Diário de Classe

A Escola de Cambridge e a História no Direito

Autor

  • Victor Bianchini Rebelo

    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio Sinos (Unisinos-RS) bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

30 de abril de 2022, 8h00

Em uma conferência para o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, no ano de 2003, Ernildo Stein e Lenio Streck debatiam sobre como a didática da filosofia e do direito não poderiam estar à parte uma da outra. Que não haveria possibilidade de se discutir o Direito separadamente da filosofia. Por isso o descabimento do nome “Filosofia do Direito”, como é tradicionalmente denominada a disciplina que estuda o entendimento da natureza e do contexto do fenômeno jurídico.[1]

Para Streck (e Stein), o Direito não está imune às quebras de paradigmas filosóficos, por isso uma denominação mais adequada ao estudo filosófico do fenômeno jurídico seria compreendê-lo a partir da filosofia, como uma “filosofia no direito”, e não do direito. Evidentemente que esse raciocínio só faz sentido compreendendo o direito a partir de um paradigma filosófico, algo que Streck faz ao explicitar que constrói sua teoria jurídica a partir do “método” fenomenológico-hermenêutico, via de formação do paradigma hermenêutico, em oposição à filosofia da consciência da metafísica moderna.[2]

Nesta breve coluna, à guisa de ensaio, proponho a tese de que é possível — sem cair em sincretismos metodológicos — que a mesma afirmação de que a filosofia é uma parte integral[3] da compreensão do fenômeno jurídico seja equivalente quando se trata da história.

Dessa forma, não se poderia falar de uma “História do Direito”. Assim como a filosofia, a história não pode ser vista como um ornamento ao Direito, ou mesmo como uma simples maneira de contextualizar fatos jurídicos postos socialmente (aqui esboçando o que poderia ser um reducionismo positivista ou até sociológico da história em relação ao direito). Sendo assim, poder-se-ia falar que a importância da historicidade para a compreensão do fenômeno jurídico carece de uma denominação e de um cuidado equivalentes ao que Streck e Stein se referem em relação à filosofia: poderia se falar então de uma História no Direito?

Reconhecendo a importância que o linguistic turn teve para a filosofia, importa enfatizar que a viragem linguística surtiu efeito para todas as humanidades, inclusive a historiografia. Nesse sentido, foi bastante perceptível como a filosofia da linguagem influenciou autores da filosofia da história, tendo trilhado um caminho de impacto que pode ser notado na historiografia pós-viragem linguística. Falo aqui, especialmente, do pensamento de autores como Ludwig Wittgenstein e John L. Austin, que, cada um dentro de seu contexto paradigmático, contribuiu para esse período de mudança na agenda filosófica, onde à linguagem foi dada a devida importância, como condição de possibilidade, trabalhos que posteriormente avançaram, a partir da fenomenologia e filosofia hermenêutica heideggeriana e a hermenêutica filosófica gadameriana.

Esse giro a favor de uma filosofia da linguagem — e em oposição a uma filosofia da consciência —, teve impactos profundos na filosofia da história, e posteriormente na historiografia. Talvez um dos primeiros autores em que se pode notar essa influência seja o filósofo R. G. Collingwood,[4] britânico que, por sua obra e pensamento, foi um grande precursor daquilo que viria a se tornar as bases do contextualismo linguístico, formulado e desenvolvido em continuidade por J. G. A. Pocock, Quentin Skinner, John Dunn, entre outros.

O que mais importa, no entanto, a este ensaio é o caráter holístico da filosofia de Collingwood e seus fundamentos na filosofia da linguagem em conexão com a filosofia da história, algo que alguns comentadores do autor atribuem a um anti-hegelianismo, que podemos estender no campo da historiografia jurídica a uma negação do historicismo sob as lentes da metafísica hegeliana, como se percebe na Escola Histórica.[5]

Daí a importância de diferenciar historicidade de historicismo. Por vezes se veem críticas filosóficas ao que se teria por exageros e reducionismos do historicismo.[6] Com o cuidado de uma historiografia inserida em um contexto de intersubjetividade, calcada no paradigma posterior à virada linguística (hermenêutico), creio que se possa deixar de lado esse “medo” atribuído aos historiadores de que eles normalmente reduzem “tudo à história”. Assim, defendo que história do pensamento político, especialmente aquela que subscreve, parcial ou totalmente, o contextualismo linguístico, seja uma metodologia adequada para se interpretar a história no direito,[7] sem cair em um historicismo reducionista.

