Opinião

Consequências jurídicas do pedido de destaque na "revisão da vida toda"

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23 de abril de 2022, 6h35

O presente artigo busca contribuir com o debate acerca das consequências jurídicas decorrentes do pedido de destaque feito no julgamento de recursos em ambiente eletrônico por parte do Supremo Tribunal Federal.

Trata-se de mecanismo previsto no §3º do artigo 21-B, do Regime Interno do STF, para que o controle dos julgamentos realizados em plenário virtual não fique nas mãos unicamente dos ministros presidente e relator, a conferir: "no caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta".

Deixo claro de início que o julgamento eletrônico via plenário virtual, previsto no artigo 21-B, do RISTF, diz respeito a mecanismo de julgamento inserido dentro da competência normativa garantida, ao Supremo e aos demais tribunais, pelo artigo 96, inciso I, a, da Constituição Federal, segundo o qual compete aos tribunais, privativamente, "eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos".

Não obstante, é certo que os Regimentos Internos dos Tribunais brasileiros, inclusive o do STF, possuem força normativa infralegal, logo, devendo observância ao regramento contido no Código de Processo Civil e em leis processuais especiais — no caso do STF, Leis nºs 8.038/90 e 9.868/99, dentre outras — seja porque o próprio artigo 96, inciso I, a, da Constituição exige estrita observância às normas processuais na edição de tais regimentos, seja porque compete privativamente à União legislar sobre direito processual (artigo 22, inciso I), havendo competência concorrente com os estados e o Distrito Federal para legislar sobre procedimentos em matéria processual (artigo 24, inciso XI).

Ora, se é competência legislativa, é porque deve ser veiculada mediante a edição de lei — ordinária, via de regra — votada e aprovada pelo Poder Legislativo.

Aliás, tal a importância das regras processuais que sequer é possível a edição, pelo chefe do Poder Executivo, de Medida Provisória que verse sobre matéria processual, conforme regra expressa do artigo 62, §1º, inciso I, b, da Constituição Federal.

Sucede que, utilizando-se do autorizativo contido no artigo 21-B, §5º, do RISTF, o então Presidente do Supremo Tribunal Federal editou a Resolução nº 669, de 19 de março de 2020, a qual, modificando o artigo 4º, §2º, da Resolução nº 642, de 14 de junho de 2019, prevendo, de forma expressa, o seguinte: "Nos casos de destaques, previstos neste artigo, o julgamento será reiniciado".

Em uma interpretação literal, o que o artigo 4º, §2º, da Resolução nº 642/2019 do Supremo Tribunal Federal prescreve é que, realizado o pedido de destaque, o julgamento virtual estaria completamente esvaziado, como que anulado, iniciando-se novo julgamento no ambiente físico.

Mas seria possível tal interpretação, à luz da Constituição Federal e do Código de Processo Civil?

Nesse diapasão, ressalte-se uma vez mais que o Regimento Interno do STF possui caráter infralegal, não podendo conflitar com prescrições do Código de Processo Civil e de outras leis processuais em vigor, além do que não compete aos Tribunais editar normas processuais ou procedimentais em matéria processual, mas apenas dispor "sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos" (artigo 96, I, b, da CF/88).

Assim é que, não obstante o mecanismo do julgamento virtual pelo STF esteja inserido dentro de sua competência normativa, garantida constitucionalmente, as consequências do pedido de destaque para o julgamento já iniciado bule, de forma inegável, com o próprio regramento processual existente acerca da disciplina dos julgamentos colegiados.

Isso porque o Código de Processo Civil possui regras expressas acerca do formato do julgamento colegiado, notadamente artigos 937 a 941, inclusive e especialmente no tocante à possibilidade e limites no tocante à modificação do voto já proferido por cada integrante do órgão colegiado.

Assim é que o Código de Processo Civil prevê: 1) a possibilidade de solicitação de vista por parte do "relator ou outro juiz que não se considerar habilitado a proferir imediatamente seu voto", "após o qual o recurso será reincluído em pauta para julgamento na sessão seguinte à data da devolução" (artigo 940); 2) a possibilidade de alteração do voto já proferido "até o momento da proclamação do resultado pelo presidente, salvo aquele já proferido por juiz afastado ou substituído" (artigo  941, §1º).   

regra no julgamento colegiado, por evidente, é que cada integrante profira seu voto, de forma fundamentada, de imediato. As exceções devem estar — e estão — expressas em lei, sendo as duas supra mencionadas: pedido de vista pelo integrante do órgão colegiado que não se sinta habilitado a proferir seu voto de imediato e a possibilidade de alteração do voto já proferido até o momento da proclamação do resultado pelo presidente.

De se observar que não existe qualquer previsão no Código de Processo Civil no sentido de se interromper um julgamento colegiado, com reinício "do zero". Iniciado o julgamento cada voto é apresentado, de forma fundamentada, devendo ser computado no resultado final.

