Não ao fim das cotas raciais na cidade de São Paulo
27 de abril de 2022, 15h28
"O opressor não seria tão forte se não tivesse
cúmplices entre os próprios oprimidos"
Simone de Beauvoir
No último dia 6 de abril foi aprovado, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) [1] da Câmara Municipal de São Paulo, o Projeto de Lei (PL) 71/2022, de autoria do vereador Fernando Holiday, que propõe a criação das quotas sociais para concursos públicos na cidade de São Paulo, projeto que, na prática, extingue as quotas raciais atualmente vigentes na cidade. Conforme a justificativa do projeto, as desigualdades residem apenas nas condições materiais das pessoas, não no âmbito da raça/etnia.
Na chamada CCJ, a votação foi apertada, tendo sido a aprovação por 5 a 4 votos, graças ao voto de minerva da parlamentar Sandra Santana (PSDB), e deve seguir para o plenário, se passar pelas demais comissões da Casa.
Não é a primeira tentativa do parlamentar (negro) de destruir a cota racial em concursos públicos da cidade de São Paulo, uma vez que em 2019, ciente da fragorosa derrota em plenário, o edil retirou o então PL 19/2019 [2], na época, considerado inoportuno pelas comissões de mérito da Casa. A iniciativa, naquela ocasião, mesmo após inúmeros recursos de Fernando e diante de inúmeros protestos do movimento negro organizado, foi para o arquivo.
Em 14 de setembro de 2021, o edil novamente ataca as cotas raciais [3], desta vez, com a tentativa de inserir um "jabuti" sobre o tema no corpo do PL 497/2021, alterando apenas o termo "cota racial" para "cota social" nas leis 13.791/2004 e 15.939/2013, com o apoio do colega vereador Rubinho Nunes (PSL). Os debates se seguiram, mas o golpe legislativo contra as cotas raciais foi derrotado em plenário, relegando a proposta novamente ao arquivo!
Ações afirmativas (gênero) e cotas raciais (espécie) representam verdadeiros instrumentos de inclusão social. Ações afirmativas são políticas públicas compensatórias, criadas e adotadas para amenizar os efeitos de um histórico de discriminação e realizam um propósito público fundamental para o nosso desenho democrático: garantir a diversidade e a pluralidade social. Em verdade, medidas concretas que viabilizam o direito fundamental à igualdade, que deve estar em harmonia com o respeito à diferença e à diversidade.
O presente PL 71/2022 requenta a discussão e, em ano eleitoral, do velho adágio de que os critérios sociais são mais objetivos, como se a pobreza, a baixa escolaridade e a impossibilidade de ascensão social não tivessem etnia definida no Brasil! Basta verificar qualquer índice oficial para sabermos que a base da pirâmide social brasileira é formada em sua maioria, por pessoas negras e pardas, ou seja, por afrodescendentes!
Os dados revelados pela pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça Brasil, do IBGE de 2019 [4] mostram que dos 13,5 milhões de brasileiros que vivem em extrema pobreza, 10,1 milhões se autodeclaram pretos e pardos! A mesma pesquisa mostra que apenas 29,9% dos cargos gerenciais no mercado de trabalho são ocupados por negros e pardos, que também são apenas 24,4% dos deputados federais eleitos em 2018.
A extinção das cotas raciais no âmbito do município de São Paulo representa grave retrocesso na política pública mais legítima e representativa da população paulistana. O acesso aos cargos públicos ganhou em democracia e pluralidade.
O mais grave é que a tal "cota social" só pode ser preenchida por quem está inscrito em programas sociais (como o bolsa família, o aluguel social, etc) acaba por deturpar o significado inicial das políticas de cotas, ou seja, dar visibilidade e oportunidade para que a população negra seja inserida nos cargos de comando, de ascensão social, como médicos, advogados, assistentes sociais, engenheiros, arquitetos, etc.
A população inscrita nos chamados programas sociais, mesmo sendo de maioria negra ou parda, acabam por se caracterizarem pela baixa escolaridade, o que impede o acesso a bons cargos, impede a representatividade e mantém a massa de trabalhadores negros engajados em empregos subalternos, de baixa relevância social e financeira. Na prática, a medida oficializa que o negro só pode exercer empregos de "gola azul" ou técnicos de baixa escolaridade, mantendo o grilhão que impede a inserção e ascensão social do afrodescendente brasileiro.
Por tudo isso e, além, pela vitória que as políticas de cotas em universidades e cargos públicos tem alcançado em todo o país, segundo todos os índices e estudos científicos e sociais, clamamos ao povo paulistano que impeça mais esse ataque aos direitos étnico-raciais consagrados no Estatuto da Igualdade Racial e em suas legislações correlatas.
Por fim, deixamos uma máxima sobre a igualdade formal perante a lei: "A majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão" (Anatole France).
[4] https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_notas_tecnicas.pdf
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