O que importa defender aqui é que o contextualismo linguístico, defendido e desenvolvido especialmente por Skinner no campo metodológico, não só é compatível com a viragem linguística, como provavelmente não teria sido desenvolvido sem a sua ocorrência.

Acredito que essa metodologia foi elaborada com o intuito principal de contemplar algumas inquietações que os historiadores Quentin Skinner, John Pocock e John Dunn tinham por conta do que a historiografia convencional britânica da época defendia para o estudo da história das ideias. Assim, a partir da influência das obras de R. G. Collingwood, Ludwig Wittgenstein, John L. Austin e Peter Laslett, os jovens Pocock, Dunn e Skinner esboçaram as linhas gerais de uma verdadeira revolução para historiografia das ideias, que teria a linguagem como base para a interpretação histórica.

A reconstituição de um contexto linguístico seria, assim, relevante no limite em que auxilia a recuperação da intenção do a(u)tor histórico ao efetuar sua ação histórica — o texto. Se escrever seria, com John L. Austin, “fazer coisas com palavras”,[8] então o mister do historiador seria, para os historiadores de Cambridge, reconstruir e revelar as ações que o autor estava fazendo quando produziu seu texto.[9]

Mas como busco aqui apresentar o contextualismo linguístico como metodologia adequada para uma historiografia jurídica, recorro ao autor que a meu ver melhor desenvolveu seus argumentos em favor desse método historiográfico: Quentin Skinner. Mesmo porque, como aponta Ricardo Silva, entre os membros da Escola de Cambridge, foi ele o mais criticado e é até hoje o mais famoso entre apoiadores e oponentes teóricos.[10]

A defesa que faço do contextualismo linguístico de Skinner se dá na crítica que o historiador faz daquilo que seria a abordagem historiográfica “clássica” na época. No artigo Meaning and Understanding in the History of Ideas (1969), Skinner critica o “textualismo” presente na historiografia convencional. Na opinião do autor, essa abordagem canônica dos textos históricos careceria de historicidade, pois teria como pressuposto que o texto seria “autônomo” em relação ao contexto onde foi desenvolvido. Isso quer dizer que, quando um determinado historiador clássico atribui um elemento “atemporal” a determinado cânone do pensamento histórico, o receptor acaba descobrindo muito mais sobre o historiador do que sobre a história propriamente dita. Isso se dá pelo subjetivismo presente nessas escolhas do que seriam textos “canônicos”.[11]

Assim, com a exegese textualista, criar-se-iam o que Skinner chama de “mitologias” — e não historicidade — nas análises do pensamento político. O autor subdivide quatro tipos de mitologias em que os historiadores convencionais incorreriam:[12]

(i) a mitologia da doutrina, onde autores incorreriam no erro de tentar enquadrar pensadores e ideias em supostas doutrinas construídas a posteriori, não raramente pelo próprio historiador, ou outros historiadores a ele precedentes ou contemporâneos;

(ii) mitologia da coerência, onde determinados historiadores costumam fixar esquemas lógico-formais fechados, nos quais um determinado pensamento do autor estudado se adéqua coerentemente a uma corrente de ideias, ignorando contradições comuns, que são ricas fontes históricas;[13]

(iii) mitologia da prolepse: confusão entre os significados de enunciados; seria algo como o famoso (e questionável adágio): “o passado só se compreende com o distanciamento histórico do presente”, confundindo o sentido do enunciado entre o autor e o historiador; e a

(iv) mitologia do paroquialismo: costume dos historiadores em “atualizar” o universo histórico, onde determinado pensamento ou autor está inserido, com seu próprio universo, causando uma falsa semelhança entre universos culturais muito distintos.

Acredito que essas mitologias denunciadas por Skinner também podem ser observadas dentro do universo jurídico, sendo a historiografia um campo ainda incipiente e pouco explorado dentro do direito, com honrabilíssimas exceções.[14] Utilizo, portanto, esse ensaio como um pontapé epistêmico, a fim de introduzir o debate a quem interessar possa.

