Opinião

Por que o STF vai julgar inconstitucional o decreto que concedeu indulto

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27 de abril de 2022, 14h03

A concessão da graça para o deputado federal Daniel Silveira suscitou um debate sobre a possibilidade de o Poder Judiciário intervir na decisão tomada pelo presidente da República. Num extremo, há quem sustente a tese de que o Poder Judiciário tem competência para apreciar o ato praticado em todas as suas dimensões. Noutro, há quem diga que a decisão é soberana e não pode ser controlada sob nenhuma perspectiva. Entre um polo e outro há várias posições intermediárias, cada qual sustentando critérios distintos.

Sob a perspectiva constitucional, uma interpretação deve passar pelo teste da adequação, que impõe que ela seja coerente com as nossas práticas institucionais, inclusive com os precedentes anteriores sobre o tema e demais dispositivos constitucionais. Assim, por exemplo, em um Estado laico, não é adequada a justificativa de que a norma de imunidade religiosa existe para agradar a Deus, porque essa proposição não é coerente com as outras normas que compõem o direito positivo. Ela não se ajusta minimamente às explicações compartilhadas de o porquê a Constituição ter impedido as entidades federativas de exigirem impostos dos templos religiosos. A afirmação adequada é de que essa imunidade existe para promover a liberdade religiosa, por se ajustar ao artigo 5º, inciso VI [1], da Constituição.

A ideia de que o Judiciário pode substituir livremente a decisão tomada pelo presidente da República e a ideia de que o mandatário decide soberanamente e sem qualquer limite não passam por esse teste. Ambas as perspectivas são rechaçadas há tempo pela Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Citamos, como exemplos, a decisão tomada no MS 34.070, em que o ministro Gilmar Mendes suspendeu a posse de Lula como ministro; o MS 37.097, em que o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação do diretor da Polícia Federal pelo presidente da República; e a ADIN 5.874, em que a Corte reconheceu a Constitucionalidade do indulto realizado pelo presidente Michel Temer. Em todos esses precedentes, a Corte entendeu que não é possível ao Poder Judiciário avaliar a conveniência e oportunidade de um ato político, mas que deve intervir se o ato ofender as limitações constitucionais expressas ou as limitações constitucionais implícitas.

Quais são, então, as hipóteses de limitações expressas e de limitações implícitas que o ato de indulto do presidente da República deve observar?

As limitações expressas se encontram no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, que veda a concessão de graça ou anistia aos crimes de tortura, tráfico ilícito de drogas, terrorismo e aos crimes definidos em lei como hediondos.

A limitações implícitas são aquelas mencionadas pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADIN 5.874. Segundo o voto vencedor, são três limitações: o Presidente da República não pode conceder indulto a crimes objetos de pedido extradicional [2]; os motivos invocados pelo Presidente da República devem corresponder aos fundamentos fáticos e jurídicos do ato; o fim perseguido deve ser compatível com a Constituição.

No caso em discussão, não há dúvidas de que não houve desrespeito às limitações expressas, uma vez que o delito pelo qual o Deputado foi condenado não se encontra arrolado pelo artigo 5º, inciso XLIII. Também não houve ofensa à primeira limitação implícita, porque o caso não envolve pedido de extradição.

Assim, o Supremo Tribunal Federal somente deve intervir se constatar ofensa à segunda ou à terceira limitação implícita.

A segunda limitação implícita nada mais é do que a incorporação da teoria dos motivos determinantes. Essa teoria, que encontra amparo na doutrina e na jurisprudência, propugna que a validade do ato fica condicionada à veracidade dos motivos invocados. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, "a invocação de motivos de fato falsos, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato".

No caso, o presidente da República fundamentou o indulto com base na legislação constitucional que estabelece a competência dele para fazê-lo (fundamentos jurídicos) e na premissa fática de que "a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão".

Do nosso ponto de vista, os fatos elencados não são verdadeiros, porque não houve comoção social em defesa do parlamentar condenado, mas tão somente irresignação de uma pequena parcela da sociedade que possui alinhamento ideológico com o presidente. Não existiram manifestações expressivas nas ruas, protestos de entidades com representatividade relevante ou iniciativas congressuais com o objetivo de reverter a condenação. Ademais, na única oportunidade em que se manifestou, o Congresso chancelou a prisão que havia sido determinada pelo STF.

Assim, pensamos que o Supremo reconhecerá a nulidade do ato de indulto com base dissociação entre os motivos invocados e os fatos efetivamente ocorridos (segundo limite implícito).

A terceira limitação implícita exige que a finalidade do indulto seja compatível com a Constituição. Ao julgar a ADI 5.874, os ministros do Supremo invocaram algumas situações que podem ensejar o reconhecimento do desvio de finalidade. Dentre elas, mencionou-se a utilização do indulto para favorecer aliados e a utilização do indulto para promover fins que são incompatíveis com o texto constitucional.

No caso da graça concedida ao deputado Daniel Silveira, entendemos que há desvio de finalidade nessas duas perspectivas.

Há desvio de finalidade na primeira perspectiva porque, diferentemente dos outros decretos de indulto, não há razões humanitárias ou razões embasadas em políticas criminais que justifiquem a benesse. O deputado não tem a saúde debilitada, não cumpriu parcela significativa da pena e não é o único responsável por exercer o poder familiar de crianças. As únicas justificativas que explicam a decisão são o fato de o deputado ser aliado do presidente e a circunstância de o presidente não concordar com a decisão do Poder Judiciário.

Há desvio de finalidade na segunda perspectiva porque o presidente promove, por meio do decreto de indulto, uma concepção de liberdade de expressão que é rejeitada pelo Supremo há décadas. Em 2003, ao julgar o caso Ellwanger, a Corte já afirmava que "o direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal". "As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, §2º, primeira parte)."

No julgamento do deputado Daniel Silveira, a Corte manteve essa linha interpretativa. Nas palavras do relator, "liberdade de expressão existe para manifestação de opiniões contrárias, para opiniões jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas". "Mas não para imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o Estado de Direito e a democracia".

Portanto, pensamos que o Supremo reconhecerá a nulidade do ato de indulto também com base no desvio de finalidade (terceiro limite implícito).


[1] Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

[2] EXT 1435/DF (2 Turma, j. 29/11/2016)

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