Na véspera do Natal de 1888, 16 anos após proferir sua palestra na Sociedade Jurídica de Viena, Ihering escreve um prefácio para a obra e nele alerta que seu intento, desde o início, foi o de atacar "uma tese de moral prática" e não "uma tese de pura teoria jurídica" (p. VII). Por outros termos, Ihering ressalta que o que buscava então era pôr-se contra o que denomina de "vulgar e banal materialismo" (p. 77), ou ainda "puro e grosseiro materialismo no domínio do Direito" (p. 36), isto é, reduzir o Direito a interesses comezinhos, pequenos, mesquinhos. Ele alerta também neste prefácio, que sua fala originária de 1872 fora proferida a um público de juristas, mas já no verão desse mesmo ano traz à luz a publicação, dirigindo-a agora, "ao grande público" e titulando-a de "A Luta pelo Direito" (p. VII).
A obra de Ihering não é, obviamente, um raio em céu sereno [1]. Enquanto o autor publicava seu texto (1872) e a ele acrescia um sugestivo prefácio (1888) a luta política está em curso na Alemanha. A unificação tardia daquele disperso conjunto de pequenos reinos, condados, ducados, cidadelas, todas possuindo uma mesma raiz cultural, porém, com diferentes sistemas monetários, diferentes pesos e medidas, preceitos jurídicos distintos e politicamente diversos. Como aliado ao imperador Guilherme I (que governa até 1888, ano em que Ihering publica seu texto dando a ele um Prefácio) o primeiro-ministro Otto von Bismarck está unificando a Alemanha, amalgamando todas essas divergências, entre 1862 e 1890. É desse cadinho jurídico/político/cultural que emerge a obra de Rudolf von Ihering.
Na biografia que escreveu sobre ele, o professor espanhol Francisco Sosa Wagner menciona que
"(…) ninguém que tenha mínima sensibilidade pode ficar indiferente ante o personagem de Ihering, uma explosão, um vulcão (…) capta, atrai, seduz. Sofreu na vida, pois perdeu as duas mulheres com as quais havia se casado e a um filho, porém foi amigo de seus amigos, inimigo de seus inimigos, conversador agudo e irônico, conhecedor dos grandes vinhos, gastrônomo, leitor de Shakespeare e, como não podia ser menos em tão grande personalidade, contraditória até o final de seus dias, em seus juízos, opiniões e atitudes." (Apud GODOY, 2014).
A luta pelo Direito presente na obra dessa personagem complexa e contraditória guarda paralelos flagrantes com correntes do pensamento darwinista, a luta pela adaptação e pela sobrevivência e também com o perturbado Fausto, de Goethe, que diante de uma luta interna vende sua alma a Mefistófeles. Esse é o drama de Ihering, um autor fáustico que empenha todos os seus esforços, "vende" mesmo sua alma, em troca de uma ideia abstrata e ideal de Direito, o Diabo de Goethe. Em resumidas contas, Ihering faz as vezes de um Fausto que vende sua alma/luta pelo Direito por um ideal de Direito, o Mefistófeles de Goethe.
Do ponto de vista espacial o pequeno livro é composto, além do prefácio, de uma seção inicial não titulada, entre as páginas 1-17 e de dois longos subtítulos denominados "A luta pelo Direito é um dever do interessado para consigo próprio" (p. 19-42) e "A defesa do Direito é um dever para com a sociedade" (p. 43-88). Desde logo é preciso anunciar algumas dificuldades encontradas na leitura do texto, em especial para quem é neófito em temas jurídicos ou um outsider do Direito. A despeito disso, cabe destacar que o autor anuncia, ainda no Prefácio, que a obra obteve ampla "propagação entre a gente do povo" (VIII). Mesmo assim, vale sinalizar para três grandes dificuldades na leitura do texto.
A primeira delas diz respeito ao contexto histórico, teórico e intelectual dentro e a partir do qual a obra foi escrita. Em vários momentos submerge do texto, expressamente ou nas entrelinhas, liminar e subliminarmente, concepções e representações do idealismo filosófico alemão, por vezes de matriz kantiana, por outras, sob forte influência de um positivismo liberal e organicista, mas sobretudo sob forte concepção hegeliana, todas elas serão demonstradas mais adiante. Uma segunda dificuldade diz respeito à linguagem. Em alguns momentos é extremamente hermética, em sentido e estilo jurídico, em outros toma forma profundamente erudita, com profundas digressões analíticas e literárias.
