Consultor Tributário

Extinção do voto de qualidade no Carf contrabalança bônus dos fiscais

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

20 de abril de 2022, 9h17

Em janeiro deste ano publicamos um duro artigo contra o pagamento de bônus a servidores da Receita Federal com recursos oriundos de multas tributárias. Nosso argumento central consistia no conflito de interesses (maiores multas garantem maiores bônus), agravado pelo fato de que o benefício é recebido também pelos auditores que, atuando como julgadores do Carf, decidem sobre a legalidade das autuações fiscais. Em março o STF rejeitou por unanimidade a ADI proposta pelo procurador-Geral da República contra os dispositivos da Lei 13.464/2017 que disciplinam essa vantagem (Pleno, ADI 6.562, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 29.03.2002).

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Mas o Supremo é sábio. Ao mesmo tempo em que permitiu a remuneração sobre multas, está a validar o artigo 19-E da Lei 10.522/2002, que tira dos conselheiros fazendários do Carf a última palavra — por meio de voto de qualidade — sobre a procedência dos créditos tributários de que participarão. Com efeito, as ADIs 6.399, 6.403 e 6.415, ora suspensas por pedido de vista do ministro Nunes Marques, já contam com seis votos pela constitucionalidade material da regra segundo a qual, "em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte" (ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski).

E a higidez da regra é manifesta, pois a Constituição não normatiza a matéria de forma expressa ou implícita, reservando-a à competência discricionária do legislador, que agiu validamente tanto ao instituir do voto de qualidade em favor do Fisco quanto ao extingui-lo, prevendo — em positivação do princípio in dubio pro contribuinte — que o empate beneficiará o particular. A ilação de que o novo critério tornaria o Carf um valhacouto de sonegadores, além de se confirmar na prática, como atestam recentes decisões (aqui e aqui), calunia os conselheiros indicados pela sociedade e ignora que estes são agentes públicos sujeitos a sanções administrativas e criminais em caso de má conduta.

As duas decisões do STF — a já tomada e a que se prenuncia — se compensam. É certo que as ADIs sobre o voto de qualidade ainda não estão definidas, seja porque qualquer ministro pode mudar de entendimento até a proclamação do resultado, seja porque há duas posições isoladas que, caso seguidas pelos cinco votos que faltam (Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Nunes Marques[1]), fariam maioria. Trata-se primeiro da invalidade formal do artigo 19-E, fruto de emenda parlamentar ao projeto de conversão da Medida Provisória 899/2019, pecha que tem sido defendida com base em três fundamentos, o último dos quais acolhido pelo ministro Marco Aurélio. São eles:

● usurpação da competência privativa do Presidente da República para projetos de lei sobre organização administrativa (Constituição, artigo 61, parágrafo 1º, inciso II, alínea "b") — a improcedência da tese é clara, pois a estrutura do Carf continua exatamente a mesma, versando o artigo 19-E apenas sobre critério de superação do empate;

● impropriedade da inclusão originária do dispositivo em emenda aglutinativa, que deve coligir proposições parlamentares preexistentes — além de se tratar de matéria puramente regimental, por isso interna corporis e impassível de revisão judicial (Pleno, RE 1.297.884/DF, relator ministro Dias Toffoli, DJe 04.08.2021), o fato é que sequer ofensa regimental há, pois tais emendas são rotineiramente utilizadas na Câmara dos Deputados (a única Casa cujo regimento interno as prevê) para veicular consensos de última hora, como demonstra Roberta Simões Nascimento em primoroso artigo;

● falta de pertinência temática entre o dispositivo e a MP em que inserido. A tese, por ter colhido um sufrágio, merece atenção mais detida. A censura às emendas "jabuti" não consta de forma expressa da Constituição, tendo sido dessumida pelo STF de preceitos latos como o princípio democrático e o devido processo legislativo (artigos 1º, caput e parágrafo único; 2º, caput; e 5º, caput e inciso LIV; Pleno, ADI 5.127/DF, relator para o acórdão ministro Edson Fachin, DJe 11.05.2016). Assim, embora não caiba rediscutir a conclusão da Corte, cumpre interpretá-la de forma restritiva, de sorte a inquinar apenas as emendas de todo estranhas ao objeto da medida provisória (o que ocorria no leading case: emenda extinguindo a profissão de técnico contábil de nível médio encartada em MP que tratava de infraestrutura petrolífera e do Programa Minha Casa Minha Vida, entre outros temas). Ora, a MP 899/2019 versava transação tributária, causa extintiva prevista no artigo 156, inciso III, do CTN. E a emenda parlamentar tratou de decisão administrativa, causa extintiva prevista no inciso IX do mesmo artigo. Seria paralisante, negando toda autonomia ao Congresso, exigir mais do que a referência a um mesmo instituto jurídico (in casu, a extinção do crédito tributário) ou a regência em um mesmo artigo de lei.

