Licitacões e Contratos

Licitações internacionais na Lei nº 14.133/2021: 10 tópicos

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

22 de abril de 2022, 10h37

Como ficou o cenário das licitações internacionais após a nova Lei de Licitações?

Mesmo após um ano da edição do novo diploma legal e ainda pendentes de edição determinados regulamentos necessários às licitações internacionais, é possível responder a essa pergunta com tópicos simples e objetivos, como adiante apresentados.

1) Definição e Publicidade

Spacca
Ao contrário da Lei nº 8.666/93, que fazia menções esparsas pelo seu texto sobre as licitações internacionais, a Lei nº 14.133/2021, em seu artigo 6º, trouxe uma esperada definição:

"Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
(…)
XXXV – licitação internacional: licitação processada em território nacional na qual é admitida a participação de licitantes estrangeiros, com a possibilidade de cotação de preços em moeda estrangeira, ou licitação na qual o objeto contratual pode ou deve ser executado no todo ou em parte em território estrangeiro;".

É louvável que essa lacuna legislativa tenha sido preenchida, mas questionável que o principal elemento que caracteriza a licitação internacional, que é a publicidade no exterior, tão cobrada há décadas pelos tribunais de contas e outros entes de controle, tenha sido esquecida.

Entretanto, em interpretação sistêmica da legislação deve ser considerado o seguinte: é impositivo respeitar o princípio da publicidade, do caput do artigo 37 da Constituição Federal, de modo a se ter a igualdade entre concorrentes, que é expressa no inciso XXI, do mesmo artigo.

Isso significa que o aviso da licitação internacional é publicado, normalmente, no Brasil, além de ter uma divulgação adicional no exterior, que tem sido aceita em ferramentas como o www.dgmarket.com, maior portal de licitações do mundo, sem despesa para inclusão de avisos, com editais de mais de 170 países e dezenas de organismos internacionais, além de envio para listas de contatos dos Setores de Promoção Comercial (Secoms), do Brasil nos países, ou seja, listas de contatos comerciais das embaixadas e consulados brasileiros pelo mundo, para que as oportunidades sejam localmente replicadas.

2) Edital diferenciado
Lamentavelmente, a nova lei não tratou das particularidades de um edital de licitação internacional, que envolve diferenças desde a fase de planejamento, na busca por mercado no exterior, fabricantes, marcas e modelos de itens que podem ser escassos ou não fabricados no Brasil, além do que, a licitação internacional precisa ter um edital inteiramente preparado para competitividade com presença de estrangeiros, inclusive quanto a:

 credenciamento de representantes;
 legalização de documentos estrangeiros;
 habilitação e propostas de estrangeiros, inclusive, tratando de moedas e equalização;
 temas atinentes a comércio exterior, como Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) e Termo de Comércio Internacional (Incoterm), entre outros.

Assim, não se trata de um edital que apenas permite licitantes estrangeiros, mas visa buscar estrangeiros, em razão de limitação do mercado brasileiro, portanto, edital com várias regras próprias para a participação de estrangeiros, ao contrário dos modelos padronizados de editais das licitações nacionais. Como isso não foi bem detalhado na nova lei, a solução é interpretação sistêmica das normas, para "customizar" o edital.

3) Regras diferenciadas para recursos do exterior
Em disciplina similar à da Lei nº 8.666/93, a Lei nº 14.133/2021, embora em posição diferente no texto, prevê em seu artigo 1º, §§3º e 4º, que na hipótese de aplicação de recursos de organismos de cooperação ou de financiamento do qual o Brasil faça parte se aplica regramento específico, envolvendo aprovação que depende em certos casos de aprovação de acordo pelo Congresso Nacional e ratificação pelo presidente da República, além de aprovação de empréstimo externo pelo Senado Federal.

Nisso a matéria é por demais conhecida e segue as mesmas linhas que se tinha para projetos do Banco Interamericano Desenvolvimento (BID), do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e tantos outros organismos, nos quais suas diretrizes ("guidelines") são observadas, devendo ser respeitados princípios constitucionais brasileiros.

