Opinião

"Estão lá corpos estendidos no chão": a prerrogativa, o direito e a garantia

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23 de abril de 2022, 15h34

Assim já dizia o narrador de futebol Januário de Oliveira (1940-2021) [1]. Lembrei-me desta frase quando em viagem para o interior do estado do Rio Grande do Sul, com meu sócio, para fazer atendimentos a presos em parlatórios [2], percebi que as prerrogativas [3], o direito e a garantia estavam caídas, jogadas ao chão, desrespeitadas todos os dias.

Meu pai dizia que não gostava de advogado criminalista, mesmo tendo um filho criminalista e mesmo sem nunca ter precisado de um profissional destes ao longo de sua vida de 78 anos. Fiquei pensando após esta viagem, igual a tantas outras já realizadas que pela quantidade de ofensas cometidas aos direitos das pessoas que estão presas, sendo elas simplesmente depositadas e esquecidas, o motivo de tornarem-se verdadeiros "excluídos" [4].

Percebi que não era só o meu pai que não gostava de advogado criminalista, bem mais gente também não gosta. Ocorre que não é preciso que gostem de advogados criminalistas, mas sim é preciso e necessário que os respeitem e ás suas funções, assim como o meu pai que não gostava, mas que ao menos os respeitava. Já as pessoas que atuam ao longo da prática forense, que fazem parte do eixo do sistema de justiça criminal, não só demonstram não gostar como também, e aí sim o erro, não respeitam e fazem de tudo para dificultar o trabalho do advogado, prejudicando ainda mais a vida daquele que está preso.

Os gestores públicos, sejam diretores de casas prisionais, agentes penitenciários, delegados, promotores ou juízes, absolutamente nenhum destes, precisam gostar do advogado criminal, muito menos concordar com o seu mister, mas precisam sim respeitá-lo, respeitar as prerrogativas profissionais, respeitar os direitos do cidadão e daquele que por um momento perdeu tal condição por estar preso com sentença penal condenatória transitada em julgado. Devem respeitar as prerrogativas e os direitos que são, na verdade, de toda a sociedade [5], inclusive deles gestores, deles agentes de Estado. Sim, pois os direitos e garantias fundamentais são direitos da sociedade, assim como as prerrogativas do advogado são da e para a sociedade.

E por que tal constatação? Porque nas viagens que são feitas, nos atendimentos que se realizam ao longo da atividade profissional, percebe-se que tudo vai de encontro à atividade do advogado que atende seu cliente preso, tudo é feito para dificultar a defesa, desde a entrada no Foro para uma audiência em que promotores e juízes não são revistados, ou seja, não passam pelo sistema de detecção de metais, mas pelo qual o advogado é constrangido a passar, evidenciando um tratamento diferente do que determina a Lei Federal 8.906/1994 [6]. Réus ainda entram em sala de audiência algemados. Presos são atendidos em delegacias de forma desumana e seu defensor também, a ponto de não conseguir o advogado falar com seu cliente em particular, pois a conversa é travada em pé, com o cliente algemado, acorrentado na parede como se fosse um "animal".

Atendimentos a condenados presos em penitenciárias, onde a advocacia necessita obrigatoriamente fazer uso do parlatório, seja para preparar seu cliente para a audiência, no caso de presos provisórios ou para traçar estratégias para a execução da pena, são realizados, via de regra, em pé e sem luz no ambiente, sem que se consiga ao menos ver o cliente. Os ambientes são imundos, apertados, com insetos e suscetíveis de interferência externa, onde se escutam falas paralelas de outros presos ou ainda e até dos agentes penitenciários ou policiais, que perturbam o atendimento de forma até a parecer que justamente ocorra isto para que o atendimento não aconteça de forma eficiente e eficaz. Ainda, para o advogado defensor ter acesso a uma procuração assinada por seu cliente, tem que pedir para que o agente penitenciário leve o documento até o cliente e o mande assinar, tudo para dificultar o acesso da defesa, e como consequência, da justiça a seu cliente. Impera assim a verdadeira injustiça epistêmica [7], pois como poderemos evitá-la se não há condições mínimas para o exercício da defesa nos parlatórios? Isto acontece porque há um descrédito na função do advogado criminalista, ocorre sim uma discriminação por sua atividade. Tudo isso demonstra uma cultura [8] da vingança, uma cultura do punitivismo repaginado, mas que é vingança pura, "segregação punitiva" [9], desrespeito puro e pura violência.

