Direito Civil Atual

A conversão da prestação e os limites da lide

Autor

  • Isabela Maria Pereira Lopes

    é mestranda na Faculdade de Direito da USP graduada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e integrante da Rede de Direito Civil Contemporâneo (USP Universidade Humboldt-Berlim Universidade de Coimbra Universidade de Lisboa Universidade do Porto Universidade de Roma II-Tor Vergata Universidade de Girona UFMG UFPR UFRGS UFSC UFPE UFF UFC UFMT UFBA e UFRJ).

25 de abril de 2022, 17h09

A existência e a validade de uma cláusula resolutiva verbal, firmada em contrato de doação de cotas sociais, realizado verbalmente entre pai e filho e materializado no contrato social da empresa, já é matéria para uma discussão jurídica bastante interessante, como de fato ocorreu no julgamento do Recurso Especial nº 1.905.612/MA, pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça [1]. Contudo, a partir de um detalhe na análise deste recurso, tem origem uma outra questão, não menos interessante, mas ainda pouco debatida na doutrina nacional: a conversão da prestação pactuada em perdas e danos no âmbito processual.

ConJur
O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, considerou que, excepcionalmente naquele caso, a cláusula resolutiva estava comprovada, mas seu cumprimento não poderia ser exigido de terceiros, que não participaram do acordo. Assim, constatando que as cotas sociais foram transferidas para outrem, o doador não poderia exigir a restituição de sua posição acionária. Como resultado, deu parcial provimento ao recurso para julgar improcedente o pedido do autor da ação e inverter os ônus sucumbenciais.

A ministra Nancy Andrighi, embora de acordo com o relator acerca da impossibilidade de vincular os demais sócios à tal cláusula resolutiva verbal, considerou que "a impossibilidade de obrigar a recorrente a devolver as cotas recebidas (…) não pode implicar, com a máxima vênia, em improcedência do pedido formulado na petição inicial pelo recorrido”, pois “a cessão de cotas supervenientemente celebrada (…) não modifica o direito concretamente reconhecido ao recorrido de reaver as cotas doadas (…) mas, ao revés, somente impõe uma barreira intransponível, do ponto de vista material e jurídico, ao integral restabelecimento do status quo ante, ou seja, a cessão posterior apenas torna impossível o reingresso do recorrido à sociedade".

Com efeito, ela observou que, nas hipóteses em que não for possível aplicar o princípio da primazia da tutela específica, é lícita a conversão em tutela pecuniária, como sugere a atual redação do artigo 499 do Código de Processo Civil (CPC/2015). Portanto, se a prestação específica se tornou impossível por culpa de um dos recorrentes, o donatário, que transferiu para outrem as cotas sociais, cabe a condenação do mesmo em restituir ao doador o valor pecuniário das cotas, não apenas com a apuração do valor nominal atualizado, mas com a apuração de eventuais frutos, lucros e dividendos que lhes sejam relativos.

O ministro relator, porém, esclareceu que considerou existente e válido apenas o contrato de doação, e não a cláusula resolutiva ajustada sem o conhecimento dos outros sócios, pois o ajuste verbal feito sem anuência deles resulta em negócio jurídico simulado. Além disso, é inadmissível que o contrato de doação fosse concomitantemente realizado de forma escrita e oral, e contraditória a conduta do doador que, ao se retirar da sociedade, dá plena quitação a ela e seus sócios e, posteriormente, passa a exigir a restituição das cotas.

Sobre a tutela requerida, o ministro observou que o pedido foi efetivamente "o suprimento judicial para recobrar a sua posição acionária, acionando todos os sócios, e não o valor correspondente às cotas sociais doadas, em pedido direcionado exclusivamente ao filho", não sendo reconhecido nas instâncias ordinárias o direito ao recebimento de quantia equivalente às cotas, "a conversão da obrigação de fazer em prestação pecuniária refugiria dos limites objetivos da lide". Assim, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva não reconheceu o direito do autor à retomada de sua posição societária e, para o que interessa ao tema desta coluna, considerou impróprio reconhecer eventual direito deste sobre os valores correspondentes às cotas sociais doadas, por inexistir pedido nesse sentido.

