Opinião

Ainda a guerra fiscal do ICMS no Distrito Federal

Autor

  • Celso Alves Feitosa

    é advogado especialista em Direito Tributário consultor jurídico sócio fundador de Alves Feitosa Advogados Associados ex-juiz do TIT-SP (1988 a 2015) e ex-conselheiro no Conselho de Contribuintes/Carf (1987 a 2004).

27 de abril de 2022, 13h03

 A claudicante jurisprudência dos nossos tribunais, por certo, é de conhecimento de todos aqueles que operam, de alguma forma, com o direito brasileiro. E para uma grande parte desses operadores tal situação advém, originariamente, do primado atinente ao livre convencimento motivado do juiz, o qual, em meio às circunstâncias factuais e jurídicas de dado processo, dará corpo e contorno às suas autônomas convicções.

O problema, porém, ao nosso ver, é quando essa livre convicção desconsidera relevantes fatores exógenos que, uma vez renegados, acabam por comprometer o próprio direito que se busca preservar, indo de encontro com os interesses e anseios da sociedade que deveria ser tutelada, como um todo considerada, sobretudo quando não se mostram estabelecidos de forma clara, através de julgados oscilantes, critérios e condições claros e objetivos para fins de sua adoção com segurança.

Essa preocupação nos veio à lume, nesse exato momento, diante da recente, e, ferrenha divergência em âmbito do próprio STJ acerca da natureza jurídica a ser atribuída a dados planos de previdência privada aberta (PGBL e VGBL), cuja compreensão, se "investimentos", ou, se "seguros de vida", impacta sobremaneira a existência e tutela dos planos em si mesmos considerados, mormente em face de vários dos atos jurídicos típicos do nosso dia a dia, valendo citar, à guisa de exemplos, a partilha em divórcio, os seus efeitos pela morte de seu titular, as penhoras de forma geral etc., circunstâncias, que, em meio às intermináveis divergências de entendimento apenas acirram a insegurança e a instabilidade das  relações jurídicas.

Tal instabilidade torna à memória casos outros, igualmente emblemáticos e com forte potencial de prejuízos à Sociedade em que se inserem, em meio a tal inconstância decisória, destacando, como exemplo, agora, em âmbito tributário, a questão, incessante, da denominada "Guerra Fiscal" do ICMS entre Estados e Distrito Federal.

É, justamente, nesse contexto, diante das vicissitudes da jurisprudência pátria, que voltamos ao aludido tema, atinente à "Guerra Fiscal" do ICMS, mormente pelo grande valor jurídico que lhe sustenta, e, em especial, pela iminência de vermos respeitadas, ou, não, dadas balizas cujas naturezas, aliás, já lhes deveriam originariamente ser de ordem intransponível, com destaque, no que ora nos interessa, à segurança jurídica, à boa-fé e à isonomia diante de inúmeros contribuintes de ICMS do DF.

Como se sabe, já desde o século passado, idos dos anos 70, vem sendo tratada pelo Judiciário em todos os seus graus de jurisdição, e, em especial, pelo STF, a aludida e famigerada "Guerra Fiscal" do ICMS, entre Estados e DF, merecendo, por aqui, ênfase à situação jurídica de divergência anômala e atual que desse assunto se implantou em âmbito do TJ-DF, que, em diminuta fração, na ânsia pela validação do tributo distrital  ICMS, outrora alvo de benesse fiscal, vem relevando todos os massivos investimentos e geração de empregos realizados pelas empresas que no DF se estabeleceram acreditando nos benefícios que lhes eram oferecidos pela própria lei, ignorantes da verdadeira cilada jurídica que lhes espreitava.