Poderá o leitor pensar: "por que não reclamam"? Sim, a advocacia criminal faz isso diuturnamente e vive brigando diuturnamente também, isso por que é o advogado criminal que impõe uma barreira para o Estado penal, é ele que impede que o Estado penal oprima mais do que já consegue fazer. Esta briga causa desgastes imensos para o profissional, que não seriam necessários se houvesse respeito à profissão, se mudasse a visão para ver o advogado criminal como mais um agente deste sistema de justiça criminal, apenas com natureza jurídica diferente dos demais e não como um entrave, um inimigo para todos. O advogado é o anteparo entre a justiça criminal e o réu, ou seja, se não for ele a fazer a proteção dos direitos, o réu será moído de forma muda pelo sistema de justiça criminal.

Quando se ofende a liberdade do advogado em agir como diuturnamente é feito nas delegacias, nas casas prisionais e nos parlatórios, está sendo ofendida uma prerrogativa da sociedade porque em uma democracia e no sistema acusatório, tem direito o cidadão de ser defendido, de ser atendido por um advogado que possa exercer de forma livre seu múnus público [10].

A defesa é prejudicada sistematicamente, ora porque prisões preventivas são aplicadas ao alvedrio da lei processual, quando se poderia e deveria o juízo aplicar as medidas alternativas ao cárcere e, quando aplica a referida prisão processual, limita a atuação do advogado, pois não é preciso muito esforço para entender que quando o cliente está em liberdade pode procurar seu advogado, ir ao escritório, trabalhar conjuntamente à defesa. Mas quando preso, com o cliente recluso, esta liberdade não existe mais e por óbvio, também passa a ter limitações a defesa quando sofre com a precariedade, com as interrupções como relatadas no início deste artigo e quando torna-se a defesa limitada, o trabalho do advogado passa a ser hercúleo.

Brigamos sim, não só o dia inteiro como também e muitas vezes, as noites e as madrugadas inteiras, mas brigar não adianta em absolutamente nada ou quase nada, talvez ajude pontualmente àquela pessoa atendida naquela situação momentânea, mas outros sofrerão logo a seguir, pois é possível que nem todos estejam dispostos a sempre e sempre brigar e assim a cultura não muda. Na verdade, o que deve ser feito é a denúncia por meio de escritos que acabarão por incomodar, fazendo assim o que Lenio Streck ensina, que é o "constrangimento epistêmico" [11] e que talvez aqueles que detenham o poder de mudar, mudem alguma coisa. Não é preciso gostar de advogados criminalistas, apenas é preciso respeitá-los e garantir as prerrogativas, os direitos e as garantias fundamentais, que na verdade são da sociedade e, obviamente, não apenas "filigranas" [12] como alguns dizem por aí.

A torcida é para que as pessoas que hoje dificultam o trabalho dos advogados defensores, ou que no mínimo não mudam o que está ao seu alcance de ser mudado, se não por obrigação funcional ao menos por questão de humanidade mudem e que nunca estejam dentre aqueles que precisem do auxílio de um criminalista, pois se precisarem estaremos lá prontos para defender seus direitos também, mas se provarem do tempero que hoje utilizam, se arrependerão amargamente de usá-lo. Que mudem a forma de atuar e de tratar aquele que defende os direitos das pessoas sem que se precise sentir na própria pele o horror de tudo que foi denunciado.

[1] O narrador futebolístico, conhecido como o "Rei dos Bordões" e o bordão era: "está lá um corpo estendido no chão”, usado por ele quando um jogador estava caído por ter sofrido uma falta".

