Opinião

Estabelecimento e ponto comercial: a propósito da MP 1.085/2021

Autor

  • Marcelo Lauar Leite

    é advogado doutor em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. e professor adjunto da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa).

29 de abril de 2022, 16h13

O direito brasileiro reconhece o estabelecimento como todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária [artigo 1.142/CC, caput]. Essa universalidade contempla tanto elementos corpóreos, sejam móveis ou imóveis, quanto os incorpóreos, verbi gratia, as marcas, patentes, o desenho industrial, o nome empresarial, o nome fantasia, a insígnia e o nome de domínio, como amplamente documentado pela doutrina [1].

Intencionando regular detalhes operativos sobre os pontos comerciais, a "Lei do Ambiente de Negócios" — 14.195/2021  inseriu três novos parágrafos no artigo 1.142/CC. No entanto, uma confusão normativa por parte da Presidência da República levou ao veto do caput do artigo 43 da Lei, deixando toda a alteração sobre o Código Civil sem um comando típico de vigência [2], levantando dúvidas sobre sua normatividade. Agora, por meio da MP 1.085/2021, as três disposições foram [re?] postas em vigor [3].

A primeira estatui que "o estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual" [1.142/CC, §1.º]; a segunda [1.142/CC, §2º], que "quando o local onde se exerce a atividade empresarial for virtual, o endereço informado para fins de registro poderá ser, conforme o caso, o endereço do empresário individual ou de um dos sócios da sociedade empresária"; a última [1.142/CC, §3º], que "quando o local onde se exerce a atividade empresarial for físico, a fixação do horário de funcionamento competirá ao Município, observada a regra geral prevista no inciso II do caput do artigo 3º da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019".

À parte dos critérios de relevância e urgência [isso ainda vale mesmo?], trago algumas sugestões ante à nova oportunidade de aprimoramento do processo legislativo sobre o tema.

1) O §1º deveria ser suprimido. Há um caput no artigo 1.142, lastreado histórica e internacionalmente na ideia dos fundos de comércio [4]. Estabelecimento sempre foi, é, e sempre será universalidade, não se confundindo com seu ponto comercial. Não bastasse, mesmo a noção majoritária [5] de que o ponto é um dos [muitos] elementos que compõem estabelecimento encontra alguma resistência doutrinária [6].

2) O conteúdo do §2º deveria ser remetido para os artigos 968 e 997/CC. A par do estabelecido no caput, encaminhar soluções registrais para o ponto virtual no artigo 1.142/CC é tão impertinente quanto tratar do prazo de denúncia em sua locação. Sendo inconfundíveis ponto e estabelecimento, a MP incide em ilegalidade de atecnia por impertinência [7]. Sistematicamente, a resposta à questão "que endereço devo informar se o ponto for virtual?" deveria ser encontrada nos dispositivos que tratam do conteúdo do Requerimento de Empresário [968/CC] e do Contrato de Sociedade [997/CC].

3) O §3º deveria ser suprimido. Caminhando sobre a mesma ilegalidade de atecnia por impertinência, o §3º trata de fixação de horários de funcionamento de pontos físicos, reafirmando a) a necessidade de seguimento dos critérios da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; e b) a constitucional [8] e já sumulada [9] competência para disciplinar assuntos de interesse local. Para quê, Senhor? O céu é azul, a terra é redonda e municípios são competentes para disciplinar sobre horário de funcionamento de ponto comercial. Se Estados avocaram essa prerrogativa irregularmente [10], o combate deve se dar pelo controle de constitucionalidade, não pelo descontrole legiferante.


[1] CAVALLI, Cássio Machado. Apontamentos sobre a teoria do estabelecimento empresarial no Direito Brasileiro. Revista dos Tribunais, v. 858, abril 2007, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 30-47; XAVIER, José Tadeu Neves. O estabelecimento empresarial no Direito Brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 50, nº 159-160, jul./dez. 2011, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 90-111; VIANNA, Bonfim. Perfil analítico-comparativo do estabelecimento. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 17, n. 30, 1978, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 69-77.

[3] Artigo 14.

[4] Azienda commerciale [Itália], fonds de commerce [França].

[5] CAVALLI, op. cit., p. 31-34; VIANNA, op. cit., p. 74 ; NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa. v. 1. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 105; COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 79; TOMAZETTI, Marlon. Curso de Direito Empresarial. v. 1. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 107.

[6] XAVIER, op. cit., p. 104.

[7] Lei Complementar nº 95/1998, artigo 11, III, "b" e "c".

[8] Artigo 30, I;

[9] Súmula Vinculante nº 38 do Supremo Tribunal Federal: "É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial".

[10][10] Vários Decretos Estaduais o fizeram durante a pandemia, vide os de Amazonas [44.442/2021], Mato Grosso [836/2021], Pernambuco [50.874/2021], Rio Grande do Sul [55.154/2020] e São Paulo [65.897/2021] .

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