Opinião

Educação inclusiva: legislação, jurisprudência e aspectos práticos

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28 de abril de 2022, 16h03

A cada novo ano, os estudantes, os pais e responsáveis e as próprias instituições públicas e privadas de ensino enfrentam o desafio que é a realização das matrículas. Esse período é especialmente desafiador nos casos em que o aluno é uma criança, adolescente ou adulto com deficiência, já que esse público muitas vezes se defronta com a dificuldade e, até mesmo, a resistência das instituições em ofertar uma educação inclusiva.

O desconhecimento da legislação e da posição dos tribunais sobre o assunto, tanto pelos estudantes, pais e responsáveis, quanto pelas instituições públicas e privadas, muito contribui para essa realidade.

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) é um marco para a promoção da educação inclusiva no país e, conforme consta de seu artigo 1º, tem como objetivo: "assegurar e [] promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania".

O Capítulo IV ("DO DIREITO À EDUCAÇÃO") da referida Lei é o ponto de partida para quem queira se inteirar do tema e, em seu artigo 27, prevê:

Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.
Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.

Ao tempo em que o acesso a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida é um direito das pessoas com deficiência, o seu fornecimento é um dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade.

O artigo 28 do Estatuto e seus respectivos incisos minudenciam os desdobramentos gerais desse dever para o Poder Público e o parágrafo primeiro para as instituições privadas, a quem aplica-se o dispostos em incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII, em linha com o decidido pelo STF na ADI nº 5357.

Existem, entretanto, previsões legais mais específicas e práticas que merecem destaque.

Conforme o artigo 2º, I, "f", da Lei nº 7.853/99, a matrícula das pessoas com deficiência capazes de se integrar ao sistema de ensino é compulsória:

Art. 2º, I: f) a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos públicos e particulares de pessoas portadoras de deficiência capazes de se integrarem no sistema regular de ensino;

Disposição complementada pelo artigo 8º, I e  §1º, da já mencionada Lei nº 7.853/99 e pelo artigo 7º da Lei nº 12.764/12 da seguinte forma:

Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa:
I – recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência;
§ 1º Se o crime for praticado contra pessoa com deficiência menor de 18 (dezoito) anos, a pena é agravada em 1/3 (um terço).
Art. 7º O gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos.

Assim, a matrícula da pessoa com deficiência nas instituições públicas e particulares de ensino é compulsória e a sua recusa, procrastinação, suspensão, cancelamento, bem como a cobrança de valores adicionais, se motivadas pela própria deficiência, configuram crime punível com pena de reclusão e multa.

Sobre o tema, o TJ-DF já estabeleceu, à luz do Estatuto, que "a matrícula de pessoas com deficiência é obrigatória pelas instituições de ensino particulares" e, ao julgar caso semelhante, afirmou o TJ-PE que "não se admite que a entidade lhe negue acesso a estabelecimento escolar sob sua mantença, pela simples razão de ser ela pessoa com deficiência"[1].

A leitura conjunta do artigo 28, caput e II, com o artigo 3º, XIII, ambos do Estatuto da Pessoa com Deficiência revela ainda que a garantia das condições de acesso ao sistema educacional, inclusive por meio da contratação de profissionais de apoio, caso necessário, é também um dever das instituições públicas e privadas de ensino.

O TJ-DF também já se debruçou sobre essa questão específica tanto no contexto do ensino público quanto do ensino privado tendo assegurado o direito do aluno com deficiência ao atendimento educacional especializado, inclusive com a disponibilização de monitor, nos casos em que isso se mostrou necessário[2].

No caso das pessoas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a referida obrigação está expressa no artigo 3º, IV, "a", parágrafo único, da Lei nº 12.764/12:

Parágrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, nos termos do inciso IV do art. 2º , terá direito a acompanhante especializado.

O julgamento realizado pelo TJ-MS em sede de Ação Civil Pública é ilustrativo por aplicar o referido artigo para garantir o referido direito para uma criança com TEA matriculada em uma instituição particular de ensino[3].

O descumprimento de quaisquer dos comandos legais acima abordados poderá gerar significativas consequências de natureza cível e, inclusive, penal, que podem atingir as instituições públicas e privadas de ensino e os seus gestores.

Na esfera cível, em dois dos casos julgados pelo TJ-DF e anteriormente citados, foram arbitradas indenizações a título de dano moral nos valores de oito e vinte mil reais. Também já arbitraram indenizações dessa ordem o TJ-SP e TJ-PR em casos julgados nos anos de 2017 e 2021[4].O tribunal paulista, aliás, chegou a reconhecer em 2020 o ilícito penal cometido por um diretor que recusou a matrícula de um aluno com deficiência e a condicionou a cobrança de valores adicionais, tendo aplicado penas restritivas de direito em seu desfavor[5].

Vê-se, assim, que os tribunais pátrios têm sido firmes em coibir o descumprimento da legislação subjacente ao direito à educação das pessoas com deficiência.

Por fim, além da legislação vigente em âmbito nacional, existem regras e diretrizes específicas vigente em cada unidade da federação aplicáveis às instituições públicas e às instituições privadas de ensino.

As instituições públicas e privadas de ensino, devem, portanto: i. estar atentas à legislação vigente e aos riscos cíveis e penais que eventuais descumprimentos representam; e ii. implementar todas as medidas necessárias à garantia de uma educação verdadeiramente inclusiva.

Os estudantes, pais e responsáveis devem se informar sobre os direitos garantidos à população com deficiência, de modo a não admitir qualquer tipo de descumprimento, acessando, caso necessário, o Poder Judiciário.

O Estado, a comunidade escolar e a sociedade civil como um todo devem, por sua vez, trabalhar em conjunto para tornar a educação inclusiva uma realidade.


[1] TJDFT, Acórdão n. 1.189.862, publicado em 6/8/2019; e TJPE, Remessa Necessária Cível 405294-00005225-84.2014.8.17.0220, publicado em 23/09/2019.

[2] TJDFT, Acórdão n. 1.111.057, publicado em 31/7/2018; Acórdão n. 1.325.286, publicado em 19/3/2021; e Acórdão n. 1.307.065, publicado em 21/1/2021.

[3] TJMS, Ação Civil Pública CNJ n. 0804565-86.2013.8.12.0008, publicado em 3/5/2017.

[4] TJPR, CNJ n. 0014843-77.2018.8.16.0014, julgado em 11/3/2021; e TJSP, CNJ n. 1016037-91.2014.8.26.0100. julgado em 08/11/2017.

[5]TJSP, Apelação Criminal n. 0005632-28.2016.8.26.0428, publicado em 9/10/2020.

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