Apenas a título argumentativo, destacamos, dentre outros, os seguintes benefícios fiscais na época concedidos pelo DF: 1) PRÓ-DF/Lei nº 2.483/1999; 2) TARE/Decreto nº 25.372/2004, e, 3)  REA/Lei nº 4.160/2008, julgados inconstitucionais pelo STF, situação, porém, que ao final foi solucionada em prol dos contribuintes por meio, inicialmente, da própria modulação de efeitos (ex nunc) de decisão proferida pelo Pretório Excelso no RE nº 628.075/RS, a respeito da "Guerra Fiscal", em conjunto com a edição da LC nº 160/2017 e do Convênio do Confaz nº 190/2017, reversão esta, que, segundo veiculado no Jornal Correio Brasiliense, acabou evitando um caos aos contribuintes que envolveria o valor de R$ 1,654 bilhão em descontos do ICMS a ser reclamado pelo DF diante, nada mais, nada menos, do que "duas mil empresas" [1].

Já no DF, não obstante as formas de solução da questão acima reportadas (RE nº 628.075/RS, LC e Convênio), verificou-se, nesse interim, uma resolução que se pode denominar como "caseira", pondo cobro à questão, ou, ao menos, assim se imaginava, cristalizada através da instituição de lei remissiva local, para tanto considerados, especificamente, os benefícios que haviam sido julgados então inconstitucionais, o que se verificou por meio da Lei Distrital nº 4.732/2011 (com redação conferida pela Lei Distrital n. 4.969/2012), veículo esse que teve sua eficácia chancelada tanto pelo Pleno do TJ-DF (ADI nº 2012.00.2.014916-6), como, ainda, mais recentemente, pelo próprio STF, isso por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 851.421/DF (Tema 817).

Entrementes, em que pese a profusão de decisões reconhecendo a validade da Lei Distrital nº 4.732/2011, inúmeras ações judiciais já tramitavam no DF, tratando do tema em foco  "Guerra Fiscal", especialmente, ações civis públicas propostas pelo MPDFT, figurando como réus tanto o próprio DF como as empresas tidas como beneficiadas por renúncia fiscal, ignorando o Parquet, como afirmado supra, os vultosos investimentos com instalações locais, expansão da indústria obreira local, a massiva criação de empregos, e, finalmente, via de consequência, o aumento da arrecadação do ICMS, em cifras jamais antes aventadas pelo ente distrital.

Nestas ações, com destaque para as ainda não encerradas, o MP-DF busca insistentemente retomar as verbas relativas às diferenças de ICMS que não foram pagas em decorrência dos benefícios fiscais já aludidos, a despeito do quanto já decidido pelo STF nos RE nºs. 628.075/RS e 851.421/DF (este, alusivo à ADI nº 2012.00.2.014916-6), e, sem embrago, ainda, do quanto disposto na LC nº 160/2017 e no Convênio do Confaz nº 190/2017, aqui nos encontrando, finalmente, com a motivação do presente artigo.

De fato, preocupa-nos sobremaneira, tal como ocorrido envolvendo o tema PGBL versus VGBL, recente e infundada oscilação na jurisprudência do TJ-DF, ainda que em parcela reduzida de seus componentes, o que tem colocado em risco, sobremaneira, os primados da segurança jurídica, da boa-fé e da igualdade dos contribuintes de ICMS do Distrito Federal, que, em razão de tais julgados, entendimento minoritário, repita-se, estão sendo expostos a condenações sabidamente indevidas.

Com efeito, insiste o MP-DF na cobrança de importâncias que sabe não fazer jus, especialmente pela via estreita das ações intentadas inicialmente contra o Estado e contra as empresas beneficiadas pelas aludidas renúncias fiscais do ICMS. Ou seja, foram propostas ações civis públicas objetivando que o DF lançasse e cobrasse a diferença de imposto das empresas beneficiadas por TAREs (e afins) tidos pelo Parquet como ilegítimos.

Tais ações nasceram, portanto, originariamente, sob expressa roupagem tributária, mas, atualmente, se transmudaram, em fase de cumprimento de sentença, em demandas de cunho meramente indenizatório, lastreadas então, na reta final, em suposto dano ao Erário, isso, em razão de estratégia engendrada pelo MP-DF ante a impossibilidade da constituição formal do crédito tributário pelo próprio DF, situação que deixou  o Parquet de mão atadas para valer-se do tão desejado "valor" das diferenças de ICMS fruto dos benefícios fiscais já referidos.

