Opinião

Vedação da fishing expedition na persecução penal

Autor

  • Thalita Santos

    é advogada no escritório Segatto Advocacia graduada pela Universidade do Estado de Mato Grosso especialista em Direito Processual e professora universitária.

24 de abril de 2022, 13h15

Sabe-se que o sistema jurídico pátrio tem por base o Estado democrático de Direito, que, respaldado pela Constituição Federal, rege a vida em sociedade nos seus mais amplos e diversos aspectos.

No campo do Direito Penal, todavia, a necessidade de rememorar os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos é incansavelmente cotidiana, uma vez que é nesse campo jurídico que os maiores desmandos do Estado na vida do indivíduo têm destino certo e recorrente.

Em outras palavras, é importante que o Estado entenda (e respeite) o limite entre o poder-dever de punir versus os direitos fundamentais à intimidade, privacidade, dignidade da pessoa humana, dentre tantos outros que possui o indivíduo, ainda que haja possibilidade da constatação de indícios de autoria e materialidade de conduta típica, sendo que, se assim não o for, estar-se-á, pouco a pouco, a esvaziar o próprio Estado democrático, a própria Constituição regente da ordem jurídica pátria, o que fere de morte o Direito como um todo.

Nesse sentido, tem-se que a linha entre o poder-dever do Estado em punir X garantias constitucionais do indivíduo não é tênue, e permite que a partir de um processo penal limpo, baseado nas formas e regras legais (fair play [1]), a justiça seja alcançada em cada caso concreto, e o avanço na seara criminal brasileira seja cada vez mais constante e evidente.

É preciso dizer o óbvio. Somente a partir desse lugar (de obediência aos princípios constitucionais e processuais) é que toda a persecução penal deve caminhar.

É nessa toada, por exemplo, que as investigações preliminares, em que pese não haver espaço para a ampla defesa daquele de quem se busca informações, monitora, investiga, não é palco para atuação policial às margens das "regras do jogo".

O contraditório mitigado, nessa fase, não é carta aberta à limitação do exercício (livre e sem juízo de valoração) do silêncio; do direito de não possuir contra si investigação injustificada; de não ter sua casa levianamente vasculhada, entre tantos outros direitos que não deve limitar.

Nesse último aspecto, importa o destaque para o mandado de busca e apreensão em domicílio, já que não é raro o uso inadequado e fora dos preceitos legais (tanto em sede de investigações, quanto em fase de instrução probatória [processo]).

Em verdade, esses meios de obtenção de prova, que ganharam notoriedade com ações de grande repercussão midiática como a "lava jato", em que pese sugerir simplicidade do instituto (juiz autoriza + autoridade policial executa) e parecer trazer maior efetividade ao Estado diante das investigações, trata-se verdadeiramente de meio excepcional.

E assim o é exatamente por colocar (nas hipóteses autorizadoras — artigo 240 e seguintes do CPP) à disposição do Estado acesso amplo ao que o constituinte delimitou ser inviolável (casa) e outorgou ao próprio indivíduo a liberdade de o fazer como lhe aprouver, já que king of castle ("Rei do seu Castelo") [2].

Tal meio excepcional é complexo e precisa cada vez mais obedecer a forma que lhe delineia, sob pena de serem considerados ilegais os atos praticados e consequentemente invalidar todo o procedimento/processo decorrente, diante da nulidade que pode trazer consigo.

E isso, ao contrário do que pensa o senso comum, induzido por informações poucas e rasas, não é sobre "não aplicar a lei", ou "dificultar as coisas", mas trata-se da estrita observação, entendimento, interpretação e aplicação da própria Carta Legal, sem o qual perecer-se-ia todo o ordenamento.

No que tange ao referido instituto da busca e apreensão, por exemplo, aplicar o que preleciona os artigos 240 e 243 do Código de Processo Penal[3], é obedecer exatamente ao artigo 5º, XI da Constituição Federal [4], que resguarda a inviolabilidade domiciliar (e aqui tudo que envolve tal conceito), sob pena de esvaziar o próprio preceito constitucional.

E isso porque um mandado que não menciona com precisão o local da busca; a identificação de quem a ela será submetida; o motivo e a finalidade da mesma [5], se despe de todo o seu caráter legal, travestindo-se de completo meio arbitrário e alheio ao fair play [6] (jogo limpo) que o processo penal cada vez mais requer, sendo incabível em qualquer nível de discussão jurídica a máxima de que "os fins justificam os meios”", a menos que seja anseio do Estado estar na mesma condição daqueles que persegue.

É nesse sentido que passou-se a discutir na doutrina, e hoje tem ganhado espaço nos tribunais, a teoria da vedação a fishing expedition ("expediente de pesca"/"pescaria probatória") na persecução penal.