4) Representação legal
A figura do representante legal de estrangeiro no Brasil, tratada no artigo 32, §4º, da Lei nº 8.666/93 (com responsabilidade administrativa e judicial), nunca precisou ser complicada, pois sempre foi permitido a um simples indivíduo residente e domiciliado em território nacional assumir essa posição, por procuração (respaldada em cadeia de poderes), sem maior burocracia.

A Lei nº 14.133/2021 restou silente sobre essa questão de representação legal, mas isso, por diversos motivos, é contrário até mesmo aos interesses das empresas estrangeiras, sem esquecer que causa problemas práticos para a Administração Pública.

Deve-se lembrar que se o estrangeiro constituir simples procurador no Brasil ele terá condições não apenas de interagir localmente com o ente público licitante, para todos os fins administrativos, como também outros entes de regulação e aduana e ainda terá viabilidade de eventual representação perante tribunal de contas ou até processo judicial em defesa de seus interesses na licitação. De outro lado, o agente público não ficará sem vínculo local para intimações das mais simples, para atendimento de alguma exigência, intimação para assinatura de contrato e outras demandas rotineiras, além do que, em situações outras, eventual judicialização com citação da estrangeira por esse representante, para que não se tenha a necessidade de tormentosa via de carta rogatória para outro país.

Assim, continua recomendada, prática e extremamente útil para todas as partes a figura do representante legal no Brasil, para fins administrativos e judiciais.

5) Autorização de funcionamento no Brasil
Ao contrário do que muitos alegavam, citando equivocadamente os artigos 1.123 a 1.125 e 1.134 a 1.141 do Código Civil, as licitantes estrangeiras, para participação em licitações internacionais, na grande maioria dos casos, jamais precisaram de autorização de funcionamento no Brasil.

No artigo 28, inciso V, da Lei nº 8.666/93, a exigência de decreto de autorização de funcionamento no País era requisito apenas quando a atividade assim o exigisse, o que ocorria e ainda ocorre em situações de permanente atuação das empresas em determinados casos que se relacionam a interesses estratégicos e regulados.

É preciso lembrar que desde a Lei nº 8.666/93 empresas de armamentos, dispositivos médicos, veículos, aeronaves, equipamentos para segurança pública e até defesa nacional, equipamentos para pesquisa e empresas de engenharia e construção não precisavam de decreto algum, sendo provas disso as tantas compras militares, em saúde pública, inclusive durante a pandemia de Covid-19, além de outras de pesquisa, por exemplo, e até as de construções e infraestrutura para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, que não dependeram de decreto de autorização de funcionamento no Brasil para as licitações.

O fato é que se a empresa irá desempenhar localmente certa atividade, como a de engenharia, por exemplo, basta a regularização com registro provisório no Crea, da empresa e seus profissionais estrangeiros. Mas isso é outra situação jurídica.

A ideia do decreto de funcionamento no Brasil sempre teve a lógica de permanência em atividade local, ou seja, somente para as empresas que desejassem assim atuar no país e, evidentemente, com a autorização quando a sua atividade assim o exigisse, o que ocorre em restritos casos.

Por isso não foi novidade que a Lei nº 14.133/2021 não tenha vindo com menção a decreto de autorização de funcionamento no Brasil, porque essa barreira já nem era aplicada na enorme maioria das licitações internacionais.

Agora, o que existe é apenas a menção genérica, para brasileiros ou estrangeiros, no artigo 66 da nova lei, de autorização quando o exercício de alguma atividade específica a ser contratada assim o exigir. Mas isso não é relacionado ao regramento de funcionamento no Brasil, tratado no Código Civil.

6) Legalização de documentos estrangeiros
Em se tratando de documentos estrangeiros, o artigo 32, §4º, da Lei nº 8.666/93 sempre teve a notória regra de consularização, como prova do país de origem, além da tradução juramentada, para se ter a versão com fé pública do documento no Português.

Depois adveio o Decreto nº 8.666/2016, promulgando a Convenção da Apostila de Haia sobre legalização de documentos estrangeiros, o que passou a abrir a via do apostilamento perante notários locais dos países membros, ao invés da consularização.

