem o preenchimento de lacunas. Entre uma e outra, o exercício interpretativo do jurisdicionado que imbuído de razões de primeira ordem, pode ou não romper com os parâmetros normativos [5].

Contudo, perceba que não existe a prevalência das primeiras razões, nem mesmo essas alimentando as impressões individuais do magistrado, quando existe a realidade de razões de segunda ordem. A coordenação da pluralidade, por intermédio dessas razões, é a impulsionadora da preservação autoritativa do direito. O que Raz quer nos dizer é exatamente o que as razões de segunda ordem são capazes de nos oferecer: a autoridade do direito (ou a aspiração dela) se liga intrinsecamente ao chamado à obediência que a norma jurídica impõe.

Ao contrário do que afirmam os argumentos que apontam uma determinada hegemonia epistêmica dos jurisdicionados sobre discussões morais e políticas, é a obediência à normatividade que revela, inclusive, a nobreza do ofício de um magistrado. Para além de se distanciar dos limites do direito, o jurisdicionado que idealiza uma transformação social por meio das atribuições que competem o seu cargo, corre o risco de realizar exatamente o oposto desequilibrando e sobrecarregando o sistema. É justamente essa desarmonia que as normas, como razões de segunda ordem, empreendidas para coordenar, pretendem evitar.

Não podemos ignorar, no entanto, que, ainda que a performance normativa do Estado seja, na melhor das hipóteses, a solução democrática mais aconselhável e, em substantiva parte, eficiente, assertiva e clara, a maneira como a instituição pública lida com debates, gerados pelos desacordos acerca de sua interpretação e aplicação, é tão importante quanto a solidificação da ordem normativa. A explanação dos variados pontos de vista de uma sociedade e a sua condução com dignidade pelo ordenamento, considerando suas diferenças morais e políticas, é crucial para o Estado de Direito.

A preservação autoritativa  moralmente legítima pela sistemática democrática do processo majoritário  e a proteção da liberdade dos indivíduos diante desse cenário, revelam, mais uma vez, a pressuposição de que sociedades bem organizadas necessitam da observância do papel realizado pelas segundas razões.

Referências
GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. 1ª Ed. 2014. São Paulo.
MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado constitucional. 2012, São Paulo.
RAMOS, Elival Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. 2ª Ed. 2015. São Paulo.
TORRANO, Bruno. Democracia e Respeito à Lei. Entre Positivismo Jurídico, Pós-Positivismo e Pragmatismo. 2ª Ed. 2019. Belo Horizonte.

[1] Ideia apresentada e discorrida em: GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito  1ª edição. Introdução. Item 2.

[2] Para ilustrar materialmente a aplicação das segundas razões, podemos observar um trecho, de Leonardo Martins, sobre a ponderação (realizada pelo legislativo) entre a liberdade individual e a segurança pública: "Por mais que essa rígida divisão seja difícil de ser traçada, sendo sua possibilidade até́ mesmo contestada por muitos (inclusive juristas), podem ser ressaltadas diferenças metodológicas e de fundamentação constitucional bastante claras. Com efeito, enquanto o primeiro momento, isto é, o momento da decisão política, é marcado por uma resposta especificamente política aos problemas concretos envolvendo a fixação de regras que nortearão a vida em sociedade, atividade esta que implica uma ponderação axiológica dos bens e interesses envolvidos, o segundo momento, qual seja, do controle jurídico, é pautado por normas constitucionais que margeiam, ou seja, dão pauta às disputas e transformações políticas em face da liberdade individual".

[3] Repleto de partidários na doutrina brasileira, com o condão de recusa aos limites impostos pelo legislador, transfere a responsabilidade de concretização das normas constitucionais do plano normativo para o plano axiológico idealista. Isso cria uma interpretação progressista da Constituição que, incorpora normas com grandes campos de serventia cujo controle objetivo resta-se prejudicado. Cada vez mais, os princípios constitucionais têm chamado a atenção e sua distinção qualitativa das regras, como forma de empregar a eles maior possibilidade de abertura.

[4] […] "No tocante à atividade legislativa, certamente contribuiu para isso a visão do positivismo liberal, do século XIX, que situava a lei nos domínios da política, separados rigorosamente daqueles do direito, em que pontificava a função jurisdicional. A eficácia reduzida do controle de constitucionalidade nos Estados Unidos naquele período e a sua inexistência em solo europeu tornavam a lei incontrolável, ou pouco controlável, em termos jurídicos, o que reforçava o seu caráter político. De tudo isso decorria a ampla liberdade de ação do legislador, não havendo espaço para construções doutrinárias sobre a discricionariedade, que pressupõe sim liberdade de atuação, mas dentro de um marco normativo.

No que concerne ao Poder Judiciário, o positivismo oitocentista negara-lhe toda e qualquer discricionariedade no exercício da função que lhe é própria, reduzida ao automatismo da subsunção meramente lógico-formal. A revisão kelseniana da teorização clássica sobre o binômio interpretação-aplicação trouxe à tona o tema da discricionariedade judicial" […].  Ramos, Elival S. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2ª edição.

[5] Atenção para esse aspecto cognitivo: pressuposto para a materialização do ativismo judicial. O juiz ativista abandona o direito para o instrumentalismo e credita no judiciário o serviço de atendimento aos anseios da sociedade.

Autores

  • é pós-graduanda em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e mestranda em Direito pela Universidade Nacional Lomas de Zamora (UNLZ).

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