Opinião

Evolução da visão do STF sobre prescrição no TCU

Autores

  • Elísio de Azevedo Freitas

    é advogado especialista em TCU doutorando em Direito Constitucional pelo IDP mestre em Economia e em Administração Pública pelo IDP MBA em Regulação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e procurador na Procuradoria-Geral do Distrito Federal.

  • Georges Abboud

    é advogado consultor jurídico livre-docente pela PUC-SP e professor da PUC-SP e do IDP.

28 de abril de 2022, 7h04

Um dos temas que mais têm chamado a atenção quanto ao controle do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Tribunal de Contas da União (TCU) é a questão da prescrição no âmbito dos processos em curso na corte de contas.

O STF, ao tratar da matéria, já passou por diferentes interpretações sobre a prescritibilidade — ou imprescritibilidade  das pretensões a serem exercitadas perante o TCU, bem como quanto aos seus prazos e possíveis marcos interruptivos. A evolução dos entendimentos da corte sobre o assunto é material rico para o estudo de direito constitucional, notadamente para a jurisdição constitucional e a hermenêutica, motivo pelo qual trataremos dela neste artigo.

Em um primeiro momento, a posição do STF, baseada na interpretação do artigo 37, §5º, da Constituição, era no sentido da ampla imprescritibilidade quanto às pretensões de ressarcimento ao erário [1]. Essa posição, no entanto, foi sendo gradualmente modificada.

No MS 34.467, a ministra Rosa Weber sintetizou a construção evolutiva jurisprudencial que visou pacificar a questão, destacando, de início, o julgamento do RE 669.069 (Tema 666 de Repercussão Geral), no qual o STF assentou a tese no sentido de que: "É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil".

O entendimento respaldou-se na ideia de que a imprescritibilidade do artigo 37, §5º, da CF é medida excepcional, que deve ser interpretada restritivamente e com observância especial às garantias da segurança jurídica, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

 Em seguida, no julgamento do RE 852.475 (Tema 897 de Repercussão Geral), o Supremo estabeleceu que "são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa".

E, por fim, a questão foi mais bem delineada na solução dada ao RE 636.886/AL (Tema 899 de Repercussão Geral), no qual o STF reconheceu a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento (indenizatória) ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas. De acordo com o entendimento da Corte, a prescrição se dá na forma da Lei de Execução Fiscal (LEF), de sorte que ocorre em cinco anos, e se aplica tanto ao exercício da pretensão executória quanto ao da pretensão condenatória.

Da leitura conjunta das teses fixadas, somente será imprescritível a pretensão ressarcitória em face da prática de ato de improbidade administrativa qualificado pelo dolo, de sorte que o STF mudou seu posicionamento, que antes  e com base em leitura do artigo 37, §5º, da CF — era pela imprescritibilidade ampla da pretensão ressarcitória.

Vale destacar excerto desta posição clara do STF sobre o tema, da lavra do ministro Roberto Barroso no julgamento do MS 38058/DF [2]:

"11. Por fim, no julgamento do RE 636.886 (tema nº 899 da repercussão geral), em 20.04.2020, consolidou-se que '[é] prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas'. O caso dizia respeito à decisão do TCU que condenara presidente de associação privada a restituir recursos recebidos por meio de convênio firmado com o Ministério da Cultura em razão da ausência de prestação de contas. Esta Corte decidiu, por unanimidade, que as condições enunciadas no julgamento do tema nº 897, que autorizavam o reconhecimento da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário, não estão presentes nos julgamentos realizados pela Corte de Contas, já que estes não possuem natureza jurisdicional e não se prestam à verificação da existência de ato doloso de improbidade administrativa. Como consequência, foi mantido o acórdão recorrido que reconhecia a ocorrência de prescrição no curso da ação de execução em que se buscava a satisfação do título executivo formado pelo TCU. Não foi realizada modulação dos efeitos temporais dessa decisão, de modo que não cabe afastar a aplicação da tese ao presente caso".

Assim, mesmo sem que tenha havido mudança no texto constitucional, a norma que dele derivou na decisão da corte modificou-se, caracterizando o fenômeno da mutação constitucional, no qual identificamos uma nova leitura do dispositivo constitucional em questão.

Como os julgamentos realizados pela corte de contas não possuem natureza jurisdicional e tampouco se prestam à verificação da existência de ato doloso de improbidade administrativa mediante devido processo legal, com a presença de contraditório e ampla defesa  como destacado no voto do relator no RE 636.886/AL , não há que se falar, diante dos novos entendimentos do STF, de imprescritibilidade da pretensão ressarcitória no âmbito do TCU [3].

Ao analisar a processualística do TCU, tal como definida por seu regimento interno, o STF pôde apurar que, embora exista um devido processo legal vinculado aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório — também obrigatórios em processos administrativos, principalmente ao se tratar de processos de contas e, mais especificamente, de tomadas de contas especial [4] , o que não existe é um processo com todas as garantias de um devido processo legal desenvolvido perante o Poder Judiciário, isto é, um devido processo legal judicial.

A constatação da ausência desse devido processo legal judicial não é, como pode parecer, mero obter dictum. É, a bem da verdade, o fundamento principal, o núcleo da ratio decidindi do STF no RE 636.886/AL quanto à overruling que representou esse julgamento e que está a caracterizar, ainda, o instituto doutrinário próprio da mutação constitucional.

