Opinião

Coaf e interposição de HC que anula relatório de inteligência financeira

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24 de abril de 2022, 7h07

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) possui a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas que possam ensejar em delitos constantes na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) [1]. Essas competências são exercidas por meio de análise das informações prestadas por instituições financeiras acerca de possíveis movimentações suspeitas que, ocasionalmente, podem ser enquadradas na lei supracitada, ensejando a produção do Relatório de Inteligência Financeira (RIF).

Após a finalização, o aludido relatório poderá ser encaminhado às autoridades competentes para investigação, como o Ministério Público e a Polícia Federal, sendo utilizado como elemento de informação em inquéritos e ações penais. Logo, uma ilegalidade constante — seja no mérito ou na sua forma — no RIF, pode ensejar na impetração do Habeas Corpus.

Aqui valem algumas observações importantes: o RIF somente pode ser realizado de duas maneiras, a primeira é o denominado espontâneo, a partir das informações consideradas suspeitas e encaminhadas pelas instituições financeiras. A segunda é a pedido ou intercâmbio, em que o órgão deverá buscar — apenas — em seu banco de dados aquelas informações relacionadas à pessoa investigada pela autoridade solicitante, nesse caso é necessário existir prévia investigação formalmente instaurada e deve ser realizado mediante sistema SEI.

Sob esta perspectiva, observa-se que o Coaf detém atuação analítica e informativa na produção de relatórios informativos às autoridades competentes, a qual não inclui a atividade investigativa ou persecutória.

Destaca-se, por necessário, que os delitos enfrentados pela Lei de Lavagem de Dinheiro são movidos mediante ação penal pública, em que figura como titular o Ministério Público e não o particular. Com efeito, ressalta-se, ainda, que o Habeas Corpus é ação autônoma que não possui contraditório ou acusação, portanto, a Constituição Federal [2] somente admite a interposição de recurso em Habeas Corpus pelo órgão ministerial ou impetrante quando denegatória a decisão e não há interposição por meio de intervenção de terceiros.

Logo, não existe legalmente a possibilidade de recorrer de decisão que ao anular o RIF, concedeu a ordem do writ e, ainda que existisse eventual recurso previsto na legislação — como por exemplo nos casos de interposição de recurso em sentido estrito em primeiro grau de jurisdição, ou recurso especial e extraordinário em sede de tribunais superiores —, a atuação do Coaf para recorrer transbordaria sua função e afetaria na equidade das partes, contaminando a paridade de armas.

Veja-se, conforme analisado em sede de Habeas Corpus nº 201.965/RJ [3], o Coaf deve funcionar como mero banco de dados, apenas analisando a pertinência das informações prestadas pelas instituições financeiras para comunicar as autoridades responsáveis, basicamente filtrando as informações pertinentes à possíveis investigações.

Logo, os RIFs funcionam como meras comunicações, não sendo pertinente — tampouco legal — a realização de diligências pelo Coaf, para aprofundamento das informações fornecidas pelas instituições, posto que para complementações é necessário autorização judicial para medida de quebra de sigilo bancário.

Portanto, evidente, assim e novamente, que a persecução penal no sistema democrático é um ônus do Estado, que a realiza por meio do Ministério Público. Dessa forma, a possibilidade de um órgão estatal possuir legitimidade recursal para impugnar a decisão que anulou um ato coator do próprio Estado, já existindo a competência ministerial, é reconhecer como possível a ampla acusação — reduzindo assim o princípio da ampla defesa — e, ao mesmo tempo, ignorar o princípio de paridade de armas.

Registre-se, ainda, que não há no direito pátrio nem mesmo a possibilidade de amicus curiae voltado à acusação no processo penal e tampouco há intervenção de terceiros em habeas corpus, pois existe entendimento consolidado nos tribunais superiores [4] da impossibilidade de intervenção de terceiros em sede de Habeas Corpus, com exceção apenas da participação de entidades tal como o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e Instituto de Direito de Defesa (IDDD) [5] em casos emblemáticos, para enriquecer a discussão de assuntos de grande relevância social, nunca funcionando como assistente de acusação disfarçado de amicus curiae.

Além disso, ressalta-se que nenhuma forma de intervenção de terceiros tem legitimidade recursal em sede de Habeas Corpus, insista-se, apenas o amicus curiae a possui para recorrer da decisão que julga Incidente de Demanda Repetitiva ou opor embargos de declaração, conforme o artigo 138 do Código de Processo Civil [6].

Demais disso, forçoso ressaltar que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao julgar o HC nº 1032133-15.2020.4.01.0000, determinou não só anulação dos RIFs produzidos sob encomenda e com indícios de fishing expedition como ordenou a abertura de inquérito policial para investigar nítido desvio de finalidade do Coaf.

Daí já agora, a possibilidade de uma autarquia que em histórico recente já transbordou sua finalidade e atuação em sede inquisitiva, almejar colaborar — ou até fazer as vezes de órgão inquisitorial — com a acusação em sede de ação autônoma constitucional para interpor recurso, confirma aquilo que deveria ser objeto de inquérito – como determinado pela Corte Regional Federal —, o nítido desvio de finalidade do Coaf para realização de perseguição, algo inimaginável em um Estado Democrático de Direito.

Tem-se, assim, que, pela falta de previsão legal e ilegitimidade para figurar como parte no processo penal, a autarquia não pode interpor recurso em Habeas Corpus que busca anular Relatório de Inteligência Financeira e, por tal razão, ao questionar o julgamento do acórdão do HC nº 1032133-15.2020.4.01.0000, o fez por meio de um novo writ impetrando apenas contra a determinação de abertura de inquérito para investigar a atuação dos servidores do órgão, sem pugnar pelo reconhecimento de legalidade dos RIFs anulados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.


[1] BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Brasília, 4/3/1998.

[2] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 201.965. Brasília, DF, 30 de novembro de 2021. Diário Judicial Eletrônico. Brasília, 7/12/2021.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº HC 411123. Relator: ministro Sebastião Reis Júnior. Brasília, DF, 6 de março de 2018. Diário Judicial Eletrônico. Brasília, 22/6/2018.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 143.641. Brasília, 8 de outubro de 2018. Diário Judicial Eletrônico. Brasília, 9/10/2018.

[6] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, 17/3/2015.

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