Escritos de Mulher

Ao arrepio da Constituição, promotores disputam eleições e seguem remunerados

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

27 de abril de 2022, 16h28

 O Diário Oficial publicou o licenciamento — afastamento temporário — de três promotores e uma promotora do Ministério Público do Estado de São Paulo para participarem de eleições para cargos legislativos que acontecerão neste ano.

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Trata-se de licença remunerada. Os promotores receberão seus salários pelo período de seis meses para se dedicarem à disputa eleitoral e, caso não sejam eleitos, voltam para suas funções.

O que chama atenção nesses atos é que foi deferida, ao arrepio da Constituição, licença para dois promotores que ingressaram no Ministério Público depois de 5/10/1988.

Essa data é o marco estabelecido na Carta Magna para permitir que promotores possam participar de eleições, e, por consequência, possam se afastar de forma remunerada de seus cargos, no período de seis meses que antecedem as eleições.

Esse quadro causa enorme espanto porque o Ministério Público tem a função constitucional de defesa do regime democrático, nos termos do artigo 127 da Constituição Federal e, ao afastar promotores, ao arrepio da norma constitucional, rompe com esta incumbência maior.

Pois bem, a Constituição Federal de 1988 estabelece uma série de vedações aos membros do Ministério Público. Dentre elas tínhamos o artigo 128, § 5º, II, 'e, que determinava a proibição de: exercer atividade político partidária, salvo exceções previstas em lei.

A exceção existente era a prevista na própria CF, no artigo 29, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que permitia a atividade político partidária aos que ingressaram na carreira, antes da sua promulgação, ao dispor: "Poderá optar pelo regime anterior, no que respeita às garantias e vantagens, o membro do Ministério Público admitido antes da promulgação da Constituição, observando-se, quanto às vedações, a situação jurídica na data desta".

Em 2004, tivemos a Emenda Constitucional 45, que retirou a expressão final que havia na redação original do artigo 128 acima referido: "salvo exceções previstas em lei". Trata-se de norma de aplicação imediata e que não fixou qualquer ressalva, abrangendo tanto os que entraram nos quadros do Ministério Público, antes ou depois da emenda. Houve supressão para exceções legais, mantendo, portanto a única possibilidade de participação de disputa eleitoral, que é o das disposições transitórias. Caso o constituinte derivado quisesse impor alguma exceção ao regime jurídico que instaurava em 2004, faria expressamente, tal como ocorreu na redação originária.

Além dos dois promotores de São Paulo, que ingressaram após a CF/88, também houve tentativa infrutífera de afastamento temporário no estado de Mato Grosso do Sul para um promotor que ingressou no MP pós CF/88 para concorrer ao cargo de prefeito, mas lá a Justiça Eleitoral já se manifestou, em brilhante sentença de lavra do juiz Roberto Ferreira Filho, confirmada por acórdão do TRE-MS.

Na sentença, o magistrado apresenta minucioso levantamento sobre a posição do Poder Judiciário sobre a temática e também indicações doutrinárias. É uma grande aula! Dela extraio algumas das decisões apontadas nos campos jurisdicional, consultivo e normativo do TSE.

O magistrado indica que, na função consultiva, o TSE consignou que a EC 45/2004 alcança os integrantes do Ministério Público que ingressaram na carreira no período compreendido entre a promulgação da CF e o advento dessa EC e que os constituintes não apresentaram qualquer regra de transição, de modo que, para se tornarem elegíveis, devem se afastar de forma definitiva de seus cargos (consultas TSE número 1.153/2005; consulta número 1.154, de 2006; consulta 1508-89.2011.6.00.0000, de 2011).

O TSE, na função normativa, editou duas resoluções pós EC/45 nas quais tratou da participação de juízes e promotores, sem qualquer ressalva aos que ingressaram no interregno entre a CF/88 e a EC/45, estabelecendo que devem se afastar definitivamente de suas funções (Resolução 22.156/2006, artigo13; Resolução 22.717/2008, artigo 17).

