Opinião

Inadmissibilidade de cláusula de inelegibilidade em ANPP

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20 de abril de 2022, 12h17

O inciso V do artigo 28-A do Código de Processo Penal permite que o Ministério Público indique condição proporcional e compatível com a infração penal imputada a ser cumprida pelo investigado em acordo de não persecução penal (ANPP).

Há quem entende ser possível o Ministério Público indicar a inelegibilidade do imputado como condição para a celebração de acordo de não persecução penal, com fundamento no inciso V do artigo 28-A do Código de Processo Penal (Silmar Fernandes e Fernanda Rocha Martins [1]; Antônio Dal Pozzo [2]; Raul Lustosa Araújo [3]), assim como há, também, quem advogue contra essa possibilidade (Volgane Carvalho [4];Alessi Brandão [5]).

As inelegibilidades estão previstas no artigo 15, §§ 4º a 7º, da Constituição e na Lei Complementar 64/90.

Na esfera do Direito Internacional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto nº 678/92), artigo 23, 2, veda qualquer outra forma de restrição aos direitos políticos, como reflexo de conduta delitiva, que não seja proveniente de condenação, por juiz competente, em processo penal.

Convém anotar que a condenação criminal transitada em julgado acarreta a suspensão dos direitos políticos, enquanto durarem os seus efeitos, com fundamento no inciso III do artigo 15 da Constituição Federal, o que leva à ausência da condição de elegibilidade do pleno exercício dos direitos políticos, prevista no inciso II do §3º do artigo 14 da Constituição Federal, afastando a elegibilidade do brasileiro que se encontre com os direitos políticos suspensos em decorrência de condenação criminal transitada em julgado. Nesse sentido a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário nº 601.182-MG, relator ministro Marco Aurélio, redator do acórdão ministro Alexandre de Moraes, julgado em 8.5.2019, publicado em 2.10.2019, cuja ementa é do seguinte teor:

"EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL. SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS. AUTOAPLICAÇÃO. CONSEQUÊNCIA IMEDIATA DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA TRANSITADA EM JULGADO. NATUREZA DA PENA IMPOSTA QUE NÃO INTERFERE NA APLICAÇÃO DA SUSPENSÃO. OPÇÃO DO LEGISLADOR CONSTITUINTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. A regra de suspensão dos direitos políticos prevista no artigo 15, III, é autoaplicável, pois trata-se de consequência imediata da sentença penal condenatória transitada em julgado.
2. A autoaplicação independe da natureza da pena imposta.
3. A opção do legislador constituinte foi no sentido de que os condenados criminalmente, com trânsito em julgado, enquanto durar os efeitos da sentença condenatória, não exerçam os seus direitos políticos.
4. No caso concreto, recurso extraordinário  conhecido e provido".
"A inabilitação para exercer função pública, imposta com base no artigo 53 (sic), parágrafo único da Constituição, incapacita também para o desempenho de mandato eletivo". (Resolução n° 20.297 (12.08.98)  Registro de Candidato à Presidência e Vice-Presidência n° 99  Classe 29ª  Distrito Federal (Brasília), relator: ministro Eduardo Ribeiro).

Condenações criminais que afastam a elegibilidade do cidadão são todas aquelas transitadas em julgado, que acarretam, automaticamente, como efeito da condenação, a suspensão dos direitos políticos, enquanto durarem os efeitos da condenação (CF, artigo 15, III), levando à ausência da condição de elegibilidade do pleno exercício dos direitos políticos (CF, artigo 14, §3º II); e aquelas elencadas na alínea "e" do inciso I do artigo 1º da LC 64/90, para "os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena".

É consabido que normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente  exceptiones sunt strictissimae interpretati. Essa regra de interpretação restritiva das normas que restringem a elegibilidade do cidadão está prevista no artigo 162 do PLP 112/2021, cujo objeto é instituir o novo código eleitoral, aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, nos seguintes termos: "O direito à elegibilidade somente poderá ser restringido pela Constituição Federal e por lei complementar, vedada a adoção de interpretação ampliativa das hipóteses de restrição".

Conforme o Enunciado 59, aprovado na I Jornada de Direito Eleitoral, realizada pela Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em parceria com a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), "O acordo de não persecução penal não configura título condenatório e, portanto, não gera a inelegibilidade do artigo 1º, I, alínea 'e'". [da LC/64/90] (Portaria TSE nº 348/2021).

