Controvérsias Jurídicas

O bullying e a saúde mental de crianças e adolescentes

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

28 de abril de 2022, 8h00

Em meados de 2010, M.A, menor de idade, morador da cidade de Porto Alegre, depois de sofrer por anos represálias de outros rapazes por estar acima do peso, decidiu dar um basta na situação e brigou com dois de seus assediadores. Inconformado com a reação de M.A, um colega dos assediadores, com apenas 14 anos de idade, assassinou M.A como forma de vingança.

No mesmo ano, um aluno da nona etapa de um colégio em Belo Horizonte foi espancado por seis garotos com soco inglês, quando passava pelo portão de saída. O motivo da agressão foi a recusa da vítima em ter participado da agressão coletiva a outro estudante. Após ter alertado o colega sobre a intenção dos seis rapazes, passou a ser vítima de ameaças, as quais se concretizaram com o espancamento.

Em São Paulo, uma estudante da rede estadual foi encurralada e agredida por cinco meninas na saída da aula. A vítima afirmou que sofria todo tipo de escárnio, sendo chamada de "gorda com um monte de estrias" pelo grupo agressor. A escalada da violência do grupo não encontrou nenhum limite, até que os xingamentos se transformaram em agressão física, inclusive filmada por uma das participantes.

Em Osasco, foi o próprio professor o responsável pela violência contra um menor. Em função do sobrepeso da vítima, o educador incentivou que os demais alunos a submetessem a uma série de castigos físicos e psicológicos, passando a ser alvo de xingamentos de toda a turma.

Somam-se a esses casos a agressão sofrida por um rapaz no interior do Piauí, apedrejado pelo simples fato de usar óculos. As zombarias e agressões tiveram tamanho impacto na psique da vítima, levando-a a apresentar desmaios e convulsões frequentes. Ou, ainda, o suicídio de uma menor após ter um vídeo íntimo vazado na internet. Antes do ato, a vítima publicou a trágica decisão em suas redes sociais, desculpando-se com a mãe por não ser uma filha perfeita.

Todos os exemplos enunciados têm em comum a prática do bullying, expressão que tem origem na língua inglesa e remete ao autor da agressão, denominado bully, que traduzido para o português significa "valentão" ou "briguento". As vítimas, de forma geral, passaram a ser alvo de seus algozes, na maioria das vezes em ambiente escolar, por não se encaixarem em um determinado padrão de comportamento ou por ostentarem características físicas distintas das tidas como padrão. Pela falta de pertencimento ao grupo, passaram ao isolamento, seguido de agressões físicas e verbais. Cantorias, sátiras, desenhos, apelidos, cartazes, fotos, vídeos, e a consequente exclusão da vítima do convívio social são as marcas que precedem situações ainda mais cruéis, capazes de causar abalo psicológico grave, e em algumas ocasiões, até mesmo o suicídio do destinatário das ofensas.

Para que se tenha dimensão do problema na atualidade, pesquisa realizada, em 2018, pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em parceria com a Universidade de Cambridge, com 2.702 alunos do nono ano de 119 escolas públicas e privadas de São Paulo, constatou que 29% deles relataram terem sido vítimas de bullying e 23% de outros tipos de violência [1].

Tendo em vista o crescente número de relatos de bullying, a Lei nº 13.185/15 instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistêmica (bullying). Conforme seu artigo 1º, §1º, considera-se intimidação sistêmica todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia na vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.

O seu artigo 2º, determina, ainda, que o bullying se caracterizará sempre que houver atos de intimidação, humilhação ou discriminação, com o uso de violência física ou moral, ou ataques físicos, insultos pessoais, comentários persistentes e maliciosos, apelidos pejorativos, ameaças, grafites depreciativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado, zombarias e pilhérias. Há de se ressaltar que a lei também prevê o que se denominou de cyberbullying, consistente na humilhação, depreciação ou incitação de qualquer forma de violência contra a vítima que seja perpetrada pela internet, tais como a adulteração de fotos, exposição de vídeos e compartilhamento de informações pessoais que causem constrangimento psicossocial.

A título exemplificativo, cuidou o artigo 3º de categorizar as intimidações conforme as ações praticadas, a saber: "I – verbal: insultar, xingar e apelidar pejorativamente; II – moral: difamar, caluniar, disseminar rumores; III – sexual: assediar, induzir e/ou abusar; IV – social: ignorar, isolar e excluir; V – psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar; VI – físico: socar, chutar, bater; VII – material: furtar, roubar, destruir pertences de outrem; VIII – virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar dados pessoais que resultarem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social".

