Opinião

A obra de Ihering: "A luta pelo Direito"

Autor

  • Guilherme Howes

    é professor de Teoria Social e Ciência Política na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) doutor pela UFSM e acadêmico de Direito da Unism (Faculdades de Direito de Santa Maria).

26 de abril de 2022, 19h02

Na véspera do Natal de 1888, 16 anos após proferir sua palestra na Sociedade Jurídica de Viena, Ihering escreve um prefácio para a obra e nele alerta que seu intento, desde o início, foi o de atacar "uma tese de moral prática" e não "uma tese de pura teoria jurídica" (p. VII). Por outros termos, Ihering ressalta que o que buscava então era pôr-se contra o que denomina de "vulgar e banal materialismo" (p. 77), ou ainda "puro e grosseiro materialismo no domínio do Direito" (p. 36), isto é, reduzir o Direito a interesses comezinhos, pequenos, mesquinhos. Ele alerta também neste prefácio, que sua fala originária de 1872 fora proferida a um público de juristas, mas já no verão desse mesmo ano traz à luz a publicação, dirigindo-a agora, "ao grande público" e titulando-a de "A Luta pelo Direito" (p. VII).

A obra de Ihering não é, obviamente, um raio em céu sereno [1]. Enquanto o autor publicava seu texto (1872) e a ele acrescia um sugestivo prefácio (1888) a luta política está em curso na Alemanha. A unificação tardia daquele disperso conjunto de pequenos reinos, condados, ducados, cidadelas, todas possuindo uma mesma raiz cultural, porém, com diferentes sistemas monetários, diferentes pesos e medidas, preceitos jurídicos distintos e politicamente diversos. Como aliado ao imperador Guilherme I (que governa até 1888, ano em que Ihering publica seu texto dando a ele um Prefácio) o primeiro-ministro Otto von Bismarck está unificando a Alemanha, amalgamando todas essas divergências, entre 1862 e 1890. É desse cadinho jurídico/político/cultural que emerge a obra de Rudolf von Ihering.

Na biografia que escreveu sobre ele, o professor espanhol Francisco Sosa Wagner menciona que

"(…) ninguém que tenha mínima sensibilidade pode ficar indiferente ante o personagem de Ihering, uma explosão, um vulcão (…) capta, atrai, seduz. Sofreu na vida, pois perdeu as duas mulheres com as quais havia se casado e a um filho, porém foi amigo de seus amigos, inimigo de seus inimigos, conversador agudo e irônico, conhecedor dos grandes vinhos, gastrônomo, leitor de Shakespeare e, como não podia ser menos em tão grande personalidade, contraditória até o final de seus dias, em seus juízos, opiniões e atitudes." (Apud GODOY, 2014).

A luta pelo Direito presente na obra dessa personagem complexa e contraditória guarda paralelos flagrantes com correntes do pensamento darwinista, a luta pela adaptação e pela sobrevivência e também com o perturbado Fausto, de Goethe, que diante de uma luta interna vende sua alma a Mefistófeles. Esse é o drama de Ihering, um autor fáustico que empenha todos os seus esforços, "vende" mesmo sua alma, em troca de uma ideia abstrata e ideal de Direito, o Diabo de Goethe. Em resumidas contas, Ihering faz as vezes de um Fausto que vende sua alma/luta pelo Direito por um ideal de Direito, o Mefistófeles de Goethe.

Do ponto de vista espacial o pequeno livro é composto, além do prefácio, de uma seção inicial não titulada, entre as páginas 1-17 e de dois longos subtítulos denominados "A luta pelo Direito é um dever do interessado para consigo próprio" (p. 19-42) e "A defesa do Direito é um dever para com a sociedade" (p. 43-88). Desde logo é preciso anunciar algumas dificuldades encontradas na leitura do texto, em especial para quem é neófito em temas jurídicos ou um outsider do Direito. A despeito disso, cabe destacar que o autor anuncia, ainda no Prefácio, que a obra obteve ampla "propagação entre a gente do povo" (VIII). Mesmo assim, vale sinalizar para três grandes dificuldades na leitura do texto.

A primeira delas diz respeito ao contexto histórico, teórico e intelectual dentro e a partir do qual a obra foi escrita. Em vários momentos submerge do texto, expressamente ou nas entrelinhas, liminar e subliminarmente, concepções e representações do idealismo filosófico alemão, por vezes de matriz kantiana, por outras, sob forte influência de um positivismo liberal e organicista, mas sobretudo sob forte concepção hegeliana, todas elas serão demonstradas mais adiante. Uma segunda dificuldade diz respeito à linguagem. Em alguns momentos é extremamente hermética, em sentido e estilo jurídico, em outros toma forma profundamente erudita, com profundas digressões analíticas e literárias.

