Processo Novo

Novas e velhas questões sobre a admissibilidade do recurso especial

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

27 de abril de 2022, 8h00

O recurso especial é recurso de cabimento restrito e de fundamentação vinculada. Suas hipóteses de cabimento encontram-se expressamente previstas no artigo 105, inciso III da Constituição Federal. Ao julgar o mérito desse recurso, o Superior Tribunal de Justiça ocupa-se com a definição da inteligência da norma federal infraconstitucional, realizando função conhecida como nomofilática, e, sendo o caso, desempenha também a função "dikelógica", julgando o caso concreto. No ponto, o recurso especial assemelha-se ao recurso extraordinário, dirigido ao Supremo Tribunal Federal, sendo este ligado à norma constitucional federal.

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De certo modo, com a Constituição Federal de 1988 esses dois recursos nasceram como "irmãos" [1]. As várias reformas constitucionais e o intenso e criativo labor jurisprudencial realizado pelo Supremo Tribunal Federal fizeram com que esses recursos fossem se distanciando, em vários pontos, embora ainda remanesçam muitas semelhanças entre eles. Dentre elas, talvez a que mais chama a atenção de quem diariamente labuta com esses meios de impugnação consista no rigor formal a ser observado em sua confecção.

Há requisitos que decorrem da própria natureza de tal espécie recursal. A exigência de prequestionamento, por exemplo, é intrinsecamente ligada à razão de ser desses recursos. Com efeito, não se discutindo sobre o sentido da norma federal na decisão proferida pelo tribunal de origem, não se justifica a atuação da corte superior.

Outros requisitos, no entanto, não se justificam.

Por exemplo, o artigo 1.035, § 2.º, do Código de Processo Civil de 2015, diversamente do que o fazia o artigo 543-A, § 2.º, do Código de 1973, não mais impõe que a repercussão geral da questão constitucional seja demonstrada pela parte em preliminar do recurso extraordinário, mas o Supremo Tribunal Federal continua a exigi-lo. Trata-se, aliás, de algo previsto no Regimento Interno do Supremo (cf. artigo 13, inciso V, alínea "c", na redação da Emenda Regimental 54/2020, que textualmente considera "manifestamente" inadmissível o recurso extraordinário que não contenha "preliminar formal e fundamentada de repercussão geral"). Enquanto não sobrevém reforma regimental e giro na jurisprudência do Supremo a respeito, resta às partes tomar cuidado redobrado, alegando a matéria em preliminar, e não apenas no corpo das razões recursais.

Voltemos nossa atenção ao recurso especial.

O Superior Tribunal de Justiça concluiu importante julgamento no dia 20/4/2022, aprovando orientação que vem sendo anunciada como uma mitigação do formalismo exigido para a admissibilidade do recurso especial. A decisão, proferida pela Corte Especial do tribunal, se deu no julgamento dos embargos de divergência em agravo em recurso especial (EAREsp) nº 1.672.966, opostos contra acórdão proferido pela 4ª Turma do tribunal [2].

Em reiteradas decisões, manifestava-se o tribunal superior no sentido de que "a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta que, na interposição do recurso especial, com fundamento no artigo 105, inciso III, da Constituição Federal, é preciso particularizar a alínea do dispositivo constitucional em que está fundado o recurso", e que "a falta desse pressuposto configura deficiência de fundamentação, inviabilizando o conhecimento do recurso especial, ante a incidência da Súmula 284 do STF por analogia" (AgInt no AREsp 1.817.491, citado aqui apenas a título exemplificativo). Nos embargos de divergência acima referidos, a parte embargante requereu a aplicação desse entendimento para que o recurso especial interposto não fosse admitido.

O julgamento dos embargos de divergência pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça teve início em 1/9/2021. Num primeiro momento, a relatora, ministra Laurita Vaz, manifestou-se no sentido de que, se as razões recursais demonstram, de forma inequívoca, o cabimento do recurso, segundo os casos previstos na Constituição Federal, "dispensa-se a indicação expressa da alínea do permissivo constitucional em que se funda o recurso especial, mitigando o rigor formal, em homenagem aos princípios da instrumentalidade das formas e da efetividade do processo, a fim de dar concretude ao princípio constitucional do devido processo legal em sua dimensão substantiva de razoabilidade e proporcionalidade" (transcrevo aqui a partir do vídeo do julgamento, disponível aqui, já que o inteiro teor do acórdão, até o momento da publicação do presente texto, ainda não foi publicado).