Por conta da influência que os historiadores de Cambridge tiveram da viragem linguística e dos filósofos que fizeram parte dela — Wittgenstein, Austin, Collingwood, entre outros —, meu argumento central é que o contextualismo linguístico provavelmente não teria sido sequer desenvolvido caso não houvesse essa mudança paradigmática que afetou todas as humanidades a partir da filosofia da linguagem. Lembremos que pouco antes de os primeiros artigos críticos à metodologia histórica convencional de Dunn, Pocock e Skinner serem lançados, Gadamer havia publicado sua maior contribuição para essa linhagem filosófica, sua obra Verdade e Método (1960), livro esse que também aborda questões caras à historiografia, que aproximam a hermenêutica da historicidade.  

O leitor e a leitora devem levar em consideração que essa é apenas uma introdução aos primeiros passos dados por esse grupo de historiadores e que eles, comumente chamados conjuntamente de Escola de Cambridge, por vezes discordaram em suas metodologias ao longo de sua trajetória acadêmica. Mas esse é um tema para outro momento, uma vez que requer mais tempo e espaço para reflexão. Assim, espero que em breve seja possível aprofundar a discussão e demonstrar como podemos observar a criação dessas “mitologias” no âmbito do Direito.[15]

Fica o convite para uma próxima leitura neste Diário, onde poderemos refletir melhor sobre como a história do pensamento pode nos ajudar a desmi(s)tificar narrativas criadas e de há muito assentadas no senso comum teórico dos juristas.


[1] MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[2] Para uma compreensão melhor dos temas trabalhados neste parágrafo introdutório, cf. STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico. São Paulo: RT, 2013; e STEIN, Ernildo. Introdução ao método fenomenológico Heideggeriano. In: HEIDEGGER, Martin. Conferencias e escritos filosóficos. Sobre a essência do fundamento. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[3] Gerald Postema figura entre os principais defensores da ideia de que a filosofia do (ou no) Direito seja uma parte integral do empreendimento filosófico como um todo. Sobre esse aspecto da obra de Postema, ver uma excelente coletânea de ensaios em BUSTAMANTE, Thomas da Rosa; DECAT, Thiago Lopes (ed.). Philosophy of Law as an Integral Part of Philosophy: Essays on the Jurisprudence of Gerald J Postema. Londres: Hart Publishing, 2020.

[4] Ver COLLINGWOOD, R. G. The idea of History. Nova York: Oxford University Press, 1956.

[5] Conforme fala Maurizio Ferraris, a Escola Histórica nasce da vontade de romper com a filosofia da história de Hegel. No Direito, a Escola Histórica veio a ser representada principalmente pelo pensamento de Carl Von Savigny (1779-1961). Com o linguistic turn, e posteriormente com a hermenêutica filosófica, podemos afirmar que a filosofia da história poderá ser desenvolvida estendendo essa oposição a Hegel também aos historicistas, a partir do paradigma fenomenológico-hermenêutico, em face das metafísicas clássicas e modernas. Cf. FERRARIS, Maurizio. Storia dell’ermeneutica. Milão: Bompiani, 2010.

[6] Critica essa feita em obras como POPPER, Karl. The Poverty of Historicism. Londres: Routledge, 1957.

[7] Não esqueçamos aqui de outras contribuições que também podem ser tidas como legatárias do “pós-viragem linguística”, entre elas as obras de autores vinculados ao culturalismo jurídico, entre os quais pode-se citar os indispensáveis Paolo Grossi e António Manuel Hespanha.

[8] AUSTIN, John L. How to Do Things with Words. Oxford: Clarendon Press, 1962.

[9] DUNN, John. The Identity of the History of Ideas, Philosophy, vol. XLIII, n. 134, p. 85-104, 1968.

[10] Cf. SILVA, Ricardo. O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o debate metodológico contemporâneo. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, n. 2, p. 299-335, 2010, passim.

[11] SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, v. 8, n. 3, p. 3-53, 1969.

[12] Ibid., p. 7-28.

[13] Um dos livros mais recentes de Skinner, Hobbes and Republican Liberty (2008) aborda essa problemática, ainda que indiretamente, em relação a muitos comentadores de Hobbes que veem seu pensamento como fixo. Skinner vai de encontro a essa tese.

[14] Por todos, cito Ricardo Marcelo Fonseca, titular de história do direito e hoje reitor da Universidade Federal do Paraná. Cf. FONSECA, Ricardo Marcelo (coord.). Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2009.

[15] Não podemos olvidar da obra de Paolo Grossi, que também aborda o tema sob o olhar de outra perspectiva historiográfica, o culturalismo jurídico.  Cf. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2. ed., rev. e atual. Tradução de Arno Dal Ri Jr. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2007.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!