Por fim, uma terceira dificuldade é, possivelmente, de tradução. Esta da edição resenhada, da Editora Forense, é de João de Vasconcelos. Desconhecendo o texto original, não é possível afirmar qual a ordem do discurso no qual o texto foi composto, a forma mesma de escrita original do autor. As construções frasais alternam voz passiva e voz ativa em umas vezes e fazem o inverso em outras, tornando a leitura truncada e, por vezes, confusa. Um exemplo disso pode se verificar no excerto abaixo:

"No vigor, na energia do sentimento jurídico de cada cidadão possui o Estado o mais fecundo manancial de força, a garantia mais segura de sua própria duração. (…) A influência dissolvente que sobre a força mora de um povo exercem a leis injustas e as más instituições jurídicas manifesta-se sob a terra, nessas regiões que tantos amadores da política não julgam dignas da sua atenção" (p. 65).

No que se refere à seção "A luta pelo Direito é um dever do interessado para consigo próprio", importa destacar que já em seu primeiro parágrafo sobrevêm o seu cariz darwinista [2]: "A luta pela existência é a lei suprema de toda criação animada: manifesta-se em toda criatura sob a forma de instinto da conservação" (p. 19). Aufere-se disso que, para o autor, o direito aparece como uma necessária e abstrata luta de todos contra todos. É nítida, nesse item, a aproximação entre a biologia e o Direito. O que Ihering caracteriza como "obedecer à lei particular da sua conservação" (p. 27) é um evidente paralelo entre a biologia e a ideia de conservação como espécie e o Direito e a conservação como civilização e como moralidade.

Aparecem, nessa seção do texto, expressa ou subliminarmente, autores como Hegel (p. 24), mencionado nominalmente, mas também de forma silenciosa Adam Smith, e sua teoria liberal do "valor trabalho" ao afirmar que a "fonte histórica e a justificação moral da propriedade é o trabalho"; talvez Pierre-Joseph Proudhon, Marx ou Engels, ao mencionar que o "comunismo só prospera nos pântanos onde a ideia da propriedade está dissolvida; (…)" (p. 33).

Como síntese, pode-se afirmar que nesta seção do texto o autor promove uma injunção de moralidade e propriedade, o caráter e a personalidade fundem-se com a ideia de Direito e de propriedade. Diz o autor que "o direito é a condição da existência moral da pessoa; a defesa do direito constitui, portanto, a conservação moral da mesma" (p. 38). Por outros termos, na garantia do "valor material de um objeto" (p. 40), está ancorada a garantia do "valor ideal do direito" (ibidem). Em resumidas contas, ao se garantir materialmente a propriedade — e isto não é pouco, estar-se-á garantindo a honra, a moral, o direito e a própria "civilização" (ibidem).

Em "A defesa do Direito é um dever para com a sociedade", última parte do texto, é onde o autor se detém no exame da "relação do direito no sentido objetivo com o direito no sentido subjetivo" (p. 43). Para Ihering a relação é inequívoca, o sentido objetivo do direito é a condição do seu sentido subjetivo. Para tanto, assegura que "não existe direito concreto senão onde existirem condições pelas quais a regra jurídica abstrata consolida a existência do direito" (ibidem). No entanto, já à partida alerta que a teoria preocupa-se demasiadamente com a dependência do direito concreto em face do direito abstrato. Conclui Ihering que não somente a relação pode-se dar em sentido oposto como, sobretudo, a "essência do direito é a realização prática" (ibidem). Adiante ainda acrescenta que a "relação entre o direito objetivo ou abstrato com os direitos subjetivos ou concretos lembra a circulação do sangue, cuja corrente parte do coração para ali voltar" (p. 44), ou seja, embora de naturezas diferentes referem-se às mesmas circunstâncias e interagem de forma intercambiantes.

Na página 63 expressa-se com toda a clareza uma visão liberal do direito, em especial por um certo individualismo metodológico. Diz o autor que é o "direito privado, e não o direito público, a verdadeira escola de educação política dos povos; (…) bastará examinar a forma por que o simples particular defende os direitos próprios da vida privada". Aufere-se disso que é então a parte que constrói o todo, a agência do indivíduo que move a vida, o mundo o direito, pois que "na luta encarniçada que ele sustenta por um simples franco compreende-se o desenvolvimento político" (ibidem). Há aqui um certo empreendedorismo individual concentrado na ação de um "cada um" (ibidem) abstrato e individual, meio que autossuficiente, como se o mundo se compusesse numa abstração hobbesiana de uma luta de todos contra todos, onde cada um cuida de si e, assim, o todo estará cuidado. Há também, nessa concepção um matiz hegeliano de um racionalidade externa às ações práticas dos sujeitos, em que a força de um Estado estaria no sentimento jurídico de cada um. Essência e aparência se relacionam dialeticamente, quando "o tronco e a copa [seriam aqui o Estado] tem a superioridade de serem vistas, ao passo que as raízes mergulham no solo e escondem-se aos olhares" (p. 65), sendo no "sentimento jurídico de cada cidadão [que] possui o Estado o mais fecundo manancial de força, a garantia mais segura de sua própria duração" (ibidem). E não é por outra razão que, argumento que sustenta sua tese, que o "despotismo em toda a parte começou com ataques ao direito privado, por violências contra o indivíduo" (ibidem), isto é, ao corroer a base, ao corromper as raízes, acaba por destruir todo o edifício social.

