Opinião

Perdão presidencial nos EUA: debates na Convenção da Filadélfia e controle judicial

Autor

  • João Carlos Souto

    é professor de direito constitucional doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub) procurador da Fazenda Nacional e autor do livro Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões (4ª ed editora Atlas).

26 de abril de 2022, 10h12

Quando decidiram romper os laços com a Coroa Britânica os revolucionários das então Treze Colônias inglesas na América, debateram, discordaram e duvidaram da empreitada, mas ao fim concordaram em um ponto, convinha redigir um documento com as razões que justificassem o ato.

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Os revolucionários chegaram a um consenso e incumbiram Thomas Jefferson a tarefa de redigir a primeira versão do documento, que ficou pronta e foi assinada em 2 de julho de 1776, e ratificada em 4 de julho, data que acabou prevalecendo para fins de celebração.

A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América incorporou valores iluministas, afirmou que todos os "homens nascem iguais", que a "Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade" são "Direitos inalienáveis" e que "os governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados". Pelos valores incorporados, pela elegância, objetividade e propósito, o texto beira a perfeição.

Antes de tudo a Declaração é um libelo contra os abusos do Rei George 3º e uma denúncia contra os equívocos da monarquia. A ela se seguiu a vitória na Guerra de Independência, a Constituição de 1787, o Bill of Rights de 1789, uma Guerra Civil, a segregação racial, e a consolidação do país como uma das democracias mais estáveis e admiradas do mundo.

A Constituição Federal, redigida para reger a República democrática sonhada pelos que costuraram a Declaração de Independência, acolheu no seu texto, por ironia, um dispositivo que remete aos poderes reais de Georges e Henriques. Refiro-me à prerrogativa do presidente da República (que eles preferem dizer presidentes dos Estados Unidos) prevista no artigo II, seção 2, cláusula 1, que dispõe sobre a concessão de indulto (pardons) aos que cometeram crimes contra os Estados Unidos, exceto na hipótese de impeachment.

A proposta suscitou "certa" controvérsia nos debates na Convenção da Filadélfia. Antifederalistas, vale dizer, aqueles contrários a criação de um Estado Federal, principal força que se opunha à Constituição, ampliaram as críticas ao Executivo imperial, que mais parecia "um rei eleito, um príncipe sob um manto republicano" (an elective king, a prince under a republican cloak).[1] Essas críticas se dirigiam principalmente ao poder de realizar tratados, ao veto e à prerrogativa de concessão de "indulto" (pardons), tudo a caracterizar a existência de uma autoridade investida de poderes perigosos a um povo livre (vested with power dangerous to a free people).[2]

Apesar das críticas, prevaleceram as razões de Alexander Hamilton, posteriormente tratadas nos capítulos 69 e 74 de "O Federalista", livro que reúne artigos publicados nos jornais de Nova York (e de outros estados) com a finalidade de convencer indecisos a ratificarem a Constituição.[3] Para Hamilton as leis penais eram severas, de modo que se apresentava razoável "um acesso fácil a exceções em favor de um culpado infeliz", sem isso "a justiça teria um semblante muito sanguinário e cruel". (without an easy access to exceptions in favor of unfortunate guilt, justice would wear a countenance too sanguinary and cruel.)[4]

Em mais de dois séculos de vigência a Constituição dos Estados Unidos não sofreu alteração no que diz respeito à prerrogativa de concessão de indulto, que ela genericamente denomina de pardon. Não há registro de qualquer contenda judicial que tenha levado o tema à apreciação de mérito pela Suprema Corte, especificamente no que diz respeito aos limites do poder presidencial. Por outro lado, há uma queixa generalizada ao crescente uso da prerrogativa por presidentes de ambos os partidos. Com um detalhe, a concessão da "graça" tem ocorrido de forma esmagadora nos últimos dias de mandato, nunca, ou quase nunca, imediatamente a uma condenação judicial. Digno de nota que o presidente Gerald Ford concedeu perdão ao ex-presidente Richard Nixon um mês após a posse e referente ao envolvimento com o escândalo Watergate, vale dizer, relativo a atos sobre os quais ainda não se tinha uma noção de profundidade.

Em Burdick v. U.S. (1915) a Suprema Corte estadunidense afirmou que o indulto "carrega uma imputação de culpa; aceitação de uma confissão". Ocorre que afirmação foi um obiter dictum, de modo que, nesse particular, não se pode considerar um precedente.

Os parágrafos pretéritos parecem indicar que desde longa data a concessão de indulto (graça, perdão, etc) é vista como uma prerrogativa que não se harmoniza totalmente com os princípios republicanos, na medida que reflete uma prática típica da monarquia. Apontam que a Suprema Corte que mais influenciou e influencia o direito no Ocidente ainda não se pronunciou, no mérito, sobre eventuais limites na concessão de indulto.

Numa república que abraça o "Estado democrático de Direito" parece não haver espaço a existência de atos divorciados desse valor fundamental, e, por conseguinte, cabe ao Judiciário, no pleno exercício de sua atribuição constitucional de revisão judicial — inaugurada por John Marshall na alvorada do século 19, no célebre caso Marbury v. Madison — fazer funcionar os instrumentos que o Constituinte lhe conferiu.

[1]. MAIN, Jackson Turner. The Anti-Federalists. Critics of the Constitution, 1781-1788. New York: W.W. Norton & Company, 1974, p. 141.

[2]. MAIN, Jackson Turner. Op. cit, p. 141.

[3]. Além de Hamilton escreveram artigos e são autores de O Federalista: James Madison e John Jay.

[4]. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist Papers. Edited by ROSSITER, Clinton;  Introduction and Notes KESLER, Charles R. New York: New American Library (Signet Classics), 2003, p. 446.

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    é professor de Direito Constitucional, Procurador da Fazenda Nacional e autor de "Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões" (Atlas, 4ª ed/2021).

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