Esse entendimento, de fato, significaria uma evolução da jurisprudência do Tribunal em relação àquela orientação mais restritiva, indicada acima. No entanto, após intenso debate, acabou prevalecendo a seguinte orientação (que transcrevo a partir do vídeo da 2ª parte do julgamento, realizada em 20/4/2022, disponível aqui): "A falta de indicação expressa da norma constitucional que autoriza a interposição do recurso especial (alíneas 'a', 'b' e 'c' do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal) implica o seu não conhecimento pela incidência da Súmula 284 do STF, salvo, em caráter excepcional, se as razões recursais conseguem demonstrar, de forma inequívoca, o seu cabimento".

Vê-se, assim, que, como regra, continua-se a exigir a indicação da alínea do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal em que se funda o recurso especial. Por exemplo, não basta alegar que a decisão recorrida viola algum artigo do Código Civil, mas é necessário apontar que o recurso se assenta na alínea "a" da referida disposição constitucional. Ainda, não é suficiente alegar que o acórdão recorrido adotou solução distinta da acolhida por outro tribunal, sendo necessário deixar expresso que o recurso especial se justifica com base na alínea "c" do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal. Essa é a regra geral, segundo se decidiu, só podendo ser deixada de lado "em caráter excepcional, se as razões recursais conseguem demonstrar, de forma inequívoca, o seu cabimento".

Interessante notar que já havia decisões apontando no sentido de que essa exceção poderia vir a tornar-se regra, e o acórdão proferido pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, mantido pela Corte especial por ocasião do julgamento dos embargos de divergência, já parecia se inspirar em novos ventos, soprados, inclusive, pelo Código de Processo Civil de 2015. Consta da fundamentação do acórdão (íntegra disponível aqui):

"A agravante sustenta, em síntese, que a decisão agravada não observou a orientação do AgRg nos EAREsp 278.959/MG (relator ministro Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 6/4/2016, DJe 6/5/2016) e não aplicou o entendimento consolidado no enunciado nº 284 da Súmula do STF, bem como que a ora agravada não demonstrou o dissídio jurisprudencial em seu recurso especial. Em primeiro lugar, com relação ao citado precedente da Corte Especial, cumpre observar que se trata de julgamento de recurso interposto na vigência do CPC/1973, enquanto o caso dos autos trata de especial interposto quando em vigor o CPC/2015. A ora agravante deveria ter fundado sua alegação em precedente da Corte Especial decidido à luz do CPC/2015 e submetido a amplo contraditório — o que não ocorreu. […] De outro lado, quanto à aplicação da Súmula n. 284 do STF ('É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia'), reitero que o especial foi suficientemente fundamentado, tendo argumentado a recorrente, ora agravada, que o acórdão recorrido teria violado o § 2º do artigo 1.018 do CPC/2015 e divergido de julgados desta Corte Superior. Com efeito, os argumentos formulados permitiram a plena compreensão da controvérsia e da alegação de violação da lei federal. Lembre-se, aliás, que fundamentação sucinta não se confunde com ausência de motivação. Nesses termos, irretocável a decisão que afastou a aplicação da referida súmula do STF".

Vê-se que, embora essa decisão tenha sido mantida, sua ratio não se coaduna com manifestada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na decisão acima proferida. A exigência de indicação da alínea do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, assim, continua a ser formalidade a ser observada como regra pela parte em suas razões de recurso especial, só podendo ser dispensada "em caráter excepcional". Esta exigência, aliás, encontra-se presente também no artigo 321, caput, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (na redação da Emenda Regimental 12, do longínquo ano de 2003).

A meu ver, e ao contrário do que muitos têm afirmado, a orientação que acaba de ser manifestada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça não significa efetivo avanço em relação àquela tendência mais restritiva. Ao contrário, essa orientação é, agora, enfatizada como regra geral. Espero que a Corte Especial tenha oportunidade de se manifestar novamente sobre o tema, deixando de lado essa formalidade, que, como apontou a 4ª Turma da corte ao proferir o acórdão que restou mantido, é desnecessária e incompatível com o Código de Processo Civil de 2015.

 


[1] A afirmação é feita, aqui, grosso modo, em simplificação para fins didáticos. O assunto é muito complexo e amplo, e dele venho tratando em vários de meus livros. Cf., dentre outros, Prequestionamento, Repercussão Geral da Questão Constitucional, Relevância da Questão Federal: Admissibilidade, Processamento e Julgamento dos Recursos Extraordinário e Especial, 7ª ed., 2017, Constituição Federal Comentada, 7º ed., 2022, comentário aos artigos 102 e 105 da Constituição, e Código de Processo Civil Comentado, 8ª ed., 2022, comentário aos artigos 1.029 e seguintes do Código, todos publicados pela editora Revista dos Tribunais (mais informações aqui).

[2] Fiz menção ao referido julgamento, embora sob outra perspectiva, em vídeo que se encontra disponível em meu canal no Youtube, aqui.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense, professor associado na UEM, advogado, árbitro e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

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