Por fim, uma terceira dificuldade é, possivelmente, de tradução. Esta da edição resenhada, da Editora Forense, é de João de Vasconcelos. Desconhecendo o texto original, não é possível afirmar qual a ordem do discurso no qual o texto foi composto, a forma mesma de escrita original do autor. As construções frasais alternam voz passiva e voz ativa em umas vezes e fazem o inverso em outras, tornando a leitura truncada e, por vezes, confusa. Um exemplo disso pode se verificar no excerto abaixo:
"No vigor, na energia do sentimento jurídico de cada cidadão possui o Estado o mais fecundo manancial de força, a garantia mais segura de sua própria duração. (…) A influência dissolvente que sobre a força mora de um povo exercem a leis injustas e as más instituições jurídicas manifesta-se sob a terra, nessas regiões que tantos amadores da política não julgam dignas da sua atenção" (p. 65).
No que se refere à seção "A luta pelo Direito é um dever do interessado para consigo próprio", importa destacar que já em seu primeiro parágrafo sobrevêm o seu cariz darwinista [2]: "A luta pela existência é a lei suprema de toda criação animada: manifesta-se em toda criatura sob a forma de instinto da conservação" (p. 19). Aufere-se disso que, para o autor, o direito aparece como uma necessária e abstrata luta de todos contra todos. É nítida, nesse item, a aproximação entre a biologia e o Direito. O que Ihering caracteriza como "obedecer à lei particular da sua conservação" (p. 27) é um evidente paralelo entre a biologia e a ideia de conservação como espécie e o Direito e a conservação como civilização e como moralidade.
Aparecem, nessa seção do texto, expressa ou subliminarmente, autores como Hegel (p. 24), mencionado nominalmente, mas também de forma silenciosa Adam Smith, e sua teoria liberal do "valor trabalho" ao afirmar que a "fonte histórica e a justificação moral da propriedade é o trabalho"; talvez Pierre-Joseph Proudhon, Marx ou Engels, ao mencionar que o "comunismo só prospera nos pântanos onde a ideia da propriedade está dissolvida; (…)" (p. 33).
Como síntese, pode-se afirmar que nesta seção do texto o autor promove uma injunção de moralidade e propriedade, o caráter e a personalidade fundem-se com a ideia de Direito e de propriedade. Diz o autor que "o direito é a condição da existência moral da pessoa; a defesa do direito constitui, portanto, a conservação moral da mesma" (p. 38). Por outros termos, na garantia do "valor material de um objeto" (p. 40), está ancorada a garantia do "valor ideal do direito" (ibidem). Em resumidas contas, ao se garantir materialmente a propriedade — e isto não é pouco, estar-se-á garantindo a honra, a moral, o direito e a própria "civilização" (ibidem).
Em "A defesa do Direito é um dever para com a sociedade", última parte do texto, é onde o autor se detém no exame da "relação do direito no sentido objetivo com o direito no sentido subjetivo" (p. 43). Para Ihering a relação é inequívoca, o sentido objetivo do direito é a condição do seu sentido subjetivo. Para tanto, assegura que "não existe direito concreto senão onde existirem condições pelas quais a regra jurídica abstrata consolida a existência do direito" (ibidem). No entanto, já à partida alerta que a teoria preocupa-se demasiadamente com a dependência do direito concreto em face do direito abstrato. Conclui Ihering que não somente a relação pode-se dar em sentido oposto como, sobretudo, a "essência do direito é a realização prática" (ibidem). Adiante ainda acrescenta que a "relação entre o direito objetivo ou abstrato com os direitos subjetivos ou concretos lembra a circulação do sangue, cuja corrente parte do coração para ali voltar" (p. 44), ou seja, embora de naturezas diferentes referem-se às mesmas circunstâncias e interagem de forma intercambiantes.