As duas únicas previsões existentes são, ou no sentido de suspensão do julgamento por aquele integrante que não se sinta habilitado a apresentar seu voto de imediato, ou no sentido de alteração do voto já apresentado, até o momento da proclamação do resultado pelo presidente do órgão colegiado.

Assim, a meu ver, nenhum regimento interno de tribunal, mesmo do STF, poderia trazer previsão no sentido de se descartar simplesmente os votos já proferidos, com reinício de julgamento "do zero". Trata-se de inovação na forma do julgamento colegiado, que somente pode ser veiculada por lei, editada pelo Poder Legislativo competente.

A interpretação literal do dispositivo, portanto, encontra óbice intransponível na absoluta ausência de previsão legal de recomeço de julgamento colegiado "do zero". Trata-se da primeira ilegalidade encontrada em tal interpretação.

segunda ilegalidade decorrente de tal interpretação diz respeito ao seguinte: a figura do pedido de destaque, ao realizar um controle qualitativo na forma de julgamento, possui grandes semelhanças com a figura do pedido de vista, pois, em ambos os casos, integrante do colegiado atua de molde a proporcionar maior reflexão e profundidade na análise da questão posta a julgamento, com ganho qualitativo no julgado.

Ora, se assim o é, o Tribunal não possui ampla margem de discricionariedade na disciplina da figura do pedido de destaque, devendo haver uma espécie de simetria e paridade no regramento de ambas as figuras, prevalecendo, por evidente, a disciplina legal, trazida pelo Código de Processo Civil.

Logo, tenho por plenamente aplicável, à figura do pedido de destaque, a limitação trazida pelo artigo 940, caput, do CPC, no sentido de que somente pode pedir destaque aquele que "não se considerar habilitado a proferir imediatamente seu voto".

Ou seja, somente cabe o pedido de destaque antes da prolação do voto, pois, somente até tal momento pode-se falar na necessidade, pelo julgador integrante do órgão colegiado, de mais tempo para análise da questão a ser decidida, aprofundando-se o debate.

Proferido o voto, não há como se pedir destaque, pois, o julgador já exerceu seu dever de julgar. E, se o fez no ambiente virtual, por evidente o foi porque considerou ser desnecessária a realização do julgamento pelo formato presencial.

Após a prolação do voto individual, somente cabe a figura de sua alteração, a ser realizada até o momento da proclamação do resultado, com aplicação, à figura do destaque, da regra expressa do artigo 941, §1º, do Código de Processo Civil, a conferir: "O voto poderá ser alterado até o momento da proclamação do resultado pelo presidente, salvo aquele já proferido por juiz afastado ou substituído".

Aqui reside a terceira ilegalidade na qual incorre a interpretação literal à regra que fala em reinício de julgamento no caso de pedido de destaque: ofende-se o limite legal expresso à possibilidade de modificação de voto em julgamento colegiado, garantido apenas e tão somente ao integrante do órgão julgador que já votou.

Nesse diapasão, é importante ter em vista que a regra processual expressa no CPC tem por escopo impedir a manipulação de julgamentos, vedando ao integrante que substituir outro que já proferiu seu voto a apresentação de novo voto, sob a roupagem, indevida, da alteração de voto.

Isso porque não se pode simplesmente ignorar voto já proferido por julgador legal e legitimamente integrante do órgão colegiado, sendo que o voto proferido deve ser computado no julgamento final, plural.

Pelo mesmo motivo o Código de Processo Civil fixa prazo para a apresentação do voto vista (artigo 940), de modo a impedir que a procrastinação do julgamento leve a modificações na composição do órgão julgador colegiado, de modo e beneficiar uma das partes.

O nítido escopo de impedir manipulações já foi objeto de arguta observação por parte do Eminente Processualista Professor Humberto Theodoro Júnior, que assim pontificou:

"Pode parecer que o texto inovado seria desnecessário em face da obviedade do direito de vista só caber a quem tem o direito de voto na sessão. A experiência, todavia, demonstra que situações absurdas acontecem em alguns tribunais. Em certo Tribunal do Norte do País, o presidente do Colegiado, que não tinha direito de voto, diante de um julgamento já encerrado, mas não proclamado, pediu vista, para aguardar (sic) a posse de um novo Desembargador, que em seguida foi admitido no processo, após a investidura, e empatou os votos, permitindo assim que o Presidente usasse o voto de minerva e mudasse o teor do julgamento fixado na sessão anterior (!)" [1].

A constatação dessas três ilegalidades inviabiliza a interpretação literal do artigo 4º, §2º, da Resolução nº 642/2019, não havendo espaço para que se autorize o simples reinício do julgamento, "do zero", no ambiente presencial, simplesmente desconsiderando os votos já proferidos.

Porém, há interpretação lídima, plenamente defensável — aliás, desejável — para referida disposição normativa, que a compatibiliza com as regras do Código de Processo Civil, bem como com as regras contidas no próprio artigo 21-B, do RISTF, que é a interpretação lógico-sistemática no sentido de que a expressão "reiniciado" deve ser interpretada como "retomado".

