Controvérsias Jurídicas

A força e a norma jurídica

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

21 de abril de 2022, 8h01

Mario Ferreira dos Santos (1907-1968) foi, certamente, um dos maiores intelectuais do século 20, ocupando assento cativo no panteão dos filósofos brasileiros. Em que pese o conhecimento de sua obra estar restrito a um grupo pequeno de estudiosos, seu legado merece o devido reconhecimento por expressar a gênese do pensamento filosófico conservador brasileiro. Ensaísta, escritor, professor e fundador de duas editoras, Ferreira dos Santos é autor de obras clássicas como "Filosofia da Crise" [1], "Filosofia da Afirmação e da Negação" [2], "Filosofia e Cosmovisão" [3] e "Filosofia Concreta" [4], esta última dando nome à sua própria escola de pensamento.

Em "Invasão Vertical dos Bárbaros", demonstra o autor que a dominação de um povo sobre o outro não se dá exclusivamente com a invasão territorial, mas sim por meio da transformação cultural do dominado, que passa a abandonar, paulatinamente, os usos, costumes e valores que edificaram aquela civilização por outros, diretamente relacionados à sociedade dominadora. A dominação pela cultura, denominada pelo autor "invasão vertical", mostrou-se, ao longo da história, mais perene do que as "invasões horizontais", realizadas por força militar e domínio territorial.

O mais fiel exemplo de dominação vertical remete ao processo de desconstrução do império romano pelos povos "bárbaros" (godos, visigodos, ostrogodos, normandos, dentre outros), os quais em função do convívio compartilhado da terra na Inglaterra, Gália e Germânia, passaram a impor o seu modus vivendi ao povo romano, solapando o ethos social edificado por séculos, fundamentalmente formado pelas normas jurídicas. Contemporaneamente, o método vertical de conquista de uma sociedade encontrou guarida no marxismo cultural de Antônio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, e no relativismo histórico da Escola de Frankfurt, base teórica para o sócio-construtivismo francês da primeira metade do século passado.

Em "A superioridade da força sobre o Direito", texto integrante da obra citada, Ferreira dos Santos desenvolveu sua concepção acerca da real finalidade das normas jurídicas e sua subversão na sociedade contemporânea, na qual o arcabouço legal deixou de ser um modo de garantia de direitos naturais do cidadão para retratar, exclusivamente, os interesses daqueles que detém o poder político.

"Uma das mais acentuadas características do barbarismo vertical consiste em apresentar a força como superior ao Direito. O Direito não é mais o que é devido à natureza de um ser estática, dinâmica e cinematicamente compreendido, e que, portanto, funda-se num princípio de Justiça, que consiste em dar a cada um o que lhe é devido, e em não lesar esse bem. O Direito não é o reconhecimento natural dessa verdade, mas apenas o que provém do arbítrio que possui o kratos (o poder) político. O Direito Natural é postergado, é discutido, e é até negado para supervalorizar-se a norma emanada do arbítrio do legislador, a ordem jurídica emanada do que possui o kratos, o detentor do poder político, a autoridade constituída (…). Mas também a lei escrita tem um valor relativo. Vale apenas enquanto o kratos social a garante. O arbítrio do poderoso é supremo, e a força organizada poderá derrui-lo. Basta que se organize e domine o kratos para ter o 'direito' de derruir, de abolir, e até de sancionar novas leis, contrárias às que vigoravam então. A lei tem um valor secundário. É apenas a vontade do legislador que ela expressa, e não é mais uma manifestação do Direito Natural nem da Justiça. O direito afasta-se do campo da Ética para integrar-se apenas ao campo da Política. A força é exaltada, então, como a criatura do Direito. 'O direito da força supera a força do direito' é a mais acarinhadas das sentenças dos cesariocratas. 'Eu sou a lei', proclama o déspota. 'O Estado sou Eu', exclama o César, ou então 'A classe é a lei'. E os interesses particulares predominam sobre os gerais, a vontade popular é anulada, e subordina-se à da krateria. O barbarismo, então, domina soberanamente. A especulação culta, no direito, é ridicularizada. Que valem razões ante o império da força! A razão é enxovalhada, amesquinhada, infamada. A brutalidade organizada domina" [5].

Mario Ferreira dos Santos enxerga a prevalência do direito positivo sobre o direito natural como mecanismo de transformação da sociedade. Nesse sentido, os critérios de diferenciação entre um e outro, como bem destacado por Norberto Bobbio, tornam-se claros no texto do autor, na medida em que contempla a antítese universalidade-particularidade, contrapondo o direito natural, válido em todos os lugares, ao positivo, que somente é aplicado em determinados lugares (visão aristotélica).

