Opinião

Juízo de prelibação judicial em casos de oferecimento de benefícios processuais

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27 de abril de 2022, 7h06

Não é novidade que desde a promulgação da Lei 9.099/95, a Lei dos Juizados Especiais, pode-se observar uma tentativa de, em nome de uma espécie de celeridade da prestação jurisdicional, reduzir e simplificar a aplicação da lei penal nos casos de crimes entendidos como de "pequena gravidade".

Tamanha é a empolgação com esses institutos — despenalizadores —, que acertadamente o professor Miguel Reale Júnior os descreve como sendo fruto de um entusiasmo eficientista [1]. É possível perceber o acerto do vaticínio do professor quando se tem em perspectiva que após 2009, data de seu citado estudo, as alterações legislativas nos âmbitos dos juizados especiais como o aumento da pena mínima dos crimes entendidos como de menor potencial ofensivo e até mesmo do robustecimento dos acordos na seara criminal não satisfizeram o entusiasmo legislativo, tendo se operado a introdução no ordenamento brasileiro, por intermédio da Lei 13.964/19, da figura do acordo de não persecução penal, cuja aplicação deixou de ser restrita aos crimes de "pouca gravidade" e passou a abranger os delitos cuja pena mínima em abstrato seja inferior a quatro anos.

Não se trata o texto, porém, de uma defesa ou de um ataque a essas figuras. O que se reputa como importante apontar é que, dentre todas as diferenças e semelhanças entre si, um requisito para a aplicação da transação penal e do acordo de não persecução penal salta aos olhos: a exigência de que o quanto a ser transacionado constitua objeto de uma ação penal cuja viabilidade possa se vislumbrar.

Tem-se observado na prática forense que em muitos casos o Ministério Público, ao tomar conhecimento de notícia de eventual conduta delitiva, principalmente quando se trata de fatos que, em tese, subsomem-se a um desses delitos abrangidos pelos institutos despenalizadores, oferece, sem o devido cuidado e sem a diligência que lhes é comum, propostas de transação penal e, quando incabível, propostas de acordo de não persecução penal.

E é aqui onde se encontra o problema: em algumas ocasiões essas propostas versam sobre fatos que nem em tese encontram guarida em quaisquer dos tipos penais dispostos em nosso ordenamento jurídico. Parece óbvio, portanto, ainda mais tendo-se em mente a imposição legal, que o correto seria a promoção pelo arquivamento dos autos, e não a — confortável — propositura de acordos penais.

Nesse sentido, não pode o magistrado responsável pela homologação do acordo ser um mero mensageiro. Não se espera que o julgador seja somente um espectador de propostas absurdas e violadoras do devido processo legal, nem que somente cite o réu para que esse se manifeste a respeito da aceitação ou não dos termos propostos pela acusação.

Ainda que em um juízo de prelibação, de cognição sumaríssima, cabe ao magistrado a análise de o objeto da proposta tratar-se de uma conduta, ao menos em tese, criminosa. Não se defende uma usurpação de atribuições ministeriais por parte do juízo, não se olvida que a regra de nosso Processo Penal é a titularidade da ação penal ser do Ministério Público. Todavia, não se pode tudo em nome dessa titularidade. É função jusrisdicional do julgador zelar e prover por um correto andamento processual, respeitando os princípios constitucionais e as garantias individuais de cada um dos cidadãos, sendo imperiosa a atuação do magistrado nos casos de abusos acusatórios. Não por outra razão, se extrai do parágrafo 3º do artigo 76, da Lei 9.099/95, que o acordo realizado entre as partes será submetido à apreciação do magistrado.

É dizer, portanto, que se o Ministério Público não observar os parâmetros impostos pela legislação e agir de encontro com o que dita a normativa legal, cabe ao magistrado verificar a legalidade e a viabilidade da proposta apresentada, não homologando a proposta e determinando o arquivamento do feito — enquanto ainda não vigente a nova redação do artigo 28, do Código de Processo Penal — quando perceber que a atuação da acusação encontra-se em descompasso com o ordenamento jurídico.

Pode-se concluir, então, que cabe, ou deveria caber ao Ministério Público, um juízo mais cuidadoso, seja no campo processual seja no campo do direito material, para que não sejam oferecidos acordos em situações que indiscutivelmente não há que se falar em conduta delitiva. Ainda assim, sendo certo que todos estamos sujeitos a eventuais descuidos e falhas nas tomadas de decisão, deve o magistrado filtrar e verificar, como dito, a viabilidade e o cabimento do acordo, recusando aqueles em que se percebe um desrespeito flagrante às leis penais, determinando o arquivamento do procedimento – novamente se faz uma ressalva quanto a vigência do art. 28 do Código de Processo Penal. Por fim, como último bastião da correta aplicação da lei, algo inerente à sua função, deve o advogado se atentar e observar se realmente está diante de um caso criminal, requerendo ao Juízo, caso não esteja, o trancamento do feito por meio de uma petição simples ou até mesmo por meio de um dos remédios constitucionais, a depender de se tratar o acusado de uma pessoa física ou jurídica, sob pena de permitir que ocorra uma espécie de injustiça célere [2].

 


[1] JÚNIOR, Miguel Reale. Revista de Ciências Penais. jul-dez 2008, p. 338

[2] JÚNIOR, Miguel Reale. Revista de Ciências Penais. jul-dez 2008, p. 334

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