Na página 63 expressa-se com toda a clareza uma visão liberal do direito, em especial por um certo individualismo metodológico. Diz o autor que é o "direito privado, e não o direito público, a verdadeira escola de educação política dos povos; (…) bastará examinar a forma por que o simples particular defende os direitos próprios da vida privada". Aufere-se disso que é então a parte que constrói o todo, a agência do indivíduo que move a vida, o mundo o direito, pois que "na luta encarniçada que ele sustenta por um simples franco compreende-se o desenvolvimento político" (ibidem). Há aqui um certo empreendedorismo individual concentrado na ação de um "cada um" (ibidem) abstrato e individual, meio que autossuficiente, como se o mundo se compusesse numa abstração hobbesiana de uma luta de todos contra todos, onde cada um cuida de si e, assim, o todo estará cuidado. Há também, nessa concepção um matiz hegeliano de um racionalidade externa às ações práticas dos sujeitos, em que a força de um Estado estaria no sentimento jurídico de cada um. Essência e aparência se relacionam dialeticamente, quando "o tronco e a copa [seriam aqui o Estado] tem a superioridade de serem vistas, ao passo que as raízes mergulham no solo e escondem-se aos olhares" (p. 65), sendo no "sentimento jurídico de cada cidadão [que] possui o Estado o mais fecundo manancial de força, a garantia mais segura de sua própria duração" (ibidem). E não é por outra razão que, argumento que sustenta sua tese, que o "despotismo em toda a parte começou com ataques ao direito privado, por violências contra o indivíduo" (ibidem), isto é, ao corroer a base, ao corromper as raízes, acaba por destruir todo o edifício social.
Não poderia concluir essa resenha, sem considerar, mesmo que brevemente, uma questão de ordem moral, identificável no texto de Ihering, caríssima ao cenário político conjuntural. Trata-se da questão do que tem sida nomeado de punitivismo. Há, de fato, uma lógica de não absolvição como regra, ou mesmo de não inocência (devido à pequeneza do delito), na compreensão jurídica do autor. Quando tudo se resume a um cálculo material, mensurável financeiramente, reduz-se também o Direito a uma dimensão pecuniária, comezinha e, portanto, de impunidade. A luta pelo direito é uma luta, sobretudo, contra isso. "Terminou a infâmia, ente nós, para o depositário ou para o mandatário infiel; a maior velhacaria, contanto que se saiba astuciosamente evitar o Código Penal, fica hoje completamente a salvo e sem castigo" [itálicos meus] (p.80). Ora, o que para muitos é um avanço civilizatório, a mitigação das penas, a prevalência do consenso à punição, é, para Ihering, uma degradação do próprio direito. Recalcar a "injustiça subjetiva" ao nível da "justiça objetiva" é diminuir a "ideia de justiça" (ibidem). Reduzir o direito a "simples interesse pecuniário" é enfraquecê-lo, fazer disso "a alma do processo" é o mesmo que matá-lo. O Direito não deve ser somente uma questão material, "a balança de Témis deve pesar a injustiça e não o dinheiro somente" (ibidem).
A impunidade é a morte do Direito. Às lesões causadas não cabem penas, pois os prejuízos haverão de terem sido insignificantes, nessas circunstâncias, "desgraçado autor em tais processos e feliz réu!" (p. 81). Além do ufanismo, de uma certa idolatria ao Direito Romano, ideal e abstrato, porque extinto no tempo, o autor reverbera um certo mito liberal da luta. Há uma ética na luta e há também uma estética. O certo é lutar, mas é mais assertivo ainda fazê-lo pois há beleza na luta.
"Não é a estética, mas sim a ética, que deve ensinar-nos o que corresponde à essência do direito e o que lhe é contrário. Ora, a ética, longe de repelir a luta pelo direito, impõe-na como dever, tanto aos indivíduos como aos povos, por toda a parte onde existem as condições que deixo devidamente expostas nesse livro" (p. 87).
Uma citação bíblica e outra a Goeth não poderiam ser mais apropriadas e ao mesmo tempo contraditórias para encerrar o texto. Assim como só ganha o pão que com o suor do próprio rosto o faz, pois só na luta é possível encontrar o Direito; só é merecedor da vida e da liberdade quem delas tornar-se merecido, pela luta.
BIBLIOGRAFIA:
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A proximidade de Rudolf Ihering com o darwinismo e a luta pelo Direito. In: Consultor Jurídico [3], CONJUR. Setembro, 2014.
IHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito. Editora Forense, 16ª edição, Rio de Janeiro: RJ, 1997.
[1] A referência aqui não é ao filme "The Sins of Rachel Cade" (Drama. EUA: dir. Gordon Douglas, 1961) denunciando as barbáries humanitárias perpetradas contra a população nativa congolesa colonizada pela Bélgica, mas tão somente dizer que não se trata de algo fora de lugar, algo deslocado de contexto ou inesperado.
[2] Convém ressaltar aqui que esse cariz em nada se refere a Darwin, mas sim a seus divulgadores, em especial, por parte de Herbert Spencer (1820-1903). A própria expressão "sobrevivência do mais apto", ausente na teoria darwiniana e marcante na teoria darwinista, ao procurar aplicar as leis da evolução, típica dos animais não humanos, a todos os níveis da atividade humana, à cultura e à economia, por exemplo.