[2] "Parlatório" é o local, em reservado, de conversa entre uma pessoa e seu visitante, como demonstra Caldas Aulete. Também é conhecido como "locutório" que é o "recinto cercado por grades, em prisões ou conventos, onde os internos conversam com as pessoas de fora"; Disponível em: https://www.aulete.com.br/Locut%C3%B3rio. Acesso em: 9/4/2022.

[3] As prerrogativas são direitos dos advogados para realizarem o exercício de sua profissão de forma livre. Por exemplo, no art. 7º, da Lei nº 8.906/1994, está no inciso III, que o advogado tem o direito de se comunicar reservadamente com seu cliente preso. Logo, o Estado deve proporcionar ambiente adequado para que o advogado atenda seu cliente quando ele estiver preso, não importa onde, se em delegacias ou em casas prisionais. Não respeitado este direito ocorre, portanto, um desrespeito a prerrogativa deste profissional. Conforme o Manual de Defesa das Prerrogativas dos Advogados, publicado pela Seccional do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível aqui. Acesso em: 16/4/2022. O que é ofender as prerrogativas da advocacia? "É todo e qualquer ato ou ação que restrinja o exercício profissional pleno da advocacia e, inclusive, desatenda os direitos dos advogados dispostos no art. 7° da Lei n.° 8.906/94". Além de que violar as prerrogativas é crime, na forma do art. 7º-B, da mesma lei, com pena de três meses a um ano. Ainda, fazer a leitura em concomitante com a Lei nº 13.869/2019, no art. 20, está que "impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado", reclusão de seis meses a dois anos e multa. Ver também: CERNOV, Zênia; SILVA, Paulo Alexandre; RODRIGUES, Joaquim Pedro de Medeiros. Violação de prerrogativas da advocacia: instrumentos para uma firme resposta. Revista Consultor Jurídico. Publicado em 4 de dezembro de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17/4/2022.

[4] YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan. Instituto Carioca de Criminologia. 2002 (Pensamento Criminológico 7), p. 24. Os excluídos não estão ali para serem "(…) transformado em 'um de nós'", como expressou o autor, isso por que foram de fato depositados e abandonados no cárcere. A pena é para apenas separar da sociedade quem produz(economicamente ativos) daqueles que nada produz. GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução, apresentação e notas de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan. 2008 (Pensamento Criminológico 16), p. 313. É o que chama o autor de "segregação punitiva" indicando que ha confiança em novos métodos de "neutralização prisional" e a lógica parece bem clara após a passagem por parlatórios, pois tudo é para "neutralizar" mesmo o preso ao ponto de dificultar inclusive o acesso ao seu último e único recurso, que é o atendimento por aquele que poderá defendê-lo e tirá-lo daquela circunstância.

[5] CERNOV, Zênia; SILVA, Paulo Alexandre; RODRIGUES, Joaquim Pedro de Medeiros. Violação de prerrogativas da advocacia: instrumentos para uma firme resposta. Revista Consultor Jurídico. Publicado em 4 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-04/violacao-prerrogativas-advocacia-instrumentos-resposta. Acesso em: 17/4/2022.

[6] No Art. 6º está que não há hierarquia entre juízes, promotores e advogados e no parágrafo único também está que as "autoridades", "servidores públicos" devem dispensar o atendimento digno e compatível com a advocacia. Bem diferente do que se vê na prática, claro que sem generalizar por que generalizações são burras.

