Opinião

Lavagem de dinheiro é "crime de estado", e não "permanente"

Autor

  • Raul Marques Linhares

    é advogado criminalista doutorando e mestre em Direito Público sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

24 de abril de 2022, 6h07

Entender o crime de lavagem de dinheiro como um delito de natureza permanente conduz a uma conclusão lógica problemática, qual seja: que a única forma de cessação da permanência do delito de lavagem é a tomada de conhecimento pelo Estado sobre a sua prática; inexistiria, portanto, outra forma de consumação da lavagem. Essa inevitável constatação, além de contrariar um critério indispensável à própria classificação dos crimes permanentes, é incompatível com o imperativo da prescritibilidade dos crimes.

A problemática a respeito do momento consumativo da lavagem (se crime instantâneo, ou se crime permanente) é um dos pontos mais controvertidos no estudo do crime de lavagem. No Supremo Tribunal Federal, a exemplo do que ocorre no Superior Tribunal de Justiça, prevalece o entendimento de que esse delito possui natureza permanente, ao menos quando praticado sob a forma do verbo típico "ocultar". Tal posicionamento foi afirmado pela Suprema Corte quando do julgamento da Ação Penal nº 863, e reafirmado em posteriores ocasiões, inclusive com a utilização de analogia com outros tipos delitivos que também se utilizam do verbo "ocultar" como elemento típico (p.ex., receptação, ocultação de cadáver etc.).

Contudo, a configuração típica do crime de lavagem de dinheiro impede que seja incorporado à categoria dos crimes permanentes, assim como impede que seja equiparado a outros delitos constituídos pelo verbo típico "ocultar". Diferentemente do "ocultar" caracterizador, por exemplo, da receptação (ocultação, em caráter temporário, de coisa produto de crime), o “ocultar” da lavagem de capitais se refere não a coisa, mas a característica de coisa (natureza, origem, localização etc.); nas palavras de José Manuel Palma Herrera, "não se trata de ocultar fisicamente os bens, senão tão somente de desvinculá-los de sua origem ilícita, criando, assim, a aparência de que os mesmos tenham sido obtidos de maneira legal" [1].

Nesses termos, a peculiaridade da lavagem reside no fato de que, em regra, cada transação patrimonial realizada pelo agente, com os ativos provenientes de infração penal, possui a capacidade de produzir efeitos mesmo após a conclusão do procedimento de lavagem, independentemente de qualquer nova conduta do autor do crime.

Pensemos no agente que, para "lavar" o capital auferido por meio da exploração de jogos de azar, faz transitar tal capital por contas bancárias titularizadas por terceiros ("laranjas"), em montantes fracionados, posteriormente completando o procedimento de lavagem com o recebimento de tais ativos, operação final justificada por meio de falsos contratos de assessoria, com a respectiva emissão de notas fiscais fraudulentas. Nesse caso, mesmo que tenha o agente completado o ciclo da lavagem, reinserindo o capital no mercado com aparência de licitude, e que efetivamente seja o detentor declarado do patrimônio originariamente adquirido com a prática de infração penal (ou seja, a propriedade dos ativos não mais está oculta), permanece oculta a origem dos ativos, em razão da continuidade dos efeitos irradiados pelas movimentações financeiras prévias (que jamais serão apagadas).

Em outras palavras, a perfectibilização do processo de lavagem não anula o histórico de movimentações patrimoniais e os efeitos que tais movimentações produzem, não importa o que faça o agente. E, se o crime permanente é aquele cuja situação antijurídica se mantém por determinado tempo "pela vontade do autor" [2], "que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas" [3], é inevitável se concluir pela incompatibilidade dessa classificação com o crime de lavagem de dinheiro, justamente porque não há como o agente fazer cessar o estado antijurídico criado (que se mantém independentemente de sua vontade). Afinal, o conjunto de atos que constituem o processo de lavagem gravam os seus efeitos no histórico dos ativos, efeitos que se perpetuam independentemente dos atos subsequentes, mesmo que a propriedade declarada de tais bens retornem ao autor.

Portanto, se o crime de lavagem é um delito permanente, consequentemente, o único modo de consumação desse delito é a sua descoberta pelas autoridades persecutórias (com a ciência da verdadeira origem dos ativos, por exemplo). Além de tal constatação contrariar uma importante característica dos crimes permanentes, vai de encontro ao postulado da prescritibilidade dos crimes, especificamente em relação à prescrição pré-processual, contabilizada entre a data da consumação do crime e a data do recebimento da denúncia (ressalvadas as exceções constitucionais quanto ao crime de racismo e de ação de grupos armados). Afinal, no Direito Penal, admite-se que "o alarma social, que o crime terá produzido, já se esvaneceu, com o lento passar dos anos" [4]; que, após longo prazo, há uma "presunção da desnecessidade da defesa social" [5]; que o "tempo, que tudo apaga, não pode deixar de influir no terreno repressivo" [6].

Por essas razões (e por outras), acreditamos não ser correto considerar o delito de lavagem de dinheiro um crime permanente. Trata-se de "crime de estado" [7], consumado no momento da conclusão do ato de dissimulação ou ocultação, mesmo que o estado antijurídico se prolongue no tempo.


[1] PALMA HERRERA, José Manuel. Los delitos de blanqueo de capitales. Madrid: Edersa, 2000. p. 440. (tradução nossa)

[2] MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte general. 10. ed. Barcelona: Editorial Reppertor. p. 232. (tradução nossa)

[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte geral. Tomo 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 314.

[4] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. Tomo 2. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1978. v. 1, p. 699.

[5] CARVALHO FILHO, Aloysio de. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 4, p. 214.

[6] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1965. v. 1, p. 461.

[7] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Lavagem de Dinheiro. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2022. p. 90.

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