Opinião

Exigência de CPF na nota fiscal, proteção de dados e o ICMS

Autores

  • Ana Paula Ávila

    é sócia coordenadora da área de compliance do Silveiro Advogados mestre e doutora em Direito pela UFRGS mestre em global rule of law pela Universidade de Gênova (Itália) e especialista em gestão de crise pelo MIT (EUA) e em cyber security for managers pela mesma instituição.

  • Cassiano Menke

    é sócio coordenador da área tributária do Silveiro Advogados doutor e mestre em Direito Tributário pela UFRGS professor de Direito Tributário das escolas dos juízes federais e estaduais no RS professor do curso de especialização em Direito Tributário da PUC-RS e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-RS.

28 de abril de 2022, 13h04

A Lei Geral de Proteção de Dados completará quatro anos neste 2022 com sua importância engrandecida pela promulgação da EC nº 115, que, no início deste ano, elevou a proteção dos dados pessoais à condição de direito fundamental do cidadão. Em que pese a grande movimentação entre as organizações privadas para o ajuste de seus processos internos às exigências da lei, o poder público não dá mostras de um efetivo entendimento dos impactos da nota de fundamentalidade concedida aos direitos à privacidade e à proteção dos dados (CF/88, artigo 5º, incisos X e LXXIX). Essa falta de percepção fica evidente na exigência de inclusão do CPF do comprador de mercadorias nas notas fiscais, imposta pelo Fisco aos contribuintes de ICMS, como condição para a manutenção destes no Regime Optativo de Tributação da Substituição Tributária (ROT-ST), no Rio Grande do Sul. Referido regime tributário dispensa o contribuinte do ICMS por substituição tributária ao pagamento do complemento de tributo que seria devido nas hipóteses em que a venda ao consumidor final se dá por preço superior ao que fora presumido. 

Em 2020, a Receita Federal acreditou ter se adequado à LGPD ao restringir o acesso aos dados pessoais por meio das notas fiscais eletrônicas (Portaria nº 4.255/2020). O problema, porém, vai muito além da questão do sigilo porque, conforme veremos, os dados pessoais do consumidor, como regra geral, sequer deveriam ser coletados para inclusão nas NF-e. De acordo com o Decreto estadual do RS nº 56.225/21 e a Instrução Normativa da Receita Estadual nº 101/21, os estabelecimentos comerciais devem cumprir percentuais mínimos de quantidade de Notas Fiscais emitidas com a inclusão do CPF do comprador, como condição de permanência no ROT-ST. Assim, nos dois primeiros trimestres de 2022, o CPF do consumidor deverá ser incluído em, no mínimo, 10% das Notas Fiscais de Consumidor Eletrônicas (NFC-e) emitidas, saltando para 20% a partir do terceiro trimestre. Esse tipo de exigência enseja a reflexão sobre a legalidade e a constitucionalidade desses atos normativos, o que propomos seja feito à luz de três principais razões. 

Primeiro, note-se que as normas citadas presumem que a empresa pode dispor de uma informação que, a rigor, não lhe pertence, pois o CPF é um dado pessoal cujo titular é o consumidor. Portanto, cabe ao cidadão, e não à empresa, definir se o CPF pode ser incluído na nota fiscal e, até que se tenha lei formal tornando a inclusão obrigatória, nada pode ser feito pela empresa diante da recusa do consumidor em fornecer o CPF para esta finalidade. Mesmo que tal lei fosse editada, sua constitucionalidade seria improvável, mas até aqui é certo que o poder público impõe às empresas uma sanção (exclusão do ROT) por suposto desatendimento de "dever" que não pode ser por elas cumprido com autonomia. 

Aliás, a Lei estadual nº 14.020/2012, a qual respalda o programa Nota Fiscal Gaúcha, dispõe que os estabelecimentos comerciais informarão aos consumidores a possibilidade de incluírem seu CPF no documento fiscal. Ou seja, segundo a referida lei, o dever do comerciante é apenas de informar a possiblidade de inclusão do CPF na nota e acatar eventual recusa ou autorização neste sentido, sem poder incluí-lo à revelia do consumidor. 

Em segundo lugar, a exigência de inclusão de CPF na nota menospreza os direitos fundamentais à proteção de dados e da privacidade (artigo 5º, LXXIX e X) e por isso viola a CF/88. Em sua eficácia de princípios jurídicos, tais direitos impõem ao poder público a adoção de medidas para proteger e promover a finalidade que a Constituição manda assegurar — o resguardo da vida privada e dos dados pessoais. Os atos normativos emitidos pelo Fisco gaúcho acabam por fazer o contrário ao incentivar a exposição de dados, na contramão da proteção da privacidade.

Em face da exigência regulamentar, as empresas se veem premidas a cumpri-la para a obtenção e permanência no regime especial de ICMS. Algumas delas têm feito a inclusão do CPF na nota sem a autorização do consumidor, que, para esta finalidade, deveria ser expressa no ato da emissão da nota. Outras chegam a acrescentar CPFs aleatórios, sem qualquer conhecimento do titular, ocasionando a inserção de elementos falsos no documento. Tais práticas são ilegais e muito arriscadas do ponto de vista do compliance, pois tendem a configurar uso irregular de dados pessoais sancionado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), inclusive com aplicação de multas que podem chegar a 2% do faturamento bruto da empresa, por infração (LGPD, artigo 52). Além disso, há que considerar as implicações perante a própria autoridade fiscal: imputar informação inexata na nota tende a configurar ilícito e levar à exclusão da empresa do ROT, situação na qual poderá ser feita, pelo Fisco, a apuração complementar do ICMS incidente (se houver) sobre as operações realizadas no período em que foram constatadas as irregularidades.   

