Opinião

Bolsonaro atravessou o rubicão

Autor

  • Lucas Gabriel Pereira

    é advogado criminal e administrativo especialista em Direito Municipal (ética e efetivação de direitos fundamentais) pela FDRP/USP de Ribeirão Preto presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão) ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do estado de São Paulo (2019-2021).

22 de abril de 2022, 19h48

No findar do último dia 21, enquanto uns desfrutavam dum pequeno momento de prazer com suas famílias, o presidente Jair Messias Bolsonaro entrou em ação para conceder o benefício da "graça" via decreto extraordinário, beneficiando o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado à pena de oito anos e nove meses, em regime inicial fechado, e multa de R$ 192,5 mil, corrigida monetariamente, na Ação Penal nº 1.044, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), rel. min. Alexandre de Moraes.

Consta do artigo 1º do r. decreto: "Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, deputado federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado (…)". Dispenso a análise dos tipos criminais — da condenação —, embora importantes, paro pra analisar outro ponto. Prossigamos!

Ainda no crepúsculo da quinta-feira do r. dia, ao deparar-me com colegas advogados com suas análises eivadas de subjetivismo e à margem da jurisprudência do STF, recomendei atenção a ratio decidendi da decisão do STF, Adin nº 5874, de rel. min. Alexandre de Moraes. Seria Moraes a pedra no caminho de Bolsonaro, em alusão ao poeta itabirano?

Na r. Adin, a corte definiu as balizes em que é possível a concessão do "indulto" (benefício concedido pelo Chefe máximo do Executivo a uma coletividade de presos). Que o indulto afasta os efeitos primários da pena — no caso, prisão —, não os efeitos secundários, como pagamento de pena pecuniária e da suspensão dos direitos políticos. É importante dizer que indulto difere-se da "graça" assim como da "anistia", que é outra possibilidade de perdão de pena.

Se no indulto o benefício destina-se a uma coletividade definida via decreto, na “graça”, não; destina-se à pessoa-direcionada. A razão político-jurídica do benefício está ligada a questões de política criminal, a clemência do rei. Por todos, remetemos à memória-histórica do famigerado ato de clemência do rei Herodes ao mandar soltar o salteador Barrabás (Evangelho de Marcos, 15:7), culminando na execução político-jurídica do Messias, o Filho de Deus. Outro, vide bula papal ut negotium do Papa Alexandre 4º, século 13, permitindo mútuo perdão aos inquisidores quando excedessem no mister inquisitório.

Podemos dizer que no julgamento de Jesus (o, galileu) tivemos o primeiro conflito de jurisdição, de um lado, Pôncio Pilatos, governador romano; doutro lado, Herodes Antipas, segundo a narrativa do evangelista Lucas, capítulo 23. Quem teria competência para julgar? O Sinédrio (tribunal judaico) já dado o veredito — político: é culpado!

A respeito do tema, interessante informação nos trouxe os ilustres colegas, Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa e Gabriela Consolaro, em artigo publicado na Conjur, intitulado "O presidente pode conceder a delatores perdão da pena por meio de 'graça'?". Nele os autores comentam que "em consulta ao acervo do Ministério da Justiça e Segurança Pública por meio do serviço de acesso a informação, consta que não há registro de graça concedida na história recente do país". Portanto, o ato administrativo editado pelo presidente Jair Bolsonaro seria inédito. Isto é, se desconsiderarmos a decisão na Adin 5.874, do STF.

O ineditismo refere-se à "graça" — teologicamente chamada de "favor imerecido" pelos teólogos —, não do indulto, propriamente dito.

A questão que os ministros do Supremo terão de enfrentar é, a despeito da competência para indulto/graça ser do chefe do Executivo (CRFB/88, inciso XII, artigo 84): se o decreto passa ou não pelo crivo da juridicidade? Sê, positivo, haveria desvio de finalidade no ato — afoitado — e/ou afronta à decisão do Supremo valendo-se do benefício para repristinar o "poder moderador" da constituição imperial? Se o ato — prenhe de motivação política — preenche os requisitos do interesse público — ou dum certo público arrivista? Se a discricionariedade administrativa permite atos que não estejam vinculado à boa-administração pública?

Certo é que o indulto existe na tradição jurídica brasileira desde os tempos da Constituição do Império (1824) que permitia ao rei o manejo do "poder moderador"; também previsto na carta republicana (1891); todos os estatutos políticos-jurídicos de organização e controle do poder público do Brasil previram-na, inclusive nos tempos sombrios da ditadura.