Agora, afirma o MP, que os valores inicialmente reclamados a título de diferenças de ICMS não eram "tributos" mas sim, "indenização". Claro está que busca o Parquet, a qualquer custo, talvez tentando evitar as igualmente vultosas condenações por reclamação judicial indevida, uma distorcida reparação de dano ao Erário, fazendo-o, como já dito, em cumprimentos de sentenças conforme "supostos" êxitos que teve em suas ações.

É, justamente, nesse contexto, esclareça-se, que o próprio DF, então vencido nas ações intentadas pelo MP, vem editar a sua lei remissiva, perdoando todas as supostas dívidas de ICMS decorrentes da declaração de inconstitucionalidade dos benefícios fiscais que haviam sido outorgados, fazendo-o para extinguir os créditos tributários em questão, à luz do artigo 156, IV, do CTN, valendo lembrar que tal lei remissiva foi declarada constitucional pelo Pleno do próprio TJ (ADI nº 2012.00.2.014916-6), e, mais recentemente, também pelo próprio STF (RE nº 851421/DF), a despeito de o MP e parte minoritária do TJ-DF disto parecerem fazer, sempre com o máximo respeito, vistas grossas.

As indevidas cobranças, em sua grande maioria, tiveram, desde logo, a validação da remissão tributária aludida, restando, portanto, regularmente extintas, e, vencido o MP, a exemplo do quanto ocorrido nos processos nºs. 0711319-88.2019.8.07.0000; 0102091-63.2004.8.07.0001; 0715986-20.2019.8.07.0000, e, 0704346-20.2019.8.07.0000.

Outros processos, de seu turno, foram sobrestados pelo TJ-DF, isso, por conta da aguardada decisão do STF no RE nº 851421/DF, estando, agora, a depender da retomada de seus julgamentos, a exemplo do quanto se verifica nos processos nº 0714725-20.2019.8.07.0000, e, 0706490-64.2019.8.07.0000.

Em alguns outros, poucos, restou invalidada a remissão outorgada pela Lei Distrital nº 4.732/2011 (com redação conferida pela Lei Distrital nº 4.969/2012), com destaque aos processos nºs. 0715390-36.2019.8.07.0000, e, 0712369-86.2018.8.07.0000, julgamentos sempre verificados no âmbito, minoritário, da c. 3ª Turma, do TJ-DF, tornando escancarada a oscilante orientação jurisprudencial no trato deste importante tema, o que mais ainda reforça a perda de norte jurisprudencial confiável por parte do contribuinte, deixado à sorte nesta resolução bipolar do conflito. Indevidas cobranças milionárias são sumariamente extintas pela quase totalidade das c. Turmas do TJ, entendimento do qual, entrementes, divergem isoladamente alguns poucos Julgadores, submetendo o jurisdicionado à sorte, e, não, à Justiça!

De fato, a despeito do quanto decidido pelo STF nos RE nº 628.075/RS e nº RE 851.421/DF, pelo Pleno do próprio TJ-DF (ADI nº 2012.00.2.014916-6), e, sem embargo do quanto disposto na LC nº 160/2017 e no Convênio do Confaz nº 190/2017, parte da aludida c. 3ª Turma, do TJ-DF, em decorrência de composições julgadoras de momento, exara entendimento contrário aos contribuintes, desprezando as declarações de constitucionalidade da lei remissiva distrital, certamente, porque mal influenciada pela tese processual do Parquet, em seus cumprimentos de sentença, no sentido de não se estar diante de pretensão com natureza tributária (diferenças de ICMS), mas, sim, em meio a desejado ressarcimento por dano ao Erário Distrital.

