Tribuna da Defensoria

Por que se condena sem instrução criminal?

Autor

  • Jaime Leônidas Miranda Alves

    é defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-defensor público do Amapá mestrando em Direito pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) professor universitário. especialista em Direito Público pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e em Direito Constitucional pela Ucam (Universidade Cândido Mendes).

26 de abril de 2022, 8h00

Em síntese, a ideia é a seguinte: ou se interpreta corretamente o comando normativo contido no artigo 155, CPP ("Art. 155 — O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas"), ou pode-se condenar a torto e a direito, independentemente de instrução.

Imagine a seguinte situação: ação penal para apuração do crime de direção com a capacidade psicomotora alterada (artigo 306, Código de Trânsito Brasileiro). Dentre os documentos que instruem a denúncia consta o teste de etilômetro, no qual o réu, voluntariamente, se submeteu à realização, com resultado indicando a capacidade psicomotora.

Por lapso de qualquer dos players que atuam no processo, não foi colhido nome de qualquer testemunha que tenha participado do procedimento, de sorte que deixou o Ministério Público (titular da ação penal) de arrolar testemunhas.

O processo segue seu trâmite regular com o recebimento da denúncia, designação de audiência e, na instrução, ouvido apenas o réu que, acompanhado de seu defensor, utilizou do direito constitucional ao silêncio.

Após a manifestação oral das partes, o juízo condena o réu.

No caso dos autos, o réu foi condenado sem que tivesse sido produzido qualquer elemento de informação (repisa-se: não foram ouvidas testemunhas e o réu permaneceu em silêncio), de sorte que se questiona, a priori, qual a utilidade das audiências de instrução e julgamento em casos análogos ao apresentado.

A partir da leitura do artigo 155, CPP, tem-se a compreensão de que só é possível uma condenação quando alguma prova for produzida no curso do processo, de forma a confirmar a convicção inicial exarada da denúncia e formada, especialmente, pelos elementos de informação produzidos no inquérito.

A lógica é bem simples: os elementos colhidos no inquérito, sozinhos, não são suficientes para fundamentar uma sentença condenatória, sendo necessária a sua confirmação em juízo. A ressalva que se faz é que, em se tratando de prova cautelar, antecipada ou não repetível, justamente tendo em vista a impossibilidade de se confirmar a informação em juízo.

NÃO PRECISAM SER CONFIRMADOS EM JUÍZO

Provas cautelares

São aquelas em que há um risco de desaparecimento do objeto da prova em razão do decurso do tempo. Podem ser produzidas no inquérito ou no processo e, como regra, precisam de autorização judicial.

Ex.: interceptação telefônica.

Provas não repetíveis

São aquelas em que, uma vez produzida, não podem ser novamente coletadas. Podem ser produzidas no inquérito ou no processo e, como regra, não precisam de autorização judicial.

Ex.: teste do etilômetro; exame de corpo de delito; perícia no local do fato.

Provas antecipadas

São aquelas produzidas com a observância do contraditório real, perante a autoridade judicial, em momento processual distinto daquele legalmente previsto, ou até mesmo antes do início do processo, geralmente em razão de situação de urgência.

Ex.: depoimento policial.

Em relação a esses tipos de provas, o artigo 155, CPP, é expresso ao dispensar a sua confirmação em juízo.

A interpretação mais adequada, contudo, é a de que, conquanto não seja necessário confirmar o conteúdo desses elementos (tendo em vista a impossibilidade de se repetir a produção da prova), deve-se confirmar, em juízo, a idoneidade da sua produção, o que não ocorreu no presente caso.

Em situação de embriaguez aprioristicamente atestada por exame de etilômetro, seria necessário, ao menos, ouvir uma testemunha que confirmasse que o procedimento foi realizado, atestando a sua ocorrência e a regularidade.

A confirmação de uma assinatura, por exemplo, já serviria como indício de confirmação do elemento indiciário (resultado do teste). Mas em contexto em que absolutamente nada foi produzido, a própria ocorrência do teste é colocada em xeque.

É aquela premissa: ainda que se saiba que o fato ocorreu, esse conhecimento deve ser transplantado para o processo penal, não se admitindo presunção, ainda mais em desfavor do réu.

Forçoso reconhecer que, ainda que o teste do etilômetro seja, de fato, prova não repetível, possibilitar o proferimento de uma sentença condenatória equivale a dizer que, no sistema processual penal brasileiro, é possível condenar sem instrução. E não é.

Também não prospera o argumento de que a defesa pode se servir da instrução para comprovar a inidoneidade da prova. Primeiro que o ônus não é seu, e sim do Ministério Público, que deve tornar certo ao juiz que a prova é inquestionável. Segundo que, especialmente se tratando de prova pericial como o teste do etilômetro, eventual insurgência (alegação de expiração do aparelho, por exemplo) é perfeitamente possível de ser trazida ainda na resposta à acusação, dispensando a prova oral.

Entender de forma diversa significa que com o recebimento da denúncia nos casos de 306, CTB em que foi realizado teste de etilômetro, o réu já está automaticamente condenado, sendo desnecessária a realização da audiência de instrução e julgamento que, inclusive, deveria ser dispensada pela autoridade judiciária a fim de evitar um esforço desnecessário dos player (juízes, promotores, defensores, advogados, testemunhas, réus, servidores…).

E isso não pode ser admitido. A logicidade do sistema processual penal não admite a dispensa da audiência de instrução e julgamento justamente por ser inconcebível o entendimento acima.

Significa que algo, ainda que mínimo, deve ser produzido no curso do processo. Se é desnecessária a comprovação da embriaguez (atestada por prova pericial não repetível) se faz necessário que se demonstre, no curso da instrução, a regularidade da realização do teste.

Esse entendimento, longe de um preciosismo, consiste em sustentar a defesa das regras do jogo, mormente a correta gestão da prova (ônus das autoridades judiciais), sempre à luz de uma teoria racionalista do standard probatório, que indica o quantum de prova deve ser produzido a fim de se afastar o status de inocência de qualquer pessoa que seja réu em processo judicial.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!