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Araújo e Roehrig: Raspar cabelo de detento é desprezo do Estado

24 de abril de 2022, 9h07

Por Romulo de Aguiar Araújo, José Flávio Ferrari Roehrig

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No último dia 4 de abril, na cidade de Arapongas, norte do Paraná, Eloá Santos, mulher transexual, foi presa por supostamente ter praticado um roubo naquela cidade. Posteriormente, foi encaminhada à cadeia pública daquela cidade, onde ficou recolhida em uma ala masculina e teve seu cabelo raspado [1]Quase duas semanas depois, a Justiça mandou soltá-la, com o uso de tornozeleira eletrônica, 

A prática de raspar o cabelo dos detentos é usual nas unidades prisionais do país, mas ela é realmente necessária? No caso de mulheres, inclusive transexuais, essa prática encontra embasamento legal?

A questão sobre a justificativa para o ato de raspar o cabelo já foi abordado tempos atrás quando da prisão do DJ Ivis [2], que também teve seu cabelo raspado. O objetivo desse conteúdo não é de defender ele ou ela pelo mal injusto cometido, mas sim analisar os justificadores reais e latentes do ato de raspar os cabelos.

Conforme Portaria nº 1.191, de 19 de junho de 2008 do Ministério da Justiça, é competência do Chefe da Divisão de Segurança e Disciplina (artigo 2º, VIII) realizar o processo de higienização pessoal, incluindo: a) cortar cabelo, utilizando-se como padrão o pente número 2 da máquina de corte; b) raspar barba; c) aparar bigodes.

Essa portaria, válida somente para as unidades federais (aplicada de igual maneira às demais), torna compulsória a raspagem de cabelo e barba dos detentos homens.

Os justificadores da administração penitenciária são pautados na higiene e na disciplina. No entanto, os justificadores são falaciosos. O primeiro deles, para a "manutenção da higiene", uma vez que nos estabelecimentos prisionais femininos não há tal obrigação, bem como existem tantos outros meios menos lesivos para conter, por exemplo, piolhos, que tornam desnecessária a medida. O segundo, referente à disciplina, detém traços do militarismo, que presume maior obediência à rotina e adequação ao passo que tarefas como essas são realizadas diariamente.

A administração penitenciária tem totais condições de zelar pela disciplina e ordem do estabelecimento e pela saúde das pessoas presas sem que para isso as submeta a situações humilhantes, práticas estigmatizantes ou, em geral, medidas atentatórias aos direitos fundamentais e que ultrapassam todos os limites legais e éticos do Estado democrático de Direito [3].

O que se nota, contudo, é que a raspagem do cabelo é utilizada como consequência da pena (pena ilícita, cruel e infamante), que retira traços mais característicos das pessoas, anulando a individualidade, fomentando a institucionalização, violando a vida privada, a honra e a imagem da pessoa presa, em uma verdadeira "mortificação do eu" [4].

Pelo visto, até então, o ato de raspar o cabelo (masculino) se mostra descabido. Porém, no caso da mulher transexual, precisamos ir adiante.

Em novembro de 2006, foi elaborado, por especialistas em direito internacional e direitos humanos de inúmeros países, um material referente à proteção da comunidade LGTBQIA+ na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, que resultou em um documento intitulado Princípios de Yogyakarta [5].

Nesse documento, dois princípios nos chamam a atenção para o caso em apreço: os princípios 9 e 10, sendo que o primeiro trata sobre o direito a tratamento humano durante a detenção:

"Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa."

Uma das obrigações do Estado (item "a") é a garantia de que a detenção evite a marginalização das pessoas motivada pela sua orientação sexual ou identidade de gênero, não podendo ser expostas a maus-tratos ou abusos de qualquer natureza e que "e todos os detentos e detentas participem de decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua orientação sexual e identidade de gênero" (item "c").

Além disso o item "g" trata da necessidade implementação de

"[..,] programas de treinamento e conscientização, para o pessoal prisional e todas as outras pessoas do setor público e privado que estão envolvidas com as instalações prisionais, sobre os padrões internacionais de direitos humanos e princípios de igualdade e não-discriminação, inclusive em relação à orientação sexual e identidade de gênero."

