Opinião

Dosiometria penal do caso Daniel Silveira contraria doutrina e jurisprudência

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27 de abril de 2022, 21h32

Orando como paraninfo da turma que se diplomava bacharel na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP (Universidade de São Paulo), Miguel Reale bradou ainda em 1951: "ante este mundo convulsionado, em face das teorias em manifesto conflito com a realidade, a que espetáculo temos assistido senão uma alarmante perda de sentido da dignidade da jurisprudência?"

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Presidente Bolsonaro e deputado Silveira
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O impasse[1] que já alarmava o jusfilósofo paulista décadas atrás talvez não tenha sido solucionado até o atual instante, mas não foi o Poder Legislativo quem se furtou de seus afazeres. Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, consolidou-se norma específica de temática até então alvo de intenso debate pela doutrina jurisconsulta: o artigo 926, caput, que exige "estabilidade, integridade e coerência" na composição dos julgados dos tribunais. O intento do legislador é conhecido: manter a uniformização da jurisprudência sob uma lógica racional, cognoscível, e não a alterar senão por substancial propósito[2] — garantindo, assim, a segurança jurídica.

A racionalidade e a previsibilidade das decisões judiciais são expectativas imanentes à própria ideia de "jurisprudência", tomado este termo no seu sentido autêntico e tradicional, de profundas raízes: ciência da lei, conforme a etimologia latina (juris + prudentiae), ou, aproximadamente, "experiência do direito".

A experiência do direito no processo penal envolvendo o deputado federal Daniel Lúcio Silveira, porém, frustrou as expectativas daqueles que almejam ver o artigo 926, caput, do CPC, posto em prática. Transpondo as objeções arguidas em preliminares e as questões de mérito decididas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sob competência originária, o resultado da prestação jurisdicional que julgou procedente a ação penal proposta pelo Ministério Público Federal — pena de 8 anos e 9 meses de reclusão — agrediu a até então estável e coerente jurisprudência dos tribunais superiores na temática da dosimetria penal.

Independentemente do indulto individual posteriormente decretado, é fato que Silveira foi condenado como incurso no artigo 18 da então Lei de Segurança Nacional (Lei Federal nº 7.170/83), por duas vezes, na forma do artigo 71 do Código Penal (crime continuado), à pena de cinco anos e três meses de reclusão, e como incurso no artigo 344 do Código Penal, por três vezes, na forma do artigo 71 do Código Penal (crime continuado), à pena de três anos e seis meses de reclusão, bem como à pena de 35 dias-multa. Saldo final: oito anos e nove meses de reclusão em regime inicial fechado.

Como se verá, a dosimetria penal de Silveira extrapolou os preceitos fixados na jurisprudência do STJ — e também na do próprio STF. Indagar-se-ia se seria exigível ao STF coadunar-se com a jurisprudência de tribunal de grau inferior. A resposta é afirmativa. Ora, sendo o STJ o colegiado judicial responsável pela uniformização de entendimentos sobre normas de direito federal, e considerando que a dosimetria penal é assunto eminentemente de legislação infraconstitucional[3], é lícito impor à Corte Suprema anuência aos julgados da Corte Superior, mormente aqueles que não se enveredarem por questões constitucionais de repercussão geral, até porque o processamento do presente caso se deu em sede de competência penal originária do STF, e não em jurisdição constitucional. Logo, a Corte Suprema estava ali julgando demandas como se fosse um juízo de primeiro grau soberano e irrecorrível.

A pena do delito contra Lei de Segurança Nacional varia de dois a seis anos, enquanto que a do delito de coação do curso do processo artigo 344, CP varia de um a quatro anos. Como ambos os delitos estão em continuação (por duas e três vezes, respectivamente), a reprimenda deve partir do patamar mínimo e paulatinamente acrescê-lo tempo conforme o avançar das fases da dosimetria.

Segundo o voto vencedor, prolatado pelo ministro Alexandre de Moraes, a pena dos crimes imputados forjou-se com a seguinte estruturação: em primeira fase de dosimetria o ministro-relator analisou as circunstâncias judiciais vetoriais (artigo 59 do Código Penal) e conferiu gravidade negativa à "acentuada culpabilidade do réu", por ter ele se comportado reprovavelmente durante todo o processo de instrução, inclusive violando medidas cautelares; conferiu negatividade às circunstâncias do crime, por ter o réu se valido da internet para ampliar o seu alcance; a sua conduta social seria desajustada ao meio em que vive, por ser o réu parlamentar democraticamente eleito, merecendo também reprovação nessa circunstância; conferiu também reprovação aos motivos do delito, por ter o réu utilizado de seu comportamento para obter repercussão eleitoral.

