Opinião

O decreto presidencial de indulto e o Carnaval dos engenheiros do caos

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29 de abril de 2022, 10h05

A obra de Giuliano da Empoli "Os Engenheiros do Caos" tem como início a descrição da viagem de Goethe a Roma em 1787, quando então ele se depara com um belo início da festa de carnaval que, nas palavras do autor, "(…) tem por hábito virar o mundo de cabeça para baixo, invertendo não somente as relações entre os sexos mas também entre as classes e todas as hierarquias — que, em tempos normais, regem a vida social" [1]. E prossegue descrevendo o relato de Goethe no sentido de que aqui, basta um sinal "(…) 'para anunciar que cada um pode enlouquecer do modo que deseja e que, à exceção de golpes de porrete ou de faca, quase tudo é permitido (…)'" [2].

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Presidente Bolsonaro e deputado Silveira
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Nada mais sugestivo que em pleno período de um "segundo carnaval brasileiro", o presidente da República Federativa do Brasil se utilize de um mecanismo de infralegalismo autoritário para "driblar" a decisão da Suprema Corte brasileira, conceder graça a um deputado federal aliado e, de quebra, instaurar o caos, como se verá ao longo do texto que se segue.

Essa pequena história começa no dia 21 de abril de 2022. O parlamentar Daniel Silveira havia acabado de ser condenado pelo STF a uma pena de oito anos e nove meses de reclusão em uma decisão quase unânime, tendo sido formada a maioria por um placar de 10 a 1. Em revide, o presidente da República expediu um decreto de indulto individual (ou graça), contrariando a autoridade da corte.

É inquestionável que o decreto de indulto está compreendido dentro das competências presidenciais. Trata-se de ferramenta legítima e constitucional que tem assento no artigo 84, XII da Constituição Federal e tem sua razão de existir em função de um bem maior que o interesse coletivo de punir que é o dever ético de se perdoar, por força de um justo sentimento humanitário.

Por isso, na linguagem de Aristóteles, o telos do indulto estaria situado nas razões humanitárias que impõem o dever de perdoar os quais se sobrepõem ao jus puniendi estatal em determinado caso concreto.

Mas no referido caso em tela não é bem o que acontece.

Ao analisar os "considerandos" do decreto presidencial, observa-se as seguintes declarações: 1) é feita menção à liberdade de expressão como pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações; 2) que o indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes e; talvez o mais complicado por entrar no mérito do julgamento feito pelo STF; 3) "considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão".

Nessa toada, observa-se que o ato presidencial, apesar da aparência de legalidade e da utilização de uma ferramenta legítima e constitucionalmente prevista, tem o seu uso completamente deturpado.

Em primeiro lugar, há uma questão formal. Pegou-se um instrumento de perdão humanitário para aplicar em um caso concreto cuja decisão sequer transitou em julgado. Como se vai extinguir a punibilidade de uma pena que ainda não existe, ainda não transitada em julgado?

E há mais…

Ao ingressar no mérito da condenação oriunda de uma decisão tomada pela Suprema Corte, o chefe do Poder Executivo tenta desautorizar o STF como se estivesse em uma disputa de queda de braços entre dois Poderes da República.

Ora, não é necessária muita elucubração para entender que a finalidade do ato de indulto é de figurar como mero instrumento para provocar uma eventual ruptura ou sério desgaste institucional.

Ao mencionar expressamente que a "(…) sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão". Em outras palavras, se está a dizer que o presidente entende que se trata de um mero crime de opinião, e que o réu deve ter a sua punibilidade extinta a despeito do entendimento do STF. Em uma tentativa de desmoralizar a Suprema Corte com um overruling executivo.

Isso tudo sem olvidar a menção ao sistema de freios e contrapesos dos poderes da república, que é mais uma forma de mascarar a tentativa de transformar o presidente da República em instância recursal, usurpando a função de outro poder.

Em terceiro lugar, e não menos importante, o referido caso concreto específico do parlamentar guarda uma idiossincrasia que precisa ser aqui realçada, pois o que se discutia era um fato que ocorreu um verdadeiro ataque direto e frontal ao Supremo Tribunal Federal. E também havia uma tentativa de utilizar o instituto da imunidade parlamentar como escudo para a realização de um curioso processo de autofagia, subvertendo a sua função precípua de instrumento da democracia.