Segundo Alexandre Morais da Rosa, a pescaria probatória se aproveita "dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se os direitos fundamentais, para além dos limites legais" [7].

Para ele:

"Fishing expedition ou pescaria probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém… O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade" [8].

Bem verdade que o expediente de pesca, recorrente via de regra através dos meios de obtenção de prova como o acima citado, ocorre também em outras medidas, tais como: interceptação telefônica, quebra de sigilo de dados (telefônicos/bancários), colheita de depoimento, dentre outros procedimentos que ganham certa notoriedade social.

É nesse sentido, permita-se o adendo, que a publicidade descuidada e precipitada de investigações e elementos ali colhidos (muitas vezes sem acesso a todas as partes envolvidas), tende a trazer a esses institutos um antecipado apelo social.

E isso decorre de uma espetacularização midiática que a depender da investigação, ganha determinado caso, do qual não é (e não pode ser palco) o processo penal.

Em situações como essa, já não há paridade de armas às partes envolvida na demanda (ausência do fair play), mas fica constatado o clamor social ao poder judiciário para que apresente uma resposta que atenda não o devido processo legal, não os princípios constitucionais, mas ao anseio da sociedade, ainda que fira as regras da própria norma constituinte e legislativa.

É o que o senso comum requer: recrudescimento das leis. Mas o deseja sem considerar uma série de fatores que precisa e deve considerar os agentes processuais (órgão investigativo/acusador/defesa/juízo), que diferente do leigo sabe, dentre tantos outros preceitos regentes do Estado Democrático de Direito que "ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em julgado" (artigo 5º LVII, CF) [9], após observância estrita do devido processo legal.

O que ocorre mais vezes do que gostaríamos, porém, é que, baseados em especulações, "notícias anônimas", colaborações premiadas (que muitas vezes não servem à elucidação dos fatos), deflagram-se operações, interceptam-se linhas telefônicas e outros dados sensíveis, vasculham o asilo inviolável (casa) no intento de buscar todo e qualquer vestígio, ou indício que se enquadre em qualquer conduta delitiva, para corroborar o ato, e não o contrário como manda a lei, fazendo da persecução penal uma verdadeira pescaria probatória, em que qualquer 'pescado' (indício de materialidade de qualquer crime — mesmo que não seja o investigado) sirva para, através do clamor social, respaldar o ato ilegal.

Assim, violam preceitos fundamentalmente constitucionais, e colocam em xeque (cada vez que há chancela judicial dos referidos atos convalidando-os), o Estado Democrático de Direito, abrindo espaços não para o avanço enquanto sociedade (como pode sentir a massa social coletiva), mas retroagindo em décadas, aos superados sistemas escravagista, inquisitório e violador de direitos que já imperou outrora.

Em verdade, uma interpretação sem espaços para arbitrariedades, a partir da vedação à fishing expedition é o que merece cada vez mais ser aplicada na atual conjuntura jurídico-social no processo penal, conforme recentemente decidiu o Superior Tribunal de Justiça (22/3/2022), no julgamento do HC 663.055/MT [10] ao aplicar a referida teoria em um caso de violabilidade do domicílio em verdadeira pescaria probatória.

Esse é o espírito da interpretação conforme a Constituição!

Diante disso, o avanço através da ótica constitucional no processual penal é o que se busca incansavelmente para que, vez após vez, as garantias individuais e fundamentais estejam verdadeiramente protegidas no Estado democrático de Direito que incansavelmente defendemos.


[1] Expressão que quer trazer o conceito do "jogo limpo" ao campo jurídico, mais especificamente no processo penal — expressão adotada e utilizada pelo professor Alexandre Morais da Rosa em seu livro "Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos".

[2] Máxima britânica para se referir ao indivíduo como “Senhor/dono da sua casa” apud TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 4ª ed., São Paulo: Saraiva. 2011.

[3] BRASIL. Decreto Lei 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 3/4/2022.

[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 3/4/2022

[5] BRASIL. Código de Processo Penal. Op. cit.

[6] Op. cit.

[7] ROSA, Alexandre Morais da. Apud Da Silva, Viviane Ghizoni. Fishing Expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão – Um dilema oculto do processo penal. EMais. P. 45. 2019

[8] ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390

[9] BRASIL. Constituição da República. Op. cit.

[10] STJ. Habeas Corpus: 663.055 MT. 6ª Turma Relator(a): min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ, julgamento: 22/3/2022. Disponível aqui. Acesso em: 4/4/2022

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    é advogada no escritório Segatto Advocacia, graduada pela Universidade do Estado de Mato Grosso, especialista em Direito Processual e professora universitária.

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