Ou seja, após o pedido de destaque, o julgamento passará a ocorrer no ambiente presencial, porém, com manutenção dos votos já proferidos, passando-se a colher os votos faltantes.

pedido de destaque, portanto, não implica na desconsideração do julgamento iniciado no ambiente eletrônico, mas na suspensão do julgamento, que será retomado no ambiente físico.

Poderá haver requerimento de vista por parte de integrante que ainda não votou, bem como a alteração dos votos já proferidos, porém, respeitando-se a regra do artigo 941, §1º, do CPC, no sentido de vedar aos novos integrantes do colegiado a apresentação de novos votos, em substituição àqueles já apresentados por integrante "afastado ou substituído".

Cabe aplicar as conclusões ora obtidas ao caso do julgamento do Tema nº 1.102 do STF.

Trata-se de caso de enorme relevância para os aposentados e pensionistas, que ganhou contornos dramáticos em razão da apertada votação em seu mérito — 6 a 5 a favor dos segurados e dependentes —, bem como do pedido de destaque realizado pelo ministro Nunes Marques nos últimos minutos de duração do julgamento eletrônico realizado.

Tendo em vista as considerações, argumentos e conclusões alcançadas no tocante à correta interpretação a ser dada para a expressão "reiniciado" contida no artigo 4º, §2º, da Resolução nº 642/2019 do STF, a partir do pedido de destaque realizado pelo ministro Nunes Marques, o julgamento foi apenas suspenso e deverá ser "retomado" no ambiente presencial, considerando-se válidos os votos já proferidos.

Ademais, aplicam-se as regras contidas no CPC, notadamente no sentido de que: 1) somente o ministro que ainda não votou pode pedir destaque; 2) os votos já proferidos por ministros substituídos não podem ser alterados pelos substitutos.

Em razão de todo o exposto, algumas críticas — evidentemente construtivas — devem ser apontadas para o aperfeiçoamento do instituto do pedido de destaque.

primeira diz respeito ao momento em que se pediu o destaque.

Ora, além do pedido de destaque ter sido feito faltando poucos minutos para o encerramento do julgamento no ambiente virtual — algo absolutamente exótico —, foi feito quando todos os ministros já haviam votado.

Trata-se, pois, de flagrante pedido intempestivo, extemporâneo, realizado quando o julgamento já estava perfeito e acabado, faltando apenas e tão somente a proclamação do resultado pelo ministro presidente.

A hipótese, aliás, lamentavelmente se amolda como uma luva ao caso concreto reportado acima pelo ilustre professor Humberto Theodoro Júnior, tratando-se de cristalina tentativa de se manipular o resultado do julgamento, pois, o pedido de destaque foi feito não no intuito de se realizar o saudável controle de qualidade do julgamento, mas, quando o resultado final já era de conhecimento público, após proferidos todos os votos pelos integrantes do colegiado.

Assim levando-se em conta a regra do artigo 940, do CPC, tal pedido deve ser anulado, posto que realizado de forma intempestiva, prevalecendo o julgamento já realizado.

Segunda crítica diz respeito à própria legitimidade para a realização do pedido de destaque, pois, o ministro Nunes Marques já havia de há muito proferido seu voto, pelo que já havia sido esgotada a possibilidade de realização de tal pedido, o qual somente pode ser realizado até a prolação do voto, também conforme regra do artigo 940, do CPC.

Duas, portanto, são as razões jurídicas, cada qual suficiente por si só, a ensejar o decreto de nulidade do pedido de destaque realizado, devendo o julgamento ser finalizado, com a mera proclamação do resultado pelo Ministro presidente.

Mas, mesmo que ultrapassadas tais barreiras, há uma terceira crítica a ser feita, a título de hipótese.

Mesmo que prevaleça o pedido de destaque, levando-se o julgamento ao ambiente presencial, deve preponderar o entendimento no sentido de que não se recomeçará o julgamento "do zero", mas se retomará a partir do momento em que foi suspenso no ambiente virtual.

Isso significa que o julgamento do Tema nº 1.102 pelo STF será retomado no ambiente presencial já com todos os votos proferidos, em um placar de 6×5 em favor da tese favorável aos segurados e pensionistas.

Faltará, portanto, ao ministro presidente unicamente confirmar com cada ministro o voto já dado, em termos de ra (re) tificação, inclusive, atentando-se para o fato de que o ministro André Mendonça, por ter substituído o ministro Marco Aurélio que já votou, não poderá alterar o voto já proferido, com aplicação da regra do artigo 941, §1º, parte final, do CPC.

Somente assim restará assegurada a compatibilidade do mecanismo do julgamento eletrônico, com seu pedido de destaque, com as regras processuais, bem como com os limites e contornos impostos pela Constituição ao poder normativo dos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

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