Como explicam Luciano Alves Rossatto, Paulo Eduardo Lépore e Rogério Sanches Cunha [2], a intimidação sistêmica sempre apresentará três sujeitos: 1) o agressor/intimidador, chamado de bully; 2) a vítima/intimidada; e 3) o espectador/plateia. O bully é o sujeito ativo da ação, que pode ser praticada individual ou coletivamente, majoritariamente de compleição física maior do que a da vítima, que busca ganho de popularidade ou aprovação de um grupo mediante a humilhação de terceiro. A vítima, indivíduo ou coletivo, é escolhida como alvo por apresentar características físicas ou comportamentais diversas do considerado padrão por um segmento. Assim, a vestimenta, corte de cabelo, voz, altura, modo de se portar e o desempenho escolar são tidos como motivação para os insultos e agressões. A plateia é o destinatário final das humilhações, a qual assiste passivamente à série de agressões perpetradas contra a vítima.

Além das agressões físicas ou morais diretas (socos, pontapés, xingamentos, apelidos), o bullying também pode ser cometido de forma indireta, não tão aparente aos olhos de terceiros. A prática consiste, basicamente, no isolamento social da vítima, excluindo-a de toda e qualquer interação com o meio. Dessa maneira, o agressor proíbe que outras pessoas socializem com o intimidado ou restringe suas liberdades individuais, evitando que a vítima frequente determinados lugares ou use de todos os utensílios da escola, como brincar na quadra de esportes ou no salão de jogos.

Contemporaneamente, a forma mais usual de causar constrangimento à vítima se dá pela intimidação virtual (artigo 3º, VIII), popularmente chamada de cyberbullying. Tendo em vista os novos nexos de sociabilidade construídos com o advento da popularização da internet, a geração atual de jovens e crianças teve como plataforma os ambientes virtuais em seus meios de interação. As conversas, paqueras, jogos e brincadeiras, que antes aconteciam presencialmente nas ruas ou pátios das escolas, cada vez mais cederam espaço para as redes sociais e mídias digitais. Ao passo que, aparentemente, a relação possa parecer mais fria, ganhou em abrangência, vez que as distâncias físicas são vencidas pelo apertar de um botão, e o que outrora ficava restrito a um grupo ou região, pode ganhar proporção internacional.

O grande alcance e a perpetuidade dos conteúdos veiculados na internet são os motivos da especial gravidade do cyberbullying. As ameaças e insultos podem se dar de múltiplas formas, tais como o sexting e nude selfie, revenge porn e o cyberstalking. Sexting é o envio ou recebimento de conteúdo sexual pelos smartphones, sendo o nude selfie um nicho específico de conteúdo sexual consistente no envio ou recebimento de fotos ou vídeos de um corpo nu ou seminu. Revenge porn (vingança pornográfica), por sua vez, associa-se à distribuição, na internet, sem consentimento, de fotos ou vídeos de pessoas nuas ou praticando ato sexual como vendeta pelo término de um relacionamento. Cyberstalking é a perseguição direcionada a uma pessoa, ou grupo de pessoas, sem consentimento, repetidamente, capaz de causar temor ou pânico, como o envio sistemático de mensagens aterrorizantes; o hackeamento das mídias digitais com postagem de informações falsas ou imagens íntimas; a criação de comunidade em rede social com o propósito de humilhação e a exposição pública de informações da vida privada [3].

Por fim, vale ressaltar que o Programa de Combate à Intimidação Sistêmica tem como objetivo precípuo a prevenção do bullying, não estabelecendo nenhuma figura típica para a conduta. Seu escopo consiste na capacitação dos agentes educadores de crianças e adolescentes, disseminando campanhas de conscientização e promovendo assistência psicológica e social às vítimas [4]. Em que pese a ausência de figura típica específica, seus agentes responderão criminalmente pelas ações correspondentes (lesão corporal, calúnia, difamação, homicídio), e civilmente por força dos artigos 186, 927 e 928, todos do CC. De todo modo, ainda se faz necessário que o legislativo empenhe esforços para que a prática do bullying seja combatida e reprimida mais fortemente.

 


[1] PERES, MFT et al. (2018). Violência, bullying e repercussões na saúde: resultados do Projeto São Paulo para o desenvolvimento social de crianças e adolescentes (SP-PROSO). Departamento de Medicina Preventiva/FMUSP. 156 p.

[2] ROSSATTO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo e CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente — Lei n. 8.069/90 — Comentado artigo por artigo. 11ª edição, ed. SaraivaJur, São Paulo, 2019, p. 150.

[3] MARINELI, Marcelo Romão. Privacidade e redes sociais virtuais, 2ª edição. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2019, ps. 182/192.

[4] Tramitava no Congresso Nacional o PL 6.935/2010, que visava criminalizar o bullying, com a inclusão do artigo 141-A no Código Penal. Depois de seu arquivamento, foi solicitado que a proposta voltasse a ser debatida.

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