A pena-base do delito contra a segurança nacional foi fixada em quatro anos e seis meses de reclusão, isto é, 7 meses e 15 dias para cada circunstância vetorial negativa, ou seis meses para as três última e um ano para a primeira.

Em segunda fase de dosimetria, o ministro-relator anunciou inexistirem circunstâncias agravantes ou atenuantes (artigos 61 e 65 do Código Penal). Em terceira fase de dosimetria, entendeu inexistirem circunstâncias majorantes ou minorantes, exceto a do crime continuado (artigo 71 do Código Penal), que, por serem dois crimes idênticos em continuação, majorou-se a reprimenda em 1/6, alcançando finalmente a pena de cinco anos e três meses de reclusão. 

Acerca do delito de coação no curso do processo, a pena-base já acrescida das mesmas circunstâncias judiciais do crime anterior alcançou a soma de três anos de reclusão. Ou seja, acréscimo de dois anos sobre a pena mínima legalmente cominada. Em segunda fase, inexistiram circunstâncias agravantes ou atenuantes e, em terceira, majorou-se a pena (por 1/6) em virtude da continuidade delitiva, chegando-se ao quantum de três anos e seis meses de reclusão.

Ainda que todas as circunstâncias judiciais vetoriais negativas de fato existissem, a constituição da pena-base (pena após a primeira fase dosimétrica) procedeu-se de maneira irregular — ou violando a jurisprudência dos tribunais superiores. Embora não exista critério legalmente definido para a adoção do incremento penal, está uniformizado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) o modelo matemático: subtrai-se da pena máxima a pena mínimo e o resultado é dividido por oito (são oito circunstâncias judiciais). Ou então, aumenta-se em 1/6 sobre a pena mínima cada uma das vetoriais admitidas (STJ, AgRg no REsp 1.986.657/DF, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. 05/04/2022).

Exemplo: a pena do crime previsto na LSN varia de dois a seis anos, e a diferença entre os polos é de quatro anos. Sob esses quatro anos aplica-se o denominador oito, alcançando-se o tempo de seis meses. Assim, cada circunstância vetorial atinge seis meses de reclusão — e não 7 meses e 15 dias, como restou no voto vencedor do eminente ministro-relator.

De largada, as penas-base dos delitos seriam fixadas em quatro anos (para o delito contra a segurança nacional) e dois anos e seis meses (para o delito de coação no curso do processo) — ou seja, tempo inferior àquele fixado na sentença penal.

Embora o voto vencedor tenha majorado corretamente a pena do injusto contra a segurança nacional por continuidade delitiva — dois fatos, 1/6 de aumento —, a mesma correção não foi encontrada na dosimetria do crime de coação no curso do processo: o eminente ministro Alexandre de Moraes, seguido de outros oito ministros, incrementou em 1/6 a pena final, embora nesta imputação o réu tenha cometido três ações. Pela jurisprudência do STJ, o aumento de pena seria de 1/5 nesse caso (STJ, AgRg no HC 649.199/SP, relator ministro João Otávio de Noronha, j. em 15/02/2022).

Assim, corrigindo-se pontualmente a dosimetria penal final em coerência com a jurisprudência pacífica do STJ, sem se debruçar sobre as causas motivantes de cada incremento de pena, as reprimendas seriam modificadas para quatro anos e oito meses no crime da LSN, e para três anos de reclusão no crime do CP. A somatória delas alcançaria sete anos e oito meses de reclusão em regime inicial semiaberto, conforme disposição do artigo 33, § 2º, "b", do Código Penal, vez que Silveira não é reincidente.

Indo além das meras correções matemáticas, importa ao presente caso adentrar nas fundamentações exaradas pelo ministro-relator quando da admissão das quatro circunstâncias judiciais que substancialmente elevaram a pena do sentenciado.

O voto vencedor desvalorou a culpabilidade do agente, aduzindo que seu comportamento posterior ao fato delituoso foi reprovável mormente porque se insurgiu contra a persecução criminal e descumpriu seguidamente medidas cautelares diversas da prisão. Tal entendimento, contudo, contraria tanto a doutrina quanto a jurisprudência aplicáveis ao contexto processual.