Para além das consultas e resoluções, o magistrado aponta decisão do TSE, que também determinou que membros do Ministério Público só podem ser candidatos se houver afastamento definitivo do cargo, indeferindo candidaturas que não cumpriram a exigência (a exemplo — TSE, Respe 26673-PI, 2006).

Na esfera do Supremo Tribunal Federal, importante lembrar o julgamento da ADPF 388, de 2016, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que decidiu que membros do Ministério Público não podem ocupar cargo público fora da instituição, salvo os apontados pela própria Constituição. O STF determinou que promotores e procuradores, muitos do estado de São Paulo, voltassem para os seus cargos e carreiras.

Nesse julgamento, o STF não tratou da ótica dos direitos políticos, pois se referia à cláusula de vedação do artigo 128, § 5º, inciso II, alínea "d" da CF (exercer qualquer outra função pública , salvo uma de magistério). Porém, foram estabelecidas as premissas que estruturam o Ministério Público, na intersecção com o Estado democrático de Direito e, foram repassadas as razões pelas quais o Ministério Público foi retirado da alçada do poder Executivo, recebendo garantias e predicamentos, para que seus membros possam cumprir o seu largo mister e sua nova fisionomia.

Nesta medida, certamente se aplicam, do mesmo modo, para as questões eleitorais. A lógica das garantias e das vedação foi criar um Ministério Público que ficasse livre de injunções de outros poderes da República e de poderes econômicos. E, como dito pelo ministro relator, o objetivo era fortalecer esta instituição para que em hipótese alguma fique subordinada à interesses políticos e também para que não haja subordinação aos interesses políticos pessoais de seus membros.

As mazelas recentes do Brasil mostram bem a maior importância dessa preservação e como o constituinte estava repleto de razão.

Creio que o mais relevante apontamento a ser efeito se encontra na esfera jurisdicional. Trata-se da ADI nº 5.985, proposta pela Associação Nacional dos Procuradores da República, que objetiva impugnar vício de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 45, de 30/12/2004, atinente à exclusão, da expressão "salvo exceções previstas na lei".

A associação requereu a concessão de liminar para que sejam afastadas interpretações do artigo 128, § 5º, inciso II, alínea "e", da Constituição Federal no sentido de obstar, em absoluto, o exercício, pelos membros do Ministério Público, de atividade político-partidária. O STF, pelo ministro relator, indeferiu a liminar, inclusive com atenção ao largo tempo da vigência EC/45. A ação encontra-se em curso, com pareceres contrários da Advocacia Geral da União e Procuradoria Geral da República.

Logo, a norma encontra-se íntegra porque assim mantida pelo STF. Em assim sendo, compete a todos o seu fiel cumprimento.

Não é possível que cada instituição, cada cidadão, queira criar, de seus desejos, uma nova Constituição de sua praxis. O Estado Democrático de Direito exige que Ministério Público se curve à Constituição Federal e às decisões do Judiciário, que é o Poder que deve dizer se uma norma é ou não inconstitucional, seja pela via concentrada ou pela via difusa. Não é aceitável que uma instituição que deve salvaguardar a Lei Maior, seja a primeira a descumpri-la.

O mecanismo para retirar a validade de uma norma, todos da área do Direito conhecem. No caso específico, o Supremo Tribunal Federal foi acionado, não deu guarida ao pedido, no âmbito liminar, e o Ministério Público, de forma afrontosa, fecha os olhos, desconsidera o papel do Poder Judiciário e licencia promotores para disputarem eleições?

Não trato aqui do mérito da vedação. Se deveria ou não existir; se estabelecer limites para a capacidade eleitoral passiva para juízes e promotores fere ou não direitos fundamentais; se é permitido restrições para a capacidade eleitoral ativa ou passiva de qualquer cidadão.

A questão é que existe um sistema em que todos, inclusive e principalmente o Ministério Público, têm dever de subordinação absoluta à supremacia da Constituição.

Caso queiram exercer mandato eletivo e participar do processo eleitoral como candidatos, que se afastem definitivamente do Ministério Público (aposentando-se ou exonerando-se) ou que, antes disso, busquem mudar o conteúdo da Constituição, de forma legítima. Mas enquanto a norma estiver em vigência, não é permitido balbúrdia institucional e constitucional.

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