E o segundo, princípio 10, sobre o "direito de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante":

Toda pessoa tem o direito de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante, inclusive por razões relacionadas à sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Ponto importante neste segundo princípio é referente ao item "c" dada aos Estados que deverão "implantar programas de treinamento e conscientização, para a polícia, o pessoal prisional e todas as outras pessoas do setor público e privado que estão em posição de perpetrar ou evitar esses atos".

Diante desses princípios fica claro que não há, em um Estado Democrático de Direito, necessidade de discussão sobre tratamento igualitário entre as pessoas, seja qual for a sua orientação sexual ou identidade de gênero, certo? Errado.

Errado, pois, o Supremo Tribunal Federal teve que enfrentar essa questão na ADPF nº 527, de relatoria do ministro Luiz Roberto Barroso [6], que foi motivada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT) a possibilidade de transexuais e travestis com identificação de gênero feminino de optar por cumprir pena em presídio feminino ou masculino, tendo respeitada, em caso de opção por cumprir pena em presídio masculino, a sua segurança.

A decisão foi tomada em ajuste à medida cautelar parcialmente deferida em junho de 2019, ocasião em que o ministro relator reconheceu somente o direito às transexuais femininas de cumprirem pena em presídios femininos.

Diga-se isso, pois nos estabelecimentos prisionais brasileiros as ilegalidades são severas contra às mulheres encarceradas e da população LGBTQIA+. Alguns dados de 2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CNPCP [7], e a Resolução Conjunta nº 1 de 2014 [8] já tratavam de medidas de criação de alas especiais para presos da população LGBT de adesão voluntária, onde exerceriam a liberdade de expressão e optar por "uso de roupas ligadas à sua identidade, manutenção do cabelo comprido para travestis e transexuais, visita íntima, acesso a tratamento hormonal, de acordo com a evolução legal e judicial quanto à condição de gênero ou orientação sexual" [9].


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A decisão amplia a interpretação da Resolução Conjunta 1 de 15 de abril de 2014: CNCD e CNPCP – LGBT, que normativamente autorizava exclusivamente às pessoas transexuais o direito de cumprir pena em unidades prisionais femininas, e mantinha as travestis nas unidades masculinas, devendo, no entanto, ser mantidas em espaços de vivência específicos [10].

 

Relatórios elaborados sobre o tema foram utilizados para embasar a decisão, dentre eles o relatóri: "LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento", do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), e a Nota Técnica 7/2020, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).

Pauta a construção da ampliação da medida cautelar anterior no direito à vida, à liberdade e à segurança (ONU, 1948) [11] (BRASIL, 1992a)[12]; na vedação à tortura e ao tratamento desumano e cruel (ONU, 1948) [13] (BRASIL, 1992a) [14]; e na proibição de tratamento discriminatório (ONU, 1992) [15] (BRASIL, 1992a) [16] (BRASIL, 1992b) [17]. A crítica reside na pré-existência desses fatores e da norma internacional antes da prolação da decisão no ano de 2019. Desde o ano de 2007 vigoram as Regras de Yogyakarta [18], que apesar de serem consideradas soft law, estabelecem diretrizes para os Estados no tratamento em relação à orientação sexual e identidade de gênero, do qual o Brasil é signatário.

Não é novidade que o Brasil trata suas minorias com desprezo e violência. Quando analisamos os vulneráveis representados pelas siglas LGBTQIA+ a brutalidade ganha espaço para crescimento e base para desenvolvimento. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Com dados do mundo inteiros extraídos entre 2008 e setembro de 2020, foram reportados 3.664 assassinatos, dos quais 1.520 ocorreram no Brasil, o equivalente a 41,5%[19].

Além do elevadíssimo índice de mortes, a discriminação, seleção, exclusão e constante violência forçam transtornos psicológicos, como ansiedade e depressão [20].

Por fim e não menos importante, já que fora demonstrada amplamente a violência praticada contra essa parcela da população, há que se observar que o próprio Depen-PR (Departamento Penitenciário do Estado do Paraná) através da Portaria nº 87 de 10 de setembro de 2019, institui paramentos de acolhimento e atendimento à população GTT (gays, travesti e transexual) em privação de liberdade no sistema penitenciário paranaense.

Quanto a manutenção dos cabelos compridos a regra é expressa no artigo 5º, que diz:

"Art. 5º.  Às pessoas transgêneros em privação de liberdade será permitido o uso de roupas femininas ou masculinas, conforme o gênero, e a manutenção de cabelos compridos, maquiagem e tintura de cabelo, garantindo seus caracteres secundários de acordo com a sua identidade de gênero, nos termos da portaria vigente do Depen."