Frise-se que as ofensas do deputado em questão tinham como alvo tanto a pessoa dos ministros como a instituição do STF. De modo que ao tentar desautorizar a corte mais alta do país justamente no caso específico que trata de um ataque institucional sistemático (contempt of court). Aliás essa é a razão pela qual não há que se cogitar em impedimento de quaisquer dos ministros da corte, haja vista que um ataque institucional torna todos os ministros do STF as vítimas da agressão. E, por essa lógica, se o parlamentar possui foro por prerrogativa de função no STF ele não poderia ser julgado porque atacou a corte? Não faz o menor sentido!

Portanto, um ato presidencial que dá uma espécie de "carta branca" a um agressor da maior corte constitucional do país passa uma mensagem equivocada e destrutiva da democracia.

O constitucionalismo democrático, ideologia vitoriosa do século 20, derrotou diversos projetos alternativos e autoritários. Também referido como Estado constitucional ou, na terminologia da Constituição brasileira, como Estado democrático de direito, ele é o produto da fusão de duas ideias que tiveram trajetórias históricas diversas, mas que se conjugaram para produzir o modelo contemporâneo. Nesse sentido, constitucionalismo significa Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. Democracia, por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. O constitucionalismo democrático, assim, é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular. E é, também, um modo de organização social fundado na cooperação de pessoas livres e iguais [3].

Não é demais relembrar que nos últimos anos, verificou-se uma tendência, em escala mundial, à implementação de medidas autoritárias vocacionadas ao enfraquecimento dos sistemas de controle criados para limitar o poder. Todavia, transvestidas de uma aparência de legalidade/legitimidade, na prática, essas medidas configuram as figuras do constitucionalismo abusivo, o legalismo autocrático, o infralegalismo autoritário e a infração regulatória.

Após a primeira década do século 21, alastraram-se em nível global as ideologias extremistas que foram canalizadas por figuras que se autodesignam anti-establishment.

Portanto, em países com democracias liberais tradicionais, alguns líderes carismáticos, de direita e de esquerda, ascenderam ao poder com discursos antidemocráticos, propagando o fracasso das instituições políticas e a necessidade de instauração de uma "nova política" para a defesa dos interesses coletivos, porém sem olvidar o viés autoritário.

Logo após a ascensão ao poder, esses mesmos líderes que capitaneavam essas correntes ditas alternativas passaram a implementar uma série de medidas formalmente adequadas ao ordenamento jurídico positivo, porém materialmente voltadas ao enfraquecimento das instituições tradicionalmente vocacionadas à contenção do abuso do poder por parte de agentes políticos. Perceba que não se trata de uma ruptura explícita com o constitucionalismo democrático, mas de uma infiltração sutil do âmago nas instituições [4].

Entre essas estratégias que tem o escopo de driblar as leis e a institucionalidade, corroendo por dentro o âmago das instituições no Brasil entrou na moda a utilização do infralegalismo autoritário. O infralegalismo autoritário é uma tática que combina a edição de atos infralegais, modificações na estrutura burocrática (por ação ou omissão) e a criação de diretrizes por meios para-institucionais (ordens ilegais ou ameaças). E, por meio desse repertório, que se tenta legislar sem a necessidade do Congresso Nacional, subvertendo assim a finalidade das instituições que protegem direitos sociais e individuais ou desmantelando-as, bem como fragilizando instituições de investigação e controle [5].

Alinhado ao infralegalismo autoritário, a infração regulatória compreende as hipóteses alocadas uma segunda camada dos atos infralegais (e que podem muitas vezes voar abaixo do radar), haja vista que os atos corrosivos podem ser praticados tanto pela própria autoridade máxima do poder executivo, mas também podem ser determinados por interposta pessoa, que age na condição de mandatário, servindo como mero instrumento de sua vontade. Isto ocorre normalmente em órgãos capturados pelo governo e cujas nomeações seguem a lógica de aparelhamento, compadrio e identidade ideológica, podendo englobar atos e portarias ministeriais, atos normativos de agências reguladoras, e demais órgãos politicamente apadrinhados.