Por fim, o Decreto nº 10.024/2019, regulamentando o pregão eletrônico no âmbito federal, em seu artigo 41, caput e parágrafo único, passou a permitir tradução inicialmente livre e, somente em caso de vencedor o licitante, para fins de assinatura de ata de registro de preços ou de contrato, então, apresentação dos documentos com consularização ou apostilamento e tradução juramentada.

A Lei nº 14.133/2021, no entanto, não disciplinou a matéria da mesma forma, limitando-se em seu artigo 67, §4º, no tocante a documentos relativos a qualificação técnico-profissional e técnico-operacional, a mencionar aceitação de "atestados ou outros documentos hábeis emitidos por entidades estrangeiras quando acompanhados de tradução para o português, salvo se comprovada a inidoneidade da entidade emissora", ou seja, nem sequer mencionando o detalhe de haver tradução juramentada, nem a legalização de origem dos documentos.

Mas o fato é que pelo artigo 13 da Constituição Federal o Português é o idioma oficial do Brasil, o artigo 224 do Código Civil estabelece que "os documentos redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no país", o artigo 27, § 1º, da Lei nº 14.195/2021 estabelece que nenhuma tradução terá fé pública se não for realizada por tradutor público (aquele registrado perante Junta Comercial), além do que, o Manual do Serviço Consular e Jurídico do Ministério das Relações Exteriores continua tratando da consularização e o Decreto nº 8.666/2016 continua tratando do apostilamento, esses dois requisitos de prova de origem do documento estrangeiro.

Enfim, por interpretação sistemática da legislação, continuarão sendo exigidas formalidades de legalização, mas há uma tendência de que se adote nos editais a prática já consolidada depois do Decreto nº 10.024/2019, de que se apresente documentos com tradições inicialmente simples na licitação e, somente do vencedor, para fins de assinatura de ata de registro de preços e contrato se exija versões com consularização ou apostilamento e tradução juramentada.

Essa tendência perece estar em linha com trabalhos para facilitar o processo de acessão do Brasil ao Acordo de Compras Públicas  GPA, da OMC, mas a matéria ainda será enfrentada pelos tribunais, caso a caso, até as posições de consolidarem.

7) Equivalência de documentos estrangeiros
Nos termos do artigo 32, §4º, da Lei nº 8.666/93, a disciplina para empresas estrangeiras sempre foi de apresentação de documentos equivalentes, na medida do possível, até porque vários documentos como os trabalhistas, alguns tributários e outros específicos não possuem equivalentes em vários países, sendo que a Lei nº 14.133/2021 estabeleceu em seu artigo 70, parágrafo único, o seguinte: "As empresas estrangeiras que não funcionem no País deverão apresentar documentos equivalentes, na forma de regulamento emitido pelo Poder Executivo federal".

Até o momento esse regulamento não foi editado, mas a tendência é de que documentos de mesma natureza, como contrato social, ata de eleição de diretores, balanço contábil e outros sejam os equivalentes, enquanto os de direito regulatório específico que não podem ser aceitos reciprocamente, como as de aprovações de produtos médicos e outros, tenham regramento sobre como isso será resolvido, restando, ainda, o caso de declaração pelo licitante estrangeiro, sob as penas da lei, de quais documentos, outros, efetivamente, não possuem equivalentes em seu país. Aliás, os editais já possuem em anexo a declaração de inexistência de equivalentes.

8) Consórcios
A grande mudança, inicial, em termos de consórcio foi que, enquanto a Lei nº 8.666/93, em seu artigo 33, ª 1º, estabelecia que, entre empresas brasileiras e estrangeiras, a liderança do consórcio, obrigatoriamente, seria da empresa brasileira, enquanto a Lei nº 14.133/2021 não mais trouxe essa restrição ou limitação, de modo que, agora, uma empresa estrangeira pode ser líder de consórcio.

A segunda mudança significativa foi que, ao contrário do que constava do artigo 33, inciso III, da Lei nº 8.666/93, exigindo que no somatório de valores da qualificação econômico-financeira houvesse respeito às proporções de cada consorciada em relação à sua participação, no artigo 15, inciso III, da Lei nº 14.133/2021 isso não mais é exigido, ou seja, as proporções podem ser desiguais.