De tudo analisado, tendo em vistas as diretrizes internacionais, a ADPF em trâmite no Supremo Tribunal Federal, bem como portarias referentes ao tema, há que se concluir que não há mais a necessidade de raspagem de cabelo de detentos homens, tão menos de detentas mulheres, sejam elas cisgênero ou trans, tratando essa medida tomada na cadeia pública paranaense cruel, degradante e desumana.

Além disso, se faz urgente a implementação dos itens dos Princípios de Yogyakarta quanto a implementação de treinamento e conscientização para as pessoas que atuam de forma direta no sistema de segurança pública e prisional para que tais abusos sejam evitados, visando a proteção de direitos humanos e os princípios de igualdade e não discriminação em relação a orientação sexual e identidade de gênero.


[1] LUME REDE DE JORNALISTAS. Transexual é presa em unidade masculina e tem cabelo raspado em Arapongas. Disponível em: https://redelume.com.br/2022/04/11/transexual-presa-cabelo-raspado/ Acesso em: 13/4/2022.

[2] ROEHRIG, José Flávio Ferrari. É mesmo necessário raspar o cabelo das pessoas privadas de liberdade? Instagram: @puxandopena. 21/7/2021. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CRl34_5jGGD/?igshid=YmMyMTA2M2Y. Acesso em: 13/4/2022.

[3] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal [livro eletrônico]: teoria e prática. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 37.

[4] GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva S.A., 1974, p. 11.

[5] PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf. Acesso em: 13/4/2022.

[6] CONJUR. Barroso permite que trans e travestis escolham onde cumprir pena. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-19/barroso-permite-trans-travestis-escolham-onde-cumprir-pena. Acesso em: 13/4/2022.

[7] BRASIL. CNPCP, Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária. 2015: Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/plano_nacional/PNPCP-2015.pdf. Acesso em: 13/4/2022.


[8] BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. Resolução Conjunta Nº 1 CNPC e CNCD – LGBT, de 15 de abril de 2014c. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5496473
https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2014/resolucao-conjunta-no-1-de-15-de-abril-de-2014.pdf/view. Acesso em: 13/4/2022.

[9] ARAÚJO, Romulo de Aguiar. Os excessos e desvios no curso da execução penal e o estado de coisas inconstitucional: regulamentação, proteção e promoção de direitos fundamentais. Dissertação (Mestrado em Direito) Maringá (PR): Unicesumar, 2018. p.93.

[10] BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. Resolução Conjunta Nº 1 CNPC e CNCD – LGBT, de 15 de abril de 2014c. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5496473
https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2014/resolucao-conjunta-no-1-de-15-de-abril-de-2014.pdf/view. Acesso em 13/4/2022. "Art. 3º. Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos. […] Art. 4º. As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas".

[11] ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), 1948. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/por.pdf. Acesso em 9/7/2021. "Art. 3º: Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal";

[12] BRASIL, Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos – Decreto 592, de 6 de julho de 1992a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em 9/7/2021. "Art. 6º: 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida. […]"

[13] "Art.5º: Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante".

[14] "Art. 7º: Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas".

[15] Art. 2º: "1 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição […]".

[16] Art. 26: "Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação".

[17] BRASIL, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Decreto 591, de 6 de julho de 1992b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em 9/7/2021. "Art. 2º: 1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. 2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais".

[18] Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos, com o objetivo de desenvolver um conjunto de princípios jurídicos internacionais sobre a aplicação da legislação internacional às violações de direitos humanos com base na orientação sexual e identidade de gênero, reuniram um grupo de especialistas em direitos humanos de 25 países. Em novembro de 2006, em Yogyakarta, Indonésia, os Princípios de Yogyakarta foram aprovados por unanimidade.

[19] TRANSGENDER EUROPE AND CARSTEN BALZER. Transgender murder monitoring. 2021. Disponível em: https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/. Acesso em 9/7/2021.

[20] JORNAL DA USP. Além da discriminação e violência, população trans sobrevive aos transtornos psicológicos. 2/3/2021. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/alem-da-discriminacao-e-violencia-populacao-trans-sobrevive-aos-transtornos-psicologicos/. Acesso em 9/7/2021.