[7] Tais situações ocorrem por que se desacredita a atuação do advogado no cárcere, bem como quer se desacreditar a fala do preso, por pura discriminação já que ele é preso mesmo. Isso ocorre também com o preso provisório, já que para os néscios "preso é preso", não importa. Ver sobre injustiça epistêmica: CASTELIANO, Carolina; HERDY, Rachel. Por que precisamos de bons ouvintes? Henry foi vítima de ‘injustiça epistêmica’. Revista Consultor Jurídico. Publicado em 30 de abril de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-30/limite-penalpor-precisamos-bons-ouvintes-henry-tambem-foi-vitima-injustica#_ftn7. Acesso em: 16/4/2022. Explicam as autoras que injustiça epistêmica, em parca síntese: "Fricker argumenta que existe uma forma distintamente epistêmica de injustiça, a qual consiste em causar um prejuízo ou dano a alguém especificamente em sua capacidade como sujeito de conhecimento [knower] e transmissor de informações. A injustiça epistêmica pode resultar em danos à própria identidade e à dignidade da pessoa como ser humano. (…)". Ver também: MATIDA, Janaina; MOSCATELLI, Lívia. Justiça como humanidade na construção de uma investigação preliminar epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Publicado em 18/8/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-14/limite-penal-construcao-investigacao-preliminar-epistemica. Acesso em: 16/4/2022. Fala a autora sobre empatia, em se colocar no lugar do outro. No caso das dificuldades e dos preconceitos apresentados no texto ocorrem por muita falta de empatia, se não de se colocar no lugar do preso (o que para muito é um exercício impossível de ser feito), mas no mínimo de se colocar no lugar do advogado criminalista, no exercício de sua atividade que é múnus público. "Há um aspecto epistêmico na empatia, pois o sujeito que tem a capacidade de ser colocar no lugar do outro está em melhores condições de conhecer a verdade dos fatos. Os preconceitos e demais generalizações apressadas não foram bastante para lhe encurtarem a visão.(…)". Ainda relata a autora que "(…). Fica evidente, portanto, que o tratamento empático não se opõe à imparcialidade; antes, funciona como condição para o seu genuíno estabelecimento". Veja que o advogado não tem condições mínimias de evitar a "injustiça epistêmica" se não lhe é franqueado acesso em reservado com seu cliente e condições mínimas de ouvi-lo.

[8] GIDDENS, Anthony. Conceitos essenciais da Sociologia. Tradução Claudia Freire. São Paulo: Unesp. 2016, p. 213. Cultura para o autor é "modo de vida, incluindo conhecimentos, hábitos, regras, leis e crenças, que caracteriza determinada sociedade ou determinado grupo social". Sim, aqui há uma determinada característica que comporta um hábito, uma tradição enraizada nos sistema de justiça criminal.

[9] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução, apresentação e notas de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan. 2008 (Pensamento Criminológico 16), p. 313. Tem a ver com a ideia de "neutralizar por meio da prisão", ou seja, a "confiança em métodos" que são forjados e tem como estratégias "punir e excluir".

[10] Conforme §2º, do Art. 2º, da Lei n. 8.906/1994, os atos do advogado são considerados múnus público.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito. 2017, p. 42 e 43. Ensina o autor que quando se realiza "constrangimento epistêmico" está se realizando uma "'censura significativa', no sentido de se poder distinguir, através da construção de uma crítica fundamentada, boas e más decisões (ou melhor: decisões constitucionalmente corretas das incorretas). (…). No fundo, é um modo de dizermos que a 'doutrina deve (voltar a) doutrinar’ e não só colocar, simplesmente, na condição de caudatária e meramente reprodutora das decisões dos tribunais. (…)." E por isso ele também explica que deve o doutrinador constranger estes pensamentos "solipsistas".

[12] STRECK, Lenio Luiz. Com a palavra o STF: como recuperar o Direito do 'Plano Deltan'? Revista Consultor Jurídico. Publicado em 8 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-08/lenio-streck-recuperar-direito-plano-deltan. Acesso em: 16/4/2022. Em artigo o autor explica que o plano Collor, a ministra da Economia, quando do congelamento das contas dos brasileiros, quando indagada que a Constituição não permitia, disse: "Não me venham com filigranas jurídicas". Veja que como o autor aponta "ela fez escola" olha o Deltan aí gente! "O tempo passa. Oh, tempora! Vinte e sete anos depois, em 2016, Deltan disse, por duas vezes, o que dissera Zélia, uma economista. Sim, Deltan, fiscal da lei e das garantias constitucionais (assim diz a CF sobre a função do MP, no qual ingressei em 1986), disse, em duas oportunidades, que as garantias constitucionais eram filigranas. O que vale é a política (sic) (…)."

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