Diante das características dos processos de contas perante o TCU, o STF passou a olhar de maneira diversa para o texto constitucional e para o mundo fático fenomenológico, sendo certo que sua atitude hermenêutica observável foi se modificando e a aplicação do direito às hipóteses sob análise passou a ser diferente, com normas para solução dos casos concretos (isto é, decisões) mais restritivas quanto à prescrição  em respeito aos direitos fundamentais.

Essa é a interpretação que podemos fazer do voto condutor da decisão [5], como precedente que pode influenciar e servir de referência para decisão de casos subsequentes [6] e que se apresentará como elemento para a hermenêutica jurídica constitucional.

Por falar em casos subsequentes, entendemos que pontos importantes para o futuro da discussão acerca da prescrição nos órgãos de controle, e que nos parece que ainda não foram suficientemente amadurecidos no STF, são: 1) prescrição intercorrente; 2) causas de suspensão e interrupção da prescrição.

Considerando que o STF convergiu para a submissão de ambas as pretensões  a punitiva e de ressarcimento  à regência da Lei 9873/1999 [7], destacamos, quanto ao primeiro ponto, que esse diploma legal possui regra específica sobre prescrição intercorrente, segundo a qual esta deve ser declarada caso o procedimento administrativo fique paralisado por três anos.

Quanto ao segundo ponto (causas de suspensão e interrupção da prescrição), não nos parece adequada a aplicação de uma série de marcos interruptivos, pois, caso assim se entenda, a insegurança jurídica gerada pela indeterminação quanto à atuação punitiva e indenizatória do Estado  que foi combatida pela evolução da jurisprudência do STF — voltaria a estar presente.

Um processo não pode durar para sempre, e um processo de contas não pode afrontar os princípios do contraditório, da ampla defesa, da fundamentação, da segurança jurídica, da razoável duração do processo, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana. O princípio estruturante do devido processo legal (do qual decorrem todos os outros) precisa ser respeitado para que haja processo e decisão justos.

A leitura muitas vezes feita da Lei 9.873/1999 no sentido de que a prescrição administrativa pode ser interrompida por uma quantidade infinita de vezes viola os supracitados direitos fundamentais, colabora com a morosidade das apurações de responsabilidade na esfera administrativa, além de ressuscitar a insegurança jurídica que o STF pretendeu sepultar ao fixar a seguinte tese para o Tema 899 de Repercussão Geral: "É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas".

Assim, a partir de uma interpretação sistemática de diversas regras do ordenamento jurídico acerca da prescrição — como os Decretos 20.910/1932, 4.597/1942 e o Código Civil , bem como da regra da prescritibilidade prevista na Constituição, a manutenção do entendimento de que cada inciso do artigo 2º da Lei 9873/1999 teria aplicação independente, indiscriminada e acumulativa, representaria uma afronta que não pode prosperar.

Na atual quadra histórica, a prescrição não pode mais ser vista como instituto de sanção ou de origem meramente privada. No direito sancionador, a prescrição é uma garantia fundamental consectária da segurança jurídica. Em uma democracia constitucional, o cidadão, em regra, não pode ficar à mercê da atividade persecutória do Estado de forma indefinida, salvo em hipóteses claramente estabelecidas pelo Poder Constituinte originário. Por consequência, a interpretação constitucional subjacente às decisões administrativas do TCU precisa fazer valer os direitos fundamentais ligados ao efetivo exercício da defesa e à segurança jurídica, prestigiados pela evolução jurisprudencial do STF quanto à prescrição nos processos perante a Corte de Contas.


[1] Veja-se, nesse sentido, as decisões no MS 26.210/DF e no MS 24.519.

[2] Mesma posição encontrada em outros precedentes, como MS 37.412/DF e MS 37.791/DF.

[3] É o que se extrai do voto do ministro Barroso no julgamento do MS 38058/DF.

[4] Nem todos os processos dos tribunais de contas são processos de contas. Não podemos esquecer que existem processos de fiscalização, como as representações, nas quais — contudo — não se perquire sobre a presença de prejuízo ao erário nem se condena ao seu ressarcimento (constituindo título executivo próprio para esse fim), para o que é necessária a instauração de um processo de contas.

[5] In verbis: "Em face de sua própria natureza, esses exames e análises das contas não observam as mesmas garantias do devido processo judicial, além de não preverem e não permitirem o contraditório e ampla defesa efetivos, anteriormente à formação do título executivo”. Concordamos com a parte inicial, com a qual caminhamos em harmonia no sentido exposto neste artigo, contudo o trecho final, que destacamos, só pode ser interpretado no sentido da comparação com o processo judicial por improbidade, no sentido proposto no presente trabalho; pois, caso contrário, o trecho não se coadunaria com a jurisprudência do STF, que prevê contraditório e ampla defesa nos processos de tomada de contas especial".

[6] STRECK. Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 349

[7] Cf. MS AgR 37.373, MSAgR 36.523, MS AgR 37.120, MS AgR 37475.

Autores

  • Brave

    é advogado especialista em TCU, doutorando em Direito Constitucional pelo IDP, mestre em Economia e em Administração Pública pelo IDP, MBA em Regulação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e procurador na Procuradoria-Geral do Distrito Federal.

  • Brave

    é advogado, consultor jurídico, livre-docente pela PUC-SP e professor da PUC-SP e do IDP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!