Assim, para além da relevante discussão acerca da formalidade no contrato de doação, especialmente no que tange à cláusula resolutiva, a divergência entre os ministros expõe um tema interessante e ainda pouco debatido na doutrina brasileira: a conversão da prestação específica em pecúnia.

A tutela específica consiste no "conjunto de remédios ou providências tendentes a proporcionar àquele (ou àqueles) em cujo benefício se estabeleceu a obrigação (…) o preciso resultado prático atingível por meio do adimplemento, isto é, a não violação do direito ou do interesse tutelado" [2]. Ela envolve não apenas medidas para proporcionar a exata prestação original ao credor, mas também outras que produzam efeito prático equivalente, equiparáveis à prestação devida. Assim, se contrapõe às medidas compensatórias da violação do direito, notadamente, as indenizações pecuniárias substitutivas.

Incompatível com o liberalismo, que não admitia a ideia de execução específica para obrigações de fazer e não fazer, "por ser intocável o devedor em sua liberdade pessoal" [3] caso resistisse ao cumprimento da obrigação, ao credor caberia apenas "conformar-se com as perdas e danos" [4], recorrendo à execução substitutiva ou indireta. A mudança do paradigma estatal conduziu, também, a uma alteração da perspectiva funcional do processo, que se volta para a realização e efetivação de direitos, favorecendo o surgimento e consolidação de tutelas processuais diferenciadas.

As reformas empreendidas no Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973) na década de 1990 foram o marco legal da adoção das tutelas diferenciadas no Direito brasileiro. Cabe destacar o artigo 84 da Lei 8.078/1990 (CDC), de aplicação restrita às relações de consumo, e a Lei n. 8.952/1994, que deu nova redação ao artigo 461 do CPC/1973 [5], deixando expressa a preferência do legislador pela tutela específica das obrigações de fazer e não fazer, restringindo sua conversão em perdas e danos às hipóteses de requerimento do autor ou de impossibilidade de tutela específica ou de obtenção do resultado prático equivalente.

Antes, porém, as obrigações de fazer e não fazer fungíveis, passíveis de realização por terceiros e não somente pelo devedor, eram tuteladas processualmente de modo específico, podendo o credor pleitear sua realização por outrem às expensas do devedor original e, ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1939, o credor contava com a ação cominatória, que por meio de multas, coagia o devedor a realizar a prestação.

No dizer de Giuseppe Chiovenda, "il processo deve dare a chi ha un diritto, praticamente tutto quello e proprio quello che egli ha diritto di conseguire" [6], o que os processualistas brasileiros entenderam como uma aproximação, ou mesmo uma submissão, do processo ao direito material [7].

No direito material, a questão está relacionada aos pressupostos da resolução contratual, notadamente a gravidade de descumprimento e à natureza jurídica do direito de resolução [8]. A perda do interesse do credor em receber a prestação é o critério apontado pela doutrina nacional para considerá-la impossível e, portanto, absoluto o inadimplemento da obrigação [9], e, ainda no plano obrigacional, é reconhecido ao devedor o direito de purgar a mora, nas hipóteses de inadimplemento relativo [10]. Já na disciplina relativa aos contratos, o inadimplemento confere ao contratante a possibilidade de resolver o contrato ou exigir-lhe o cumprimento, acrescido das perdas e danos.

Há, portanto, uma sobreposição de normas jurídicas que podem incidir no inadimplemento de uma obrigação contratual: 1) a impossibilidade da prestação e eventual responsabilização do devedor, regida pelo direito obrigacional; 2) a possibilidade de resolver o contrato ou exigir-lhe o cumprimento, proveniente das normas do direito contratual e, por fim, 3) os pressupostos processuais e requisitos da ação, essenciais para qualquer procedimento dessa natureza, e, de modo específico, a regra de conversão da obrigação em perdas e danos estabelecida no artigo 499 do CPC/2015.