Destaca-se, no que tange à interpretação restritiva de norma que restringe direitos, o que consta na decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE 466.343-SP, relator ministro CEZAR PELUSO, Julgado em 3.12.2008, publicado em 5.6.2009, aplicável, também, mutatis mutandis, na interpretação das inelegibilidades:

"[…]
À luz dos fundamentos e da função vital dos direitos e garantias individuais, bem como do dogma liberal universal da exclusiva autoridade da lei ('ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei'), não surpreende que este e aqueles sejam mais particular e firmemente afirmados, quando, perante o dado óbvio de que toda lei é sempre de algum modo restritiva, a restrição nomológica tenda a ampliar-se a ponto de comprometer os princípios e arruinar a liberdade.
Doutro turno, se, por razões particulares de conveniência ou de utilidade social, o ordenamento abre exceção ao tratamento genérico de uma ordem de fatos, para disciplina autônoma de certa categoria, está claro, à míngua de razão normativa que o legitime, que se não pode estender, por interpretação, o regime especial a outras hipóteses. Ao lado do regime geral é que se acham as forças sociais preponderantes na reconstituição semiológica e na aplicação de toda regra de direito positivo, sobretudo quando hospede garantias fundamentais ou valores individuais supremos.
Mais de uma razão jurídica está, assim, a predicar que a cláusula constitucional de que se trata é de todo alérgica a interpretação extensiva, capaz de atingir situações que, não se tratasse de norma excepcional restritiva da liberdade pessoal, até poderiam caber-lhe no âmbito de incidência, quando concorressem fundamentos para expansão de seu sentido emergente. Escusava que o enfatizasse a doutrina:
"Quando se dá o contrário, isto é, quando a letra de um artigo de repositório parece adaptar-se a uma hipótese determinada, porém se verifica estar esta em desacordo com o espírito do referido preceito legal, não se coadunar com o fim, nem com os motivos do mesmo, presume-se tratar-se de um fato da esfera do Direito Excepcional, interpretável de modo estrito.
Do que foi dito, já se apura que o principal critério para determinar se um dispositivo legal é excepcional, é sua inextensibilidade. Quando tratarmos da interpretação extensiva e da analogia desenvolveremos esse ponto, e concluiremos que a "ratio legis" de caráter geral pode estender-se aos casos omissos, ao passo que a "ratio legis" de caráter excepcional, há de ficar confinada aos casos que especifica.
É o que constava, aliás, do art. 6º da Introdução ao Código Civil, abrogado menos por superação científica que por constituir objeto mais curial à dogmática. Exceptiones sunt strictissimae interpretationis. E é bom não esquecer que a "garantia dos direitos individuais deve ser interpretada de maneira a ampliar, em benefício da liberdade, os preceitos de entendimento duvidoso', nem que, desde GAIO, se reconhece que em todos os assuntos e circunstâncias a liberdade é que merece maior favor.
[…]
É por isso que, como acentua VIEIRA DE ANDRADE, o princípio in dubio pro libertate, cuja fórmula resume tópico ou elemento importante 'para a tarefa de interpretação das normas constitucionais', constitui emanação do princípio mesmo da dignidade da pessoa humana e, como tal, 'deve considerar-se um princípio geral no domínio dos direitos fundamentais', no sentido 'de que as restrições aos direitos devem ser expressas ou, pelo menos, poder ser claramente inferidas dos instrumentos normativos aplicáveis'.
Nem vai tão longe a época em que se preconizava interpretação dita literal da Constituição, quando a resposta à questão suscitada tendesse a cercear o exercício de direitos fundamentais ou a embaraçar garantias da liberdade individual, idéia de cuja defesa, no Brasil, ninguém levou a palma a RUI BARBOSA, para quem o Direito se subentende sempre a favor da liberdade, a qual não suporta artifício de condições restritivas por inferência.
Tampouco a norma constitucional suporta recurso à analogia, que, seja de atribuição, seja de proporcionalidade, se reduz sempre a indução parcial baseada numa presunção, a de que duas coisas, que guardem ponto de semelhança, podem parecer-se (e não, que se pareçam deveras) quanto a outros".

O juiz da 3ª Vara Criminal de Uberlândia (MG) decidiu que "o ANPP não configura pena antecipada a ponto de caracterizar inelegibilidade, sendo tal acordo inconstitucional e ilegal nessa parte, não estando este Juízo obrigado a cumprir ordem manifestamente ilegal”. A defesa do acusado alegou que, “diante da ausência de sentença penal condenatória, não há motivos pelos quais se justifique penalidade mais gravosa em acordo de não persecução penal, pois os efeitos extrapenais da condenação, como é o caso da inelegibilidade, decorrem de uma medida de política criminal em que se busca realizar os fins do Direito Penal a partir da pena definitiva e, portanto, não podem ser utilizados pela Justiça penal negociada" (Processo nº 0016823-45.2020.8.13.0702. DJe 23/1/20).

A finalidade do acordo de não persecução penal é justamente impedir a instauração do processo penal e todas as consequências negativas dele decorrentes, inclusive de eventual condenação, tais como eventual inelegibilidade (CF, artigo 15, III, c/c o artigo 14, §3º, II, e LC 64/90, artigo 1º, I, e).