"Da justiça civil uma parte é de origem natural, outra baseia-se na lei. Natural é a justiça que mantém por toda parte o mesmo efeito, e não depende do fato de parecer boa ou má a alguém; ao contrário, baseada na lei é a justiça cujas origens não importam nada, só importa como é, depois de ter sido estabelecida" [6].

Baseia-se, também, na antítese imutabilidade-mutabilidade, na qual o direito natural é imutável no tempo, enquanto o positivo, não.

"Portanto, enquanto o direito natural é imutável no tempo, o positivo muda (assim como no espaço) também no tempo, na medida em que uma norma pode ser anulada ou modificada, seja por costuma (costume ab-rogativo), seja por efeito de outra lei" [7].

Outro fator preponderante para a prevalência do direito positivo e sua subversão como meio de transformação da cultura relaciona-se à fonte do direito, que gira em torno da contraposição firmada por Grócio na antítese natureza-potestas ou populus.

"Direito natural é um ditame da reta razão, voltado para mostrar que um ato é moralmente torpe ou necessário, segundo esteja ou não em conformidade com a própria natureza racional do homem, e para fazer ver que tal ato é, em consequência, proibido ou ordenado por Deus como autor da natureza" [8].

A utilização do Direito como vetor de transformação da sociedade também pode ser explicada pela dinâmica direito — força — validade, desenvolvida por Alf Ross. A priori, o autor desmitifica a falsa percepção de que o ordenamento jurídico de um país é um conjunto de regras relacionado ao uso da força física. Segundo tal ponto de vista, a relação entre o direito e a força é definida de modo em que as regras estabelecidas pela lei são respaldadas pela força. Prefere o autor utilizar-se da premissa de que a relação entre direito e força se dá no âmbito de sua aplicação (quando e como a força pode ser empregada), e não do respaldo (a lei se aplica pelo uso da força).

Ross entende que a validade das normas jurídicas repousa na identificação axiológica da sociedade com a lei. Quando o modo de vida de uma sociedade, seus valores, crenças, costumes, são subvertidos pela lei, podem até ser acatados pelo corpo social, mas não como válidos. Deste modo, a lei torna-se tirânica, imposta única e exclusivamente pela vontade de um déspota ou de um grupo dominante, o que Mario Ferreira do Santos chamou de detentores do kratos (poder político).

"Aqueles que são submetidos a um regime efetivo de força nem sempre o experimentam como válido. Nos casos em que o regime existente não recebe aprovação ideológica na consciência jurídica formal dos governados, sendo sim unicamente obedecido por temor, estes não o experimentam como um ordenamento jurídico, mas sim como um ditado de força ou violência. O governante não é, então, autoridade ou poder legítimo, e sim um perpetrador da violência, um tirano, um ditador. Isto se aplica, por exemplo, à população de um país ocupado e à sua atitude ante o regime de força que é sustentado unicamente pelo poderio militar, ou às minorias hostis à maioria governante" [9].

Conclui-se, portanto, que Mario Ferreira dos Santos enxerga a subversão da ordem jurídica exatamente no sentido do direito como meio de transformação da sociedade, principalmente no que tange aos interesses de um grupo dominante, seja ele econômico ou político. Mais fácil do que se impor pelas armas, a nova forma de dominação se dá pelo processo legislativo do direito positivo, suscetível a adaptações de toda ordem pelo grupo político. O conjunto de valores adquiridos por um povo poderia ser facilmente revertido em seu sentido contrário, caso um conjunto de normas assim o estabeleça.

A norma seria aplicável, uma vez que o Estado detém o uso legítimo da força para impor suas decisões. Contudo, não seria legítima, tendo em vista que encontra seu critério de validade na identificação do povo com a norma. Portanto, o autor chama a atenção para a falta de legitimidade do arcabouço legal, tendo em vista que a parcela da população detentora do poder político não espelha nos mandamentos legais as aspirações populares, tornando-se o Direito, ao invés do resultado de sua representação indireta, instrumento de uso da força contra o povo.


[1] SANTOS, Mario Ferreira dos. Filosofia da Crise. Vol. 1, Ed. E Realizações, 2018.

[2] SANTOS, Mario Ferreira dos. Filosofia da afirmação e da negação. Vol. 2, Ed. E Realizações, 2018.

[3] SANTOS, Mario Ferreira dos. Filosofia e Cosmovisão. Vol.3, ed. E Realizações, 2018.

[4] SANTOS, Mario Ferreira dos. Filosofia concreta 1ª edição, ed. E Realizações, 2020.

[5] SANTOS, Mario Ferreira dos. Invasão vertical dos bárbaros. 1ª edição, ed. E Realizações, 2012.

[6] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Ed. Edipro, 2022, p. 23.

[7] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Ed. Edipro, 2022, p. 25.

[8] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Ed. Edipro, 2022, p. 28.

[9] ROSS, Alf. Direito e justiça. 3ª edição. Ed. Edipro, 2021, p. 83/84.

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