No Brasil, os efeitos da resolução contratual são fonte de dúvidas na doutrina diante da redação do artigo 475 do Código Civil. Não há um consenso se ela acarreta o retorno das partes contratantes ao estágio anterior às negociações ou admite que sejam indenizáveis os lucros cessantes oriundos do inadimplemento [11].

Araken de Assis atribui à resolução o caráter de uma "opção incondicionada" [12] concedida pela lei ao contratante lesado pelo inadimplemento relativo, e, no que tange à demanda pelo cumprimento da prestação, observa que "o expediente resolutivo, que era desprezado quando o procedimento executivo ostentava vigor inaudito, impôs-se no tráfico jurídico, grosso modo, a passo da perda de força dos resultados práticos da execução" [13].

Sobre a modificação dos pedidos judiciais de resolução e cumprimento contratual, o jus variandi, considera inadmissível o pedido de cumprimento do contrato após a propositura de demanda resolutória, observadas as normas processuais, notadamente os incisos do artigo 329 do CPC. Admite, contudo, a cumulação dos pedidos de resolução e cumprimento, desde que esse se faça de forma subsidiária, como autorizado pelo artigo 326 do CPC; bem como pedido de resolução posterior à condenação do réu inadimplente, desde que subsista o estado de descumprimento, consoante aceito pelo artigo 1.085 do Código Civil argentino [14]. Já a conversão da prestação específica no equivalente pecuniário, cumuladas com as perdas e danos, independem da proposição de nova demanda, uma vez que todos esses pedidos têm a mesma natureza executiva [15].

Para Ruy Rosado de Aguiar Júnior a resolução só é cabível nas hipóteses de inadimplemento definitivo, o que inclui as hipóteses em que a prestação ainda é objetivamente possível, mas o credor não tem mais interesse em recebê-la [16]. Nesse caso, o autor entende que o contratante fiel poderá escolher entre manter o contrato e exigir o equivalente ou requerer a resolução. A purgação da mora terá cabimento enquanto subsistir o interesse do credor na prestação.

Nessa perspectiva, uma vez proposta a ação de resolução, caberia ao juiz fazer um juízo sobre a perda ou manutenção do interesse do credor na prestação, ou mesmo da aptidão da oferta do devedor para satisfazer ao primeiro e, com isso, afastar a mora e a resolução.

Amparado no artigo 462 do CPC/1973 (correspondente ao artigo 492 do CPC/2015), esse autor defende que o juiz deverá considerar tanto a posterior tentativa do devedor de purgar a mora e afastar a resolução, como a perda superveniente de interesse do credor após a propositura da ação. Essa análise só assumiria um caráter definitivo e, portanto, surtiria eventuais efeitos de liberação do devedor ou extinção do contrato na prolação da sentença [17].

O descumprimento de uma obrigação contratual enseja uma série de consequências jurídicas e atrai a incidência de muitas normas. Não bastasse, o interesse no recebimento da prestação, a sua utilidade, que corresponde ao critério eleito para distinguir o inadimplemento absoluto e relativo, está intimamente relacionado ao decurso do tempo. Não obstante, se a efetividade processual é almejada pelas partes, e pela sociedade em geral, não menos relevante é a estabilização da lide, pressuposto do devido processo legal e da pacificação dos conflitos.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] STJ, Recurso Especial n. 1.905.612/MA, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª T., j. 29/3/2022, DJe 05.04.2022.

[2] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A tutela específica do credor nas obrigações negativas. Revista brasileira de direito processual, nº 20, ano 5, p. 61-79, out./dez. 1979, p.63.

[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. Revista de Processo, v. 105, p. 9-33, jan./mar. 2002, p. 9.