Direito fundamental que é, a elegibilidade só pode ser restringida nas hipóteses expressamente previstas na Constituição Federal e na Lei Complementar nº 64/90, devendo o intérprete das hipóteses de inelegibilidade interpretá-las restritivamente. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) firmou-se nesse sentido:

"[…].
(…) o direito à elegibilidade, como direito fundamental, deve ser restringido nas situações expressamente previstas na norma.
[…]. (REspEl – Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 060017422  PIRES FERREIRA  CE, Acórdão de 11/03/2021, relator ministro Alexandre de Moraes, Publicação em DJE  Diário da justiça eletrônica, tomo 52, de 23.3.2021).
[…].
(…) o direito à elegibilidade é direito fundamental. Como resultado, de um lado, o intérprete deverá, sempre que possível, privilegiar a linha interpretativa que amplie o gozo de tal direito. De outro lado, as inelegibilidades devem ser interpretadas restritivamente, a fim de que não alcancem situações não expressamente previstas pela norma. (…).
[…]. (RESPE  Recurso Especial Eleitoral nº 19257 – BARRA DE SANTO ANTÔNIO  AL, Acórdão de 13.6.2019, relator ministro Luís Roberto Barroso, publicado no DJE – Diário da justiça eletrônica em 12.8.2019).
“[…]
7. As restrições a direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, consoante lição basilar da dogmática de restrição a direitos fundamentais, axioma que deve ser trasladado à seara eleitoral, de forma a impor que, sempre que se deparar com uma situação de potencial restrição ao ius honorum, como sói ocorrer nas impugnações de registro de candidatura, o magistrado deve prestigiar a interpretação que potencialize a liberdade fundamental política de ser votado, e não o inverso.
[…]. (RESPE  Recurso Especial Eleitoral nº 21321  AREADO  MG, Acórdão de 06/04/2017, relator ministro Luiz Fux, publicado no DJE – Diário da justiça eletrônica – em 5.6.2017).
[…].
2. Por se tratar de norma restritiva de direitos, as regras alusivas às causas de inelegibilidade devem ser interpretadas estritamente, de modo a não alcançar situações não contempladas na lei e acabar por cercear o direito fundamental à elegibilidade, especialmente quando se exige criativa interpretação a fim de se alcançar um terceiro regime de contagem de prazo.
3. A garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos está amplamente resguardada pela Constituição Federal em seus artigos 14, §9º, e 16, os quais preveem, respectivamente, lei complementar para disciplinar as causas de inelegibilidades e a submissão de qualquer alteração legal que possa afetar o processo eleitoral à regra da anualidade. Logo, tanto o legislador como os operadores do direito devem pautar-se pelas referidas normas, de modo a não cometerem abusos e desvios na aplicação das causas de inelegibilidades, tampouco a criação de nova regra de contagem de prazos de inelegibilidades, sobretudo mediante a combinação de regimes, como se pretendeu in casu.
[…]. (RESPE  Recurso Especial Eleitoral nº 20003  REGENTE FEIJÓ  SP, Acórdão de 17/11/2016, relatora ministro Luciana Lóssio, PSESS  Publicado em Sessão, em 17.11.2016).
[
…].
3. A elegibilidade é direito fundamental de natureza política, por isso somente poderá sofrer limitação por determinação constitucional ou por lei complementar. Na linha da atual jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, as causas de inelegibilidade devem ser interpretadas restritivamente, sendo vedada a interpretação extensiva in malam partem.
[…]. (RESPE  Recurso Especial Eleitoral nº 4932  QUATÁ  SP, Acórdão de 18/10/2016, relatora Ministra Luciana Lóssio, PSESS  Publicado em Sessão, em 18.10.2016).
[…].
2. As normas de direito eleitoral devem ser interpretadas de forma a conferir a máxima efetividade do direito à elegibilidade.
[
…].
6. Não se pode inibir a participação do cidadão no processo político tendo por alicerce tão somente circunstâncias meramente formais. O direito ao sufrágio, no qual se inclui a capacidade eleitoral passiva, em se tratando de direito fundamental garantido pela Lei Maior, participa da essência do Estado Democrático de Direito, operando como diretriz para a ação de todos os poderes constituídos, sem exceção.
[…].”
(RESPE  Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 13781  SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA – RJ, Acórdão de 22.11.2016, relatora ministra Luciana Lóssio, PSESS – Publicado em Sessão,  em 22.11.2016)".

Inadmissível restringir a capacidade eleitoral passiva de cidadão brasileiro fora das hipóteses previstas na Constituição Federal e na Lei Complementar nº 64/90.

Cláusula de ANPP impondo inelegibilidade como condição para celebração do acordo é inconstitucional e deverá ser considerada não escrita, na medida em que apenas lei complementar pode estabelecer outros casos de inelegibilidade além daqueles previstos na Constituição Federal (CF, artigo 14, § 9º) e a Lei Complementar nº 64/90 não prevê inelegibilidade decorrente de acordo de não persecução penal, mas, no que se refere à condenações criminais, prevê inelegibilidade apenas para os cidadãos e cidadãs "que forem condenados (as), em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; 2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; 3. contra o meio ambiente e a saúde pública; 4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; 5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; 6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; 7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; 8. de redução à condição análoga à de escravo; 9. contra a vida e a dignidade sexual; e 10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;" (LC 64/90. artigo 1º, I, "e", 1 a 10).

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