Assim como na infração regulatória, podemos categorizar o infralegalismo autoritário em: 1) direto: quando há uma violação frontal, direta, aberta, ostensiva às normas legais ou à constitucionais e 2) oblíquo: quando há uma violação indireta, sutil, disfarçada, sub-reptícia, oblíqua. Portanto, por meio de um comportamento formalmente adequado, realiza-se um contorno, um drible a um determinado dever, a uma proibição ou a uma limitação normativa que podem ensejar consequências danosas ao Estado, e as instituição, incluindo a possibilidade de evasão fiscal de vultuosas quantias e uma tentativa de desconstituição de um julgamento da Suprema Corte daquele país [6].

A infração regulatória oblíqua, assim como o próprio infralegalismo autoritário pode ser subdividido em: a) infração regulatória oblíqua por fraude às normas legais e/ou constitucionais; b) infração regulatória oblíqua por abuso de direito c) infração regulatória oblíqua por desvio de finalidade [7].

Ante o exposto, e das análises dos motivos que impulsionaram a expedição do decreto presidencial que concedeu a graça a Daniel da Silveira (com o perdão do trocadilho), evidencia-se que o decreto, apesar de apoiado no artigo 84, XII da Constituição Federal não cumpre a finalidade humanitária, mas visa acirrar uma grave crise institucional entre poderes da república. Havendo, portanto, um infralegalismo autoritário que pela via oblíqua dribla as competências do STF, mormente a competência prevista no art. 102. I, "b" da CRFB/1988.

O excesso de poder (ecesso di potere) ocorre quando o agente, servindo-se inicialmente de uma competência que a lei lhe confere, romper os limites estabelecidos por esta, bem como quando contornar dissimuladamente tais limites, apossando-se de poderes que não lhe são garantidos por lei [8].

Nas palavras de Carlos Alexandre de Azevedo Campos acerca do abuso de poder de legislar, pode se dizer que se trata de "(…) comportamento sutil, malicioso, por meio do qual o legislador atua fora dos limites teleológicos de sua competência ou contorna a 'ratio' ou espírito de normas constitucionais (…)" [9].

Para além do infralegalismo autoritário pela via oblíqua por abuso de direto, também há a questão do desvio de finalidade.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello [10], o desvio de poder pode ser manifestado de duas maneiras: (1) quando o agente busca finalidade alheia ao interesse público, como no caso em que usa de poderes para beneficiar a si próprio ou parente ou para prejudicar inimigos, tal como o exemplo supracitado ou (2) quando o agente pretende uma finalidade — ainda que de interesse público — alheia a categoria do ato que utilizou.

Portanto, resta comprovado o uso pela via indireta, sutil, disfarçada, sub-reptícia, oblíqua do infralegalismo autoritário nas modalidades de abuso de poder e desvio de finalidade.

E, no meio disso tudo, o Carnaval vai deixando sua praça preferida na avenida da Marquês de Sapucaí para figurar às margens da consciência do homem moderno, posicionando-se também como o novo paradigma da vida política global.

O novo jogo vai sendo jogado na arena das redes sociais e no WhatsApp, pois quase que de uma maneira síncrona com as notícias vão sendo disparados "memes", vídeos com falas de ministros e um verdadeiro bombardeio de decisões eivadas de "meias verdades" com cortes específicos. Trolls e bots passam a ser protagonistas com estratégias de disseminação de fake news.

E com isso tudo, em todos os cenários, quem perde é a democracia e a sociedade.


[1] DA EMPOLI, Giuliano. Os Engenheiros do Caos. Vestígio Editora. Edição do Kindle. p. 06.

[2] Idem.

[3] BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalismo Democrático: a ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas. 2019. pág. 13 – 15.

[4] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p. 81.

[5] GLEZER, Rubens e BARBOSA, Ana Laura Pereira. Conama em chamas: entre o infralegalismo autocrático e a catimba constitucional. Publicado em 09 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/conama-em-chamas-09082021. Acesso em 4/4/2022.

[6] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 67-90.

[7] Idem.

[8] GARCIA, Emerson. PACHECO ALVES, Rogério. Improbidade Administrativa. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 465.

[9] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Interpretação e Elusão Legislativa da Constituição no Direito Tributário. In: Direitos Fundamentais e Estado Fiscal: Estudos em Homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Editora Juspodivm, 2019. p. 639.

[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 410.

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