Não poderia concluir essa resenha, sem considerar, mesmo que brevemente, uma questão de ordem moral, identificável no texto de Ihering, caríssima ao cenário político conjuntural. Trata-se da questão do que tem sida nomeado de punitivismo. Há, de fato, uma lógica de não absolvição como regra, ou mesmo de não inocência (devido à pequeneza do delito), na compreensão jurídica do autor. Quando tudo se resume a um cálculo material, mensurável financeiramente, reduz-se também o Direito a uma dimensão pecuniária, comezinha e, portanto, de impunidade. A luta pelo direito é uma luta, sobretudo, contra isso. "Terminou a infâmia, ente nós, para o depositário ou para o mandatário infiel; a maior velhacaria, contanto que se saiba astuciosamente evitar o Código Penal, fica hoje completamente a salvo e sem castigo" [itálicos meus] (p.80). Ora, o que para muitos é um avanço civilizatório, a mitigação das penas, a prevalência do consenso à punição, é, para Ihering, uma degradação do próprio direito. Recalcar a "injustiça subjetiva" ao nível da "justiça objetiva" é diminuir a "ideia de justiça" (ibidem). Reduzir o direito a "simples interesse pecuniário" é enfraquecê-lo, fazer disso "a alma do processo" é o mesmo que matá-lo. O Direito não deve ser somente uma questão material, "a balança de Témis deve pesar a injustiça e não o dinheiro somente" (ibidem).

A impunidade é a morte do Direito. Às lesões causadas não cabem penas, pois os prejuízos haverão de terem sido insignificantes, nessas circunstâncias, "desgraçado autor em tais processos e feliz réu!" (p. 81). Além do ufanismo, de uma certa idolatria ao Direito Romano, ideal e abstrato, porque extinto no tempo, o autor reverbera um certo mito liberal da luta. Há uma ética na luta e há também uma estética. O certo é lutar, mas é mais assertivo ainda fazê-lo pois há beleza na luta.

"Não é a estética, mas sim a ética, que deve ensinar-nos o que corresponde à essência do direito e o que lhe é contrário. Ora, a ética, longe de repelir a luta pelo direito, impõe-na como dever, tanto aos indivíduos como aos povos, por toda a parte onde existem as condições que deixo devidamente expostas nesse livro" (p. 87).

Uma citação bíblica e outra a Goeth não poderiam ser mais apropriadas e ao mesmo tempo contraditórias para encerrar o texto. Assim como só ganha o pão que com o suor do próprio rosto o faz, pois só na luta é possível encontrar o Direito; só é merecedor da vida e da liberdade quem delas tornar-se merecido, pela luta.

BIBLIOGRAFIA:
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A proximidade de Rudolf Ihering com o darwinismo e a luta pelo Direito. In: Consultor Jurídico [3], CONJUR. Setembro, 2014.

IHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito. Editora Forense, 16ª edição, Rio de Janeiro: RJ, 1997.


[1] A referência aqui não é ao filme "The Sins of Rachel Cade" (Drama. EUA: dir. Gordon Douglas, 1961) denunciando as barbáries humanitárias perpetradas contra a população nativa congolesa colonizada pela Bélgica, mas tão somente dizer que não se trata de algo fora de lugar, algo deslocado de contexto ou inesperado.

[2] Convém ressaltar aqui que esse cariz em nada se refere a Darwin, mas sim a seus divulgadores, em especial, por parte de Herbert Spencer (1820-1903). A própria expressão "sobrevivência do mais apto", ausente na teoria darwiniana e marcante na teoria darwinista, ao procurar aplicar as leis da evolução, típica dos animais não humanos, a todos os níveis da atividade humana, à cultura e à economia, por exemplo.

Autores

  • é professor de Teoria Social e Ciência Política na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), doutor pela UFSM e acadêmico de Direito da Unism (Faculdades de Direito de Santa Maria).

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