[4] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela específica...cit, p.9.

[5] Como teve a oportunidade de observar José Carlos Barbosa Moreira, esses diplomas legais fortaleceram, no Brasil, a corrente doutrinária que advoga o reconhecimento de uma quarta classe de sentenças no processo civil: as mandamentais. Não obstante, as sentenças mandamentais têm origem em estudo de Kuttner para referir-se àquelas que exprimiam uma ordem do juiz não apenas para o réu, mas para outros órgãos estatais. Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A sentença mandamental: da Alemanha ao Brasil. Revista de Processo, v. 25, nº 97, p.251-264, jan./mar. 2000.

[6] Em tradução livre: "o processo deve dar a quem tem direito, tanto quanto seja praticamente possível, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tem o direito de conseguir" (CHIOVENDA, Giuseppe. Principi di diritto processuale civile: le azioni, il processo di cognizione. Napoli: N. Jovene, 1923, p. 81)

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela específica...cit, p.11.

[8] Como observa Catarina Monteiro Pires: "Subjacente a qualquer dos sistemas acabados de examinar parece estar a conceção legal da resolução como reação dependente da verificação de pressupostos qualificados, que não se bastam com a existência de um mero desvio de cumprimento do programa obrigacional. São, contudo, flagrantes as diferenças quanto aos específicos pressupostos exigidos, sobretudo, quanto à relevância da fixação de um prazo suplementar pelo credor e, também, quanto à densificação da 'perturbação', em particular nos casos de prestação parcial e de cumprimento defeituoso. No sistema português e, sobretudo, no sistema alemão reconhece-se uma preferência por soluções normativas que, em princípio, reconheçam a promessa realizada, enquanto tal, e privilegiem o seu cumprimento in natura. Daí que, no caso de inadimplemento da prestação debitória, a regra seja a da fixação de um prazo adicional para o devedor cumprir. Esgotado esse prazo sem resultado, o credor pode optar pela desvinculação resolutória. Admitem-se, depois, desvios e reforços dessa regra. Numa prestação de prazo absolutamente fixo, não há necessidade de fixação de qualquer prazo adicional. Perante uma prestação defeituosa, não basta a fixação de um prazo suplementar, exigindo-se, ainda, um requisito material, que ajuíza da própria relevância da perturbação em causa. O direito brasileiro, baseado num sistema de resolução judicial, não parece, porém, seguir o figurino alemão, nem identificar-se com o sistema português. Quanto ao escrutínio do fundamento material da resolução, as propostas da doutrina no domínio do novo Código Civil exploram, no essencial, a incidência do critério do interesse do credor. Tem sido ainda realçado que a resolução não reveste um caráter subsidiário, podendo o credor escolher, de forma livre, entre resolver o contrato ou manter a prestação". (PIRES, Catarina Monteiro. Resolução do contrato por inadimplemento: perspectivas do direito português, brasileiro e alemão. Revista de Direito Civil Contemporâneo, nº 2, v. 2, p. 245-274, jan./ mar.2015, p. 256.)

[9] ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.37-40.

[10] ALVIM, Agostinho. Da inexecução…cit., p.51-58.

[11] PIRES, Catarina Monteiro. Resolução…cit., p. 274.

[12] ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 28.

[13] ASSIS, Araken de. Resolução…cit,p.31.

[14] ASSIS, Araken de. Resolução…cit,p. 34-35.

[15] ASSIS, Araken de. Resolução…cit,p. 36.

[16] AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: resolução. 2ª ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004, p.114-115.

[17] AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção…cit.,p.121-122.

Autores

  • é mestranda na Faculdade de Direito da USP e integrante da Rede de Direito Civil Contemporâneo (USP, Un. Humboldt-Berlim, Un. de Coimbra, Un. de Lisboa, Un. do Porto, Un. de Roma II-Tor Vergata, Un. de Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!