De acordo com Miguel Reale Júnior, o agente "será merecedor da maior reprovação se o fato praticado revelar-se, em análise da subjetividade, expressa na sua biografia, como consequência esperada de seus antecedentes, bem como de seu particular modo de ser, da sua escolha de valores e das tendências que preferiu desenvolver em detrimento de outras potencialidades positivas[4]". Dada a inexistência de antecedentes criminais e de profundo exame de consciência do acusado, é lícito afirmar que a culpabilidade de Daniel Silveira é inerente ao tipo penal: quem coage autoridade ou instituições demonstra tendências beligerantes, mas incapazes de extremarem a culpabilidade penalmente considerada, sob pena de se configurar bis in idem[5].

Além disso, destaca-se que a culpabilidade se refere ao modo de ser do agente antes e durante o fato delituoso, quanto à intensidade de seu dolo, não após[6]. Não poderia o réu, a título de exemplo, ter sua culpabilidade negativada em razão de fato criminoso cometido posteriormente àquele em que se está sub judice. Seria contradizer os mais comezinhos postulados do penalismo democrático e fazer incidir repressão subjetiva ao autor do fato. Também é inviável incrementar pena por ter o réu se comportado indisciplinadamente no curso do procedimento. A essa postura a lei prevê a adoção de medidas cautelares que tutelam o bom procedimento do processo judicial — uma delas, a prisão preventiva, foi exaustivamente decretada no presente caso.

Decotada a culpabilidade da primeira fase de dosimetria, passa-se à ideia de conduta social. Trata-se aqui de permitir ao juízo que analise o réu do ponto de vista moral, podendo trazer à sua apreciação dados externos ao processo, tal como sua ambientação na comunidade, no trabalho. Para Christiano Falk Fragoso, "a conduta social do agente, em termos de aplicação de pena, só pode servir à sua atenuação", bem como "também não é razoável que a conduta processual do agente seja considerada para agravar sua pena"[7]. No caso em comento, a vetorial foi negativada porque o réu é parlamentar, e, por sê-lo, deveria honrar a dignidade do cargo e não agir de forma a impossibilitar a consecução do próprio ofício. Aqui não nos parece haver hipótese de elevação da pena, posto que a motivação firmada pelo ministro-relator mais se assemelha à vetorial das consequências do crime — depreciação do cargo — ou à da personalidade — índole do autor — do que de propriamente conduta social[8].

Adiante, em anúncio à vetorial das circunstâncias do crime, o eminente ministro Alexandre de Moraes considerou que o meio utilizado para a prática dos crimes (internet) exasperou o resultado das ações de Silveira, que teria utilizado o canal para expandir seus ideais reprovados em sentença. De acordo com Cezar Roberto Bitencourt, nessa circunstância deve-se analisar a "forma e natureza da ação delituosa, os tipos de meios utilizados, objeto, tempo, lugar, forma de execução e outras semelhantes[9]".

Crê-se que a irradiação de resultados, em verdade, deu-se devido à prisão em flagrante do deputado e sua posterior confirmação da Câmara dos Deputados, causadoras que intensa polêmica nacional, e não propriamente do meio por ele utilizado para proferir as coações. De toda forma, por concessão, poder-se-ia inferir que a internet inevitavelmente potencializa o resultado criminoso do tipo penal em abstrato e, em decorrência dela, Silveira depreciou o decoro inerente ao cargo, inserindo o parlamento em doloroso e desnecessário embate político e midiático. Nesses termos, é possível considerar a presença dessa vetorial negativa.

A quarta e última vetorial admitida no voto vencedor foi a dos motivos do crime. Segundo o ministro-relator, Silveira agiu no intuito de obter relevante promoção eleitoral, a fim de encantar e expandir seu eleitorado. Tal expediente, segundo o julgador, tem o condão negativar o fato e elevar pena. Os motivos do crime, assim definidos, são todos aqueles que levaram o agente a cometer o injusto, merecendo menor ou mais reprovabilidade pelo juízo. Guilherme de Souza Nucci recorda que “o motivo pode ser consciente (vingança) ou inconsciente (sadismo), além do que pode figurar como causa ou razão de ser da conduta (agir por paga para matar alguém) ou como objetivo da conduta (atuar por promessa de recompensa para matar alguém), indiferentemente[10]”.