Outra pergunta que suscitaria aos eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal seria: senhores Ministros, acaso a CRFB/88, em seu artigo 37, "cabeça", teria recepcionado o instituto da "graça" no ordenamento jurídico atual? Se sim, não haveria inconstitucionalidade à luz do princípio da impessoalidade, princípio-baliza do direito público com vista a inibir privilégios? Não seria inconstitucional — ou, não recepcionados — o artigo 734 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 — do Código de Processo Penal, considerando que o instituto da "prisão domiciliar" visa atingir pessoas pré-determinadas quando presentes os requisitos do artigo 117, da Lei de Execução Penal, lei. 7.217/84, sem prejuízo do disposto no artigo 318, do CPP, ambos à luz do princípio da dignidade humana (III, artigo 1ª, CRFB/88) que visa humanizar a tutela penal a luz do caso concreto?

Suscito essas inquietações inclusive por conta da decisão do exmo. ministro Alexandre de Morais na Petição 9.844 que garantiu prisão domiciliar ao parlamentar Roberto Jefferson. Idem, Medida Cautelar em Habeas Corpus, nº 152.707/SP, rel. min. Dias Toffoli.

Infelizmente o presidente Bolsonaro é um destemperado além de inquilino contumaz do Código Penal. A gestão da pandemia deu publicidade mundial à gestão genocida, inábil, do presidente. E, não obstante suas inaptidões aliadas à ausência de probidade, no caso da graça concedida há um aparente desvio de finalidade a ser averiguado/sindicalizado pelos ministros da corte do Supremo, já que, antes mesmo de iniciar a sessão de julgamento no último dia 20/4/2022, Bolsonaro verbalizou que não aceitaria eventual édito condenatório a seu cúmplice de atentados contra a frágil democracia brasileira.

Considerando o episódio histórico em que o imperador Júlio Cesar (49, A.C) cruza o (rio) rubicão em direção à Gália Cisalpina, contrariando norma do Senado romano que vedava o exército romano de atravessá-lo, exceto autorização prévia, valho-me da r. metáfora pra ilustrar o caso de Bolsonaro x STF: atravessou o rubicão, e agora? Habemus mais uma crise política entre as instituições. Na melhor das hipóteses, o presidente retroage tal como fez em outras ocasiões, jogando o caso pra plateia sinalizando que "ele tentou, fez o possível".

O caso é de ativismo, o que não é nada bom para democracia ante a ausência de juízo ético que o balize.

Por fim, considerando o princípio da boa-administração pública à luz da sustentabilidade — este, v. escólio de Juarez Freitas in Sustentabilidade: direito ao futuro, 2019, p. 43 — como eixos metodológicos do Direito Público, não visualizo a presença de eticidade tampouco da moralidade pública; que não há de se falar em interesse público (primário) quando o ato administrativo visa conceder benesses irrepúblicas a agentes ímprobos, imorais. Na derradeira das hipóteses, se o ato visava restaurar os direitos políticos do condenado para habitá-lo ao sufrágio eleitoral vindouro, adianto que não surtirá efeito, já que a jurisprudência pátria é forte no sentido de negar suspensão dos efeitos secundários da pena a indultados.

O professor Juarez Freitas elenca dez pressupostos internos que devem integrar o ato administrativo no princípio da sustentabilidade. Como garantir uma jurisdição sustentável se o chefe do Executivo atenta contra as decisões da Suprema Corte. É nessas horas de crise que precisamos pensar numa forma de controle democrático da pauta da Câmara dos Deputados, a fim de reformar as competências da presidência com o fito de garantir às minorias parlamentares a possibilidade de inserir item-de-pauta como o processo de impeachment (cassação de mandato) do Chefe do Poder Executivo.

A nosso juízo, considerando a "graça" como indulto individualizado, tem-se por não recepcionada pela CRFB/88, ante violação frontal ao princípio da impessoalidade consoante argumentação alhures. Não há de se falar em afronta a separação de poderes, tampouco de invocar pseudo caráter humanitário da "graça" já que, para tanto, temos o artigo 318 do Código de Processo Penal a disposição do juízo in concrecto, evitando assim, violação ao princípio da impessoalidade.

Autores

  • é advogado (criminal e administrativo), especialista em Direito Municipal — ética e efetivação de direitos fundamentais — pela FDRP/USP-Ribeirão, presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto), ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal de Ribeirão Preto/SP (2019) e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do Estado de São Paulo (2019-2021).

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