A terceira mudança de impacto é verificada quando se tinha no artigo 33 da Lei nº 8.666/93 a permissão para consórcio, no edital, sendo que, agora, como padrão, pelo artigo 15 da Lei nº 14.133/2021, apenas se houver justificativa é que estará proibida a participação de consórcio, ou seja, há uma inversão para o consórcio, como padrão, ser permitido, o que ampliará o acesso de estrangeiros nas licitações brasileiras.

A quarta mudança, por fim, é a previsão, inédita, do artigo 15, §5º, da Lei nº 14.133/2021, de que se possa substituir consorciada, isso valendo até para momento contratual, desde que a empresa a substituir a consorciada anterior comprove atender às mesmas exigências da outra, possuindo, "no mínimo, os mesmos quantitativos para efeito de habilitação técnica e os mesmos valores para efeito de qualificação econômico-financeira apresentados pela empresa substituída para fins de habilitação do consórcio no processo licitatório que originou o contrato". Isso está sem restrições, de modo que troca de consorciadas pode ocorrer entre empresas brasileiras e estrangeiras, o que é uma chance significativa para parcerias.

9) Atestação técnica
Nada constava na Lei nº 8.666/93 sobre outros documentos que pudessem substituir atestados de capacidade técnica, mas a Lei nº 14.133/2021, em seu artigo 67, §4º, já citado, quando trata de documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional, abre a possibilidade de que sejam aceitos atestados "ou outros documentos hábeis emitidos por entidades estrangeiras quando acompanhados de tradução para o português, salvo se comprovada a inidoneidade da entidade emissora". Na prática, isso já vinha ocorrendo, em razão de limitações de atestados em determinados países e em áreas de produtos controlados, como os militares, sendo que a lei vem ajustar algo da prática para a norma, em visível ampliação da disputa com margem para segurança jurídica. O que se espera, entretanto, é que isso não seja porta aberta para exagero de flexibilidade, que prejudique a confiabilidade e a pertinência das informações da experiência anterior da licitante.

10) Equalização de propostas
O artigo 42, §4º, da Lei nº 8.666/93 estabelecia que "para fins de julgamento da licitação, as propostas apresentadas por licitantes estrangeiros serão acrescidas dos gravames conseqüentes dos mesmos tributos que oneram exclusivamente os licitantes brasileiros quanto à operação final de venda", ou seja, IPI, PIS, COFINS e ICMS.

Já o artigo 52, §4º, da Lei nº 14.133/2021 estabelece que "os gravames incidentes sobre os preços constarão do edital e serão definidos a partir de estimativas ou médias dos tributos".

Na prática, como essa regra visa isonomia de condições entre licitantes brasileiros e estrangeiros, até pela pesada carga tributária brasileira, a aparente simulação de impostos sobre a proposta da empresa estrangeira deve ocorrer nos editais com algo similar ao que se aplica há anos nas licitações internacionais, que é a equalização de impostos considerando os mesmos impostos: IPI, PIS, Cofins e ICMS.

Conclusões
Feitas essas considerações por tópicos, cabe ainda lembrar que há regra no artigo 9º, inciso II, da Lei nº 14.133/2021 que proíbe discriminação entre licitantes brasileiras e estrangeiras e, ainda, um conjunto normativo exclusivo das licitações de âmbito internacional, no artigo 52 da nova lei, que além de reiterar, com linguagem simples e algumas pequenas diferenças, o que constava do artigo 42 da lei anterior, termina esse regramento enfatizando que o edital não poderá prever condições de habilitação, classificação e julgamento que constituam barreiras de acesso ao licitante estrangeiro, admitida a previsão de margem de preferência para bens produzidos no País e serviços nacionais que atendam às normas técnicas brasileiras, na forma definida no artigo 26 da mesma lei.

Assim está o cenário das licitações internacionais com a nova lei, sendo ainda cabível lembrar que, além de regulamentação pendente para certos temas, será necessário que os portais brasileiros passem a identificar de forma clara onde estão os editais de licitações internacionais, o que ainda é uma limitação para os estrangeiros.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

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