No caso de Silveira, é ínsito à sua posição social — político eleito — manifestar-se no intuito de informar seu eleitorado acerca dos seus pensamentos, reflexões, projetos futuros e congêneres, concedendo-lhes ampla satisfação dos assuntos relacionados ao mandato outorgado. Não nos parece crível que a motivação do deputado tenha sido a de angariar votos, uma vez que o fato foi cometido longamente distante do processo eleitoral (fevereiro de 2021). Também não seria lícito pressupor que todo político pratica determinadas condutas ambicionado em projeto eletivo, até porque se uma das condutas refletir execução de fato delituoso, a reputação do candidato se deteriorará — como é o caso de Daniel Silveira[11].

Assumindo-se apenas uma circunstância judicial negativa para os dois delitos imputados (circunstâncias do crime — meio internauta), a pena do crime contra a segurança nacional se fixaria em 2 anos e 11 meses, enquanto que a pena do crime de coação no curso do processo se fixaria em 1 ano, 7 meses e 15 dias, totalizando a soma de 4 anos, 6 meses e 15 dias de reclusão em regime inicial semiaberto.

Como o deputado já cumpriu longa estadia em prisão cautelar, a custódia deveria ser detraída da pena final (artigo 387, § 2º, do Código de Processo Penal), possibilitando ao parlamentar ingressar diretamente no regime aberto de cumprimento de pena.

Ao violar precedentes dos tribunais superiores, bem como contornar as lições emanadas pela doutrina jurídica nacional, o Pleno do STF transbordou a dosagem penal e recrudesceu a reprimenda eventualmente cabível ao sentenciado, transformando o regime inicial semiaberto em fechado, e quase duplicando a sanção temporal cabível.

Assumindo-se que Daniel Silveira é potencialmente culpado, o que admitimos apenas para restringir a temática do presente escrito ao aspecto da dosimetria da pena corporal, e considerando que tanto a doutrina quanto a jurisprudência foram deixadas de lado no presente caso, sob o aparente intuito de causar resultado mais danoso ao acusado, é imperioso endossar o brado do professor das Arcadas: "a que espetáculo temos assistido senão uma alarmante perda de sentido da dignidade da jurisprudência?"


[1] À época, a preocupação de Reale era destrinchar a crise que entrechocava os partidários do modelo de “direito livre”, pelo qual as normas seriam meras referências à liberdade criativa do operador, tendente a sujeitar a lei a saberes mais “positivos e seguros” (psicologia, sociologia, economia), e os do modelo matemático, amparado idealmente em depurar das figuras jurídicas os seus potenciais correspondentes do mundo natural, isolando a juridicidade de quaisquer contaminações externas. 

[2] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 17. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 1929-1930.

[3] Conforme precedente da Suprema Corte em sede de análise negativa da existência de repercussão geral temática (STF, AI 742460, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 27/08/2009).

[4] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 406.

[5] “Não podem subsistir as circunstâncias judiciais que se limitam a descrever características inerentes ao tipo penal in casu” (STJ, AgRg no REsp, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 06/11/2018).

[6] O STF já julgou processo penal em que o sentenciado teve vetorial negativa de culpabilidade ressaltada, posto que o agente era proprietário da empresa utilizada para cometer fraudes eleitorais e já havia sido condenado por utilizar o mesmo negócio para lavar capitais oriundos de crime de corrupção (STF, AP 968, Rel. Ministro Luiz Fux, j. 22/05/2018). Veja-se que a Suprema Corte recrudesceu a pena-base por se tratar de um agente dominador de todas as etapas do iter criminis, e por fazê-lo até a cessação do fato delituoso, situação ligeiramente distinta da do deputado Daniel Silveira.

[7] FRAGOSO, Christiano Falk. Comentário ao art. 59. In: SOUZA, Luciano Anderson de. (Coord.). Código penal comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 268.

[8] O STJ estabeleceu que a conduta social é o resíduo do histórico do agente, excluídos os antecedentes criminais. Assim, avalia-se a postura do réu em sociedade, excetuando hipotéticos comportamentos criminosos (STJ, REsp 1794854, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23/06/2021). Trata-se, pois, de efetivo juízo moral por parte do julgador, que, se extrapolado, em muito aproximará a dosimetria da pena ao direito penal do autor, este defeso em lei.

[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 376.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 289.

[11] Para o STJ, a assunção dos motivos do crime como circunstância judicial negativa exige amparo em elementos concretos dos autos, não em suposições ou preconceitos (STJ, HC 380390, Rel. Min. Felix Fischer, j. 25/04/2017).

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