Em terceiro lugar, manter esta condição é irrazoável e desproporcional: irrazoável, porque a exigência de inclusão dos CPFs nas notas fiscais, sob pena de exclusão do ROT, é medida arbitrária e completamente desconexa dos fins perseguidos pelo aludido regime especial. O ROT, vale lembrar, visa à simplificação da apuração do ICMS ST. Isso por meio da dispensa do contribuinte com relação ao dever de apurar eventual complemento de imposto inerente às vendas ao destinatário final. O que se quer com o ROT é evitar a revisão, caso a caso, das vendas a consumidor, de tal sorte que o imposto retido e pago no início da cadeia de circulação da mercadoria seja tratado como imposto definitivamente adimplido. Note-se, nesse aspecto, que o "dever" de inclusão de CPFs em notas fiscais nada tem a ver com esse fim de simplificação. Noutras palavras: a promoção das finalidades inerentes ao ROT não depende, em medida alguma, da regra de inclusão de CPFs em notas fiscais. Daí por que não se pode cogitar de excluir o contribuinte do aludido regime por deixar de fazer o registro dos CPFs, tal como deseja o Fisco. 

É também desproporcional: a medida em questão é, ao mesmo tempo, inadequada, desnecessária e desproporcional em sentido estrito. De um lado, a inclusão do CPF do consumidor nas notas fiscais é medida inadequada ao fim a que ela supostamente se propõe. O objetivo desses programas de fidelização, conhecidos como Nota Fiscal Gaúcha, Nota Fiscal Paulista etc., é reduzir a informalidade, combater a sonegação e a concorrência desleal. Se esses são, de fato, os objetivos a serem alcançados, o meio escolhido é inconstitucional. É que a indicação do CPF na nota fiscal não levará à formalidade. O que poderia promover a formalidade é a redução da pesada carga tributária e dos pesados custos de compliance que as complexas normas tributárias impõem às empresas, pois é essa carga que produz o maior impacto nos elevados preços dos produtos pagos pelo consumidor no mercado formal.

Por outro lado, o uso do CPF na operação é totalmente desnecessário. A necessidade do dado tem a ver com o princípio do "privacy by design", que toma corpo nas normas da LGPD e submete todas as operações com dados pessoais às exigências de necessidade e de minimização do uso desses dados. Ou seja: deve-se limitar o tratamento “ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados” (artigo 6º, inciso III da LGPD). O "privacy by design" deve, portanto, orientar a tomada de decisões do poder público envolvendo a coleta de dados pessoais do cidadão e, como uma decorrência do direito fundamental à proteção de dados, impõe dever de abstenção [no caso, do Fisco] no uso de dado pessoal desnecessário e inadequado ao fim. Veja-se: na tributação da circulação de mercadorias (ICMS), o sujeito passivo da obrigação tributária é o vendedor, e não o consumidor. Quem cumpre, perante o Fisco, o dever de pagar o tributo é o comerciante, não o consumidor. Apenas o Fisco e o estabelecimento comercial são partes na relação tributária obrigacional. Logo, a inclusão do CPF do consumidor final na nota fiscal (obrigação acessória) é irrelevante no que se refere ao exercício dos poderes de arrecadação e de fiscalização desempenhados pela administração tributária. Não há, então, razão ou utilidade, sob o ponto de vista tributário, para incluir referido dado no documento fiscal de venda. 

Finalmente, não bastasse a inadequação e a desnecessidade, a exigência é desproporcional em sentido estrito:  na ponderação entre vantagens e desvantagens, as consequências que passam despercebidas no caso são extremamente gravosas ao indivíduo. Por conta desta prática, o Estado tem acesso a um banco gigantesco de informações sobre os hábitos de consumo de cada indivíduo. Esse acesso possibilita atividades de "profiling" e "data analysis" a partir dos bens e produtos que o cidadão utiliza e da frequência com que os consome. Tais atividades são consideradas de alto risco aos titulares de dados, não só porque revelam fatos sobre a vida privada e a intimidade de cada um (também protegidas no artigo 5º, inciso X), mas também porque podem conter informações que submetam os indivíduos a situações opressivas ou discriminatórias — e os casos são já por demais conhecidos na literatura contemporânea, do romance de George Orwell (1984) aos estudos de Frank Pasquale (The Black Box Society). Esse conjunto de informações pode ser o input para algoritmos que podem exacerbar a discriminação social e o monitoramento da vida dos cidadãos. 

Tudo considerado, se pensarmos com seriedade no dever de proteção dos direitos fundamentais que incumbe ao Estado, incluir o CPF na nota não realiza de modo ótimo a Constituição Federal, trazendo muito mais desvantagens e custos do que benefícios ao cidadão. Até que o Estado volte atrás nesta política de inclusão do CPF nas notas, ou até que o Judiciário profira decisão definitiva pela ilegalidade e inconstitucionalidade desta prática, cumpre-nos, enquanto cidadãos, compreender o "trade-off" envolvido na participação desses programas fiscais de incentivo, nos quais são entregues ao poder do Estado, sabe-se lá para que fins, nossos dados pessoais e perfis de consumo.

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    é sócia coordenadora da área de Compliance de Silveiro Advogados, mestre e doutora em Direito pela UFRGS, mestre em Global Rule of Law pela Universidade de Gênova (Itália) e especialista em Gestão de Crise e em Cibersegurança para Gestores pelo MIT (EUA).

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    é advogado, sócio coordenador da área Tributária do escritório Silveiro Advogados, doutor e mestre em Direito Tributário pela UFRGS, professor do curso de especialização em Direito Tributário da PUC-RS/IET, professor de Direito Tributário da Fundação do Ministério Público (FMP) e da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), professor de Direito Financeiro e Fiscal da Escola dos juízes federais do RS (Esmafe), consultor de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Rio de Janeiro) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/RS.

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