Essa distorcida influência exercida pelo MP, de fato, causa  inquietação, pois, tal órgão, ao literalmente metamorfosear a abordagem tributária da coisa julgada anteriormente obtida nas suas ações civis públicas intentadas, ao lhes dar contornos apenas de veículos recompositores de dano ao patrimônio público, indenizável, a despeito de estar-se em meio a não recolhimento de diferenças de ICMS, passa a atuar, a bem da verdade, de forma disruptiva. Disruptiva, porém, com o próprio direito, o que se apresenta, ao nosso ver, sobremaneira temerário.

Ao afirmar o Parquet, como o tem feito em suas investidas processuais, que o julgamento pelo STF do RE 851.421/DF até pode ter influência quanto ao objeto das ações civis públicas, mas, porém, que a desconstituição da coisa julgada nelas formada somente poderia se dar pela via de ação rescisória, ou, insistir na tese de que a causa de pedir e o pedido das ações civis públicas são distintos dos atinentes ao processo relativo ao RE 851.421/DF, já que neste se almeja a inconstitucionalidade da Lei Distrital nº 4.732/2011, que concedeu remissão de débitos decorrentes do ICMS já constituído, enquanto naquelas ações, o que se pretende é a anulação de "contrato ilegal" que gerou danos ao erário, ainda que relacionado ao mesmo tributo, nos soa senão de forma subversiva ao Direito, ao menos, conspiratória a ideais em nada republicanos.

Não há negar que o instituto da coisa julgada se perfez em tais processos (ações civis públicas). Porém, com a nova decisão do STF o que se viu foi uma alteração da eficácia das respectivas decisões transitadas em julgado nas referidas ações civis públicas, que, portanto, se esvaziaram, sem, porém, ofender o que lá restou decidido. A res iudicata está presente, mas desprovida, por sua vez, de efeitos.

Como já aventamos em trabalho anterior sobre esse tema [2], persiste a indignação de que não pode ser confundida a coisa julgada com os efeitos advindos da decisão transitada em julgado, pois em meio aos efeitos de uma dada decisão não cabe o conceito da imutabilidade (Barbosa Moreira [3]).

Ou seja, os títulos executivos judiciais em favor do MP-DF que se pautaram na obrigação atinente ao recolhimento de diferença de ICMS perderam, em tudo, e por tudo, os seus efeitos, sendo inócuas as coisas julgadas então obtidas, esvaziadas em seu conteúdo.

E dentro da mutação conceitual e processual que agora pretende o Ministério Público para fins de salvaguarda, de alguma forma, dos efeitos da coisa julgada antes obtida, ao passar a atrelá-la com a ideia de ressarcimento do patrimônio público por conta de existência de dano por ato ilícito (contrato ilegal entre Estado e contribuintes), mais se perde o Parquet do que se salva, porquanto o pretenso dano, se existiu, acabou por ser desqualificado e desnaturado, justamente, pela declaração de constitucionalidade da lei distrital remissiva relativa ao ICMS não recolhido (diferença do imposto), não mais havendo, por inferência lógica, qualquer ato ilícito indenizável.

A lei declarada constitucional pelo STF há, então, de prevalecer, a ela devendo se render tanto o MP, como a fração ainda resistente do TJ, de sorte a restar vencedora, ao fim, antes de tudo, a própria segurança jurídica dos contribuintes de ICMS do DF. Afinal de contas, "na ordem da autoridade, o Supremo Tribunal está acima de tudo" (Rui Barbosa [4]).

Enfim, é o que pensamos.


[1] Ediçã o publicada em 01/10/2011.

[3] Doutrinas Essenciais de Processo Civil, vol. 6. São Paulo: RT, 2011, p. 671.

[4] Obras Completas, Vol. XIX, Tomo III. Rio de Janeiro: MEC, 1956.

Autores

  • é advogado especialista em direito tributário, consultor jurídico, sócio-fundador de Alves Feitosa Advogados Associados, ex-juiz do TIT-SP ex-conselheiro no Conselho de Contribuintes/Carf.

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