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Bardella e Toschi: O peso do ICMS nos combustíveis

29 de abril de 2022, 20h19

Por Renata Amarante Bardella, Caio Calzado Toschi

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O Brasil vive momento delicado decorrente da desaceleração econômica em razão da pandemia e da tímida retomada econômica. Os desafios decorrentes do cenário econômico dão ensejo à politização de debates que acabam vulgarizados por saberes apaixonados. Com a tributação não foi diferente.

Exemplo é a discussão sobre a tributação dos combustíveis, sugerindo que a elevação de preços estaria atrelada à atuação de governadores em razão do ICMS cobrado pelos estados e Distrito Federal. Convém examinar a hipótese.

Apesar de a tributação federal e estadual corresponder a parcela importante do preço dos combustíveis, seu valor final está atrelado, preponderantemente, a outras variáveis voláteis: o preço do barril de petróleo, importado para atender a demanda local [1], cotado em dólares americanos. Com a desvalorização do real e a importação de petróleo mais caro, encareceram os derivados no mercado interno.

Há também fatos extraordinários que colaboram com o aumento de preços, como a guerra entre Rússia e Ucrânia, com possibilidade de interrupção parcial do fornecimento da commodity e a queda de produção do mercado americano em 2021, em razão do furacão Ida, que afetou a oferta internacional.

Para melhor explorar a influência dos tributos, analisamos a composição do preço da gasolina na bomba, considerando o valor médio praticado nos postos entre 20 e 26 de março de 2022 (R$ 7,21/litro). Vê-se que o maior impacto decorre do preço de realização da Petrobras (39%). Depois entram custos e margens relacionados às distribuidoras, postos e ao etanol anidro obrigatoriamente acrescido (27%). Chegamos, então, ao ICMS, respondendo por 24% do preço e, pois, aos tributos federais (10%) [2].

Daí deriva obviedade: o preço do combustível, que até as recentes mudanças legislativas era a base de cálculo do ICMS, sofre alterações decorrentes de custos de produção e distribuição, alheios à questão fiscal, independendo do ICMS.

De todo modo, vê-se que a sistemática de tributação da venda de combustíveis até a edição da Lei Complementar 192/22 era complexa, tinha grande pluralidade de alíquotas efetivas e não impedia a sonegação.

A aprovação da LC 192/22 viabiliza metodologia constitucionalmente autorizada há mais de 20 anos (EC 33/01) e representa ruptura com a atual sistemática de tributação do ICMS sobre combustíveis. Troca-se um modelo no qual o ICMS incide sobre as operações realizadas ao longo de uma cadeia comercial, com recolhimento antecipado pela substituição tributária, passando-se a um modelo monofásico, em que o ICMS incide uma vez.

A alíquota deixa de ser definida individualmente pelas unidades federativas e passa a ser uniforme, como decidido pelo Confaz, ainda que possam ser distintas, conforme o tipo de combustível, e ad rem.

Como a alíquota passa a ser valor fixo por unidade de medida, pode haver a percepção de que o preço do combustível (com as variáveis extrafiscais mencionadas), não influenciará o cálculo do ICMS  o que não é verdadeiro. A própria LC 192/22 estabelece que na definição das alíquotas os estados "observarão as estimativas de evolução do preço dos combustíveis".

A diretriz normativa é de que o façam para que "não haja ampliação do peso proporcional do tributo na formação do preço final ao consumidor", mas é sabido que a recomendação talvez não seja seguida. A adoção de valor fixo por litro, a despeito da previsibilidade, não é sinônimo de redução imediata de preço.

Basta olhar para a sistemática até a LC 192/22. O ICMS já era balizado pela essencialidade da mercadoria e a gasolina alcançou alíquota de 34% e o diesel 25%, por exemplo, malferindo a seletividade.

Pode-se esperar do novo regime monofásico com alíquotas uniformizadas para o ICMS resultados necessários como diminuição de complexidade, maior previsibilidade, redução do custo de conformidade fiscal, menos espaço para sonegação, mas não necessariamente redução de carga tributária ou diminuição do preço ao consumidor final.

Assumir que a tributação, por si só, está descolada do preço do combustível e é responsável pelo aumento incomum do seu preço é como entender que o sol nasce todos os dias porque o galo canta. Com ou sem clarinar do galo (tributação), o amanhecer (preço dos combustíveis) segue seu curso natural.

E mesmo a simplificação pode ser relativizada, afinal, estamos falando de ICMS, que por vocação desafia os contribuintes e evidencia disfunções do federalismo brasileiro.

Aqui nos referimos ao modelo de repartição do ICMS proposto pela LC 192/22. Temos três situações distintas: 1) operações com combustíveis derivados do petróleo (ICMS cabe ao estado de consumo); 2) operações interestaduais entre contribuintes, com combustíveis não derivados do petróleo (ICMS repartido entre origem e destino); 3) operações interestaduais destinadas a não contribuinte, com combustíveis não derivados do petróleo (ICMS cabe ao estado de origem).

O modelo indicado no item 3) contraria o racional do diferencial de alíquota de ICMS, alvo de inúmeras controvérsias, inclusive no STF. O que deveria simplificar já nasce como potencial litígio.

Seguindo a LC 192/22, em 25.03, o Confaz publicou o Convênio ICMS 16/22, para disciplinar a monofasia e definir a alíquota ad rem nacional (R$/litro) para o diesel, com efeitos a partir de 01.07.22. Até lá estados e Distrito Federal internalizarão o Convênio e deveres instrumentais serão fixados via Ajuste Sinief.

Quanto ao diesel, o convênio autorizou os estados a estabelecerem fatores de equalização de carga tributária máximos, conforme valores ali fixados. São Paulo já ratificou o Convênio ICMS 16/22, pelo Decreto 66.599 e o Decreto Legislativo 2.517.

Para os demais combustíveis contemplados pela LC 192/22, prorrogou-se novamente o Convênio ICMS 110/07 por 90 dias, mantendo-se a sistemática da substituição tributária por alguns meses e o PMPF (média de preços adotados na bomba) de 11.2021.

O "congelamento" da base do ICMS até 30.06.22 não assegura manutenção ou diminuição do preço do combustível, pois se mantém a política de preços vinculada principalmente à variação cambial e oscilação do preço do barril no mercado internacional. O PMPF pode ser até mesmo desfavorável  se por qualquer motivo houver redução no preço da bomba, não será capturada de imediato para cálculo do ICMS ST, devendo ser objeto de pedido de restituição.

Constata-se, portanto, que a narrativa de que os preços dos combustíveis são determinados pelos governadores e o ICMS é o vilão do preço é essencialmente munição de polarização política que turva o entendimento do tema e torna superficial uma discussão complexa. Essa retórica prejudica a cidadania fiscal, tornando mais nebuloso o entendimento da sociedade sobre a tributação do consumo.

Essa narrativa, contudo, acaba por pressionar os estados a agir, tendo optado por seguir "congelando" o ICMS sobre combustíveis no Confaz. Tal expediente distorce a regra matriz de incidência do ICMS, não traz benefícios econômicos relevantes e compromete a arrecadação.

Não menos importante, tem-se em paralelo a reforma tributária, a buscar simplicidade sem comprometer a arrecadação dos entes federativos. Para além disso convém analisar, em termos de alinhamento de tendências globais de boas práticas de política fiscal e de diretrizes ambientais, se seria razoável admitir redução na tributação dos combustíveis fósseis.

Com essas reflexões, ficam os votos de que o debate do tema seja pragmático, técnico e não apaixonado.