A segunda posição isolada posta no julgamento das ADIs é a do ministro Roberto Barroso, no sentido de que a prevalência da pretensão do particular em caso de empate exigiria a legitimação da Fazenda Pública para impugnar tal decisão em juízo. A proposta esbarra em pelo menos dois óbices processuais. Primeiro, a existência de comando legal expresso prevendo a exoneração do crédito tributário ante decisão administrativa final favorável ao sujeito passivo (o artigo 45 do Decreto 70.235/72, a que o STF reconhece status legal – Pleno, ADI 1.992-MC/DF, relator Ministro Moreira Alves, DJ 24.11.2000). Não sendo impugnada nas ADIs — que têm causa de pedir aberta, mas pedido definido –, a regra não pode ser afastada pelo STF. Segundo, por ser impensável que a União vá a juízo contra um acórdão do Carf, que não deixa de ser um órgão federal por ostentar composição paritária ou por adotar este ou aquele critério de desempate (nemo potest venire contra factum proprium).

Para superar essa última objeção, Rodrigo de Macedo e Burgos sustenta que, com a nova regra, o empate passa a ensejar uma "não decisão" (inexistência de um juízo de mérito). E dá um "exemplo singelo" para referendar a proposta do ministro Roberto Barroso. Após lembrar que a qualificação de uma receita como não operacional beneficia o contribuinte no âmbito da Cofins cumulativa (não incidência) e prejudica-o para fins de IRPJ pelo lucro presumido (incidência das alíquotas sobre a base "cheia"), arremata: "se estes dois casos forem julgados por um mesmo colegiado do Carf, no mesmo dia, e houver empate, o órgão terá que lavrar dois acórdãos 'resolvendo favoravelmente ao contribuinte': um afirmando que a receita é operacional e outro dizendo ser não-operacional" — disparate que só poderia ser corrigido por meio de ação anulatória proposta pela PGFN. A construção é engenhosa, mas ignora que, para que os julgamentos simultâneos possam ocorrer, será preciso que a Receita Federal lavre duas autuações fundadas em critérios jurídicos contrapostos, enquadrando a mesma receita como operacional para um tributo e não operacional para o outro — premissa cuja normalidade não se pode admitir.

Decisões contraditórias podem decorrer, não do novo critério de superação do empate, mas de restrições artificiais do seu âmbito material de incidência, como as perpetradas pela Portaria ME 260/2020, que o afasta quanto ao responsável tributário (dado o uso do termo "contribuinte" no artigo 19-E) e quanto aos feitos tributários[2] que não discutem autos de infração ou notificações de lançamento (dado o uso no dispositivo da locução "processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário"), caso dos processos de compensação ou de cassação de imunidade. Não faz sentido negar ao elemento menor (a pessoa que não teve relação pessoal e direta com o fato gerador) benefício garantido ao maior (a pessoa de cuja capacidade contributiva se trata). O termo "contribuinte" foi claramente empregado pelo legislador em acepção atécnica, como sinônimo de "sujeito passivo" — impropriedade comuníssima na linguagem comum e mesmo na especializada. Nem há negar que o processo de compensação versa a determinação de crédito tributário — não daquele que se pretende extinguir, que não se contesta, mas do anterior, cujo pagamento indevido no passado é a fonte do crédito ora reivindicado. O mesmo se diga, mediatamente, do processo de cassação de imunidade, que não tem em mira outra coisa se não a exigência de tributos. Entender que o particular deve ser prestigiado na discussão de um lançamento quiçá diminuto, mas não na resistência ao ato que, cassando a sua imunidade, transforma-o em contribuinte, não raro de valores milionários, nada trem de razoável.

Imagine-se um contribuinte que, tendo por indevido um tributo, deixa de pagá-lo e compensa os valores recolhidos no passado. Tendo visão diversa, a Receita não homologa a compensação e autua-o quanto aos valores inadimplidos. A manifestação de inconformidade e a impugnação são rejeitadas, e os recursos voluntários são julgados em conjunto no Carf, resultando em empate. Aplicada a Portaria ME 260/2020, ter-se-á que o particular sairá vencedor no lançamento e vencido na compensação, embora as situações de base e os votos proferidos sejam absolutamente idênticos. Isso, sim, é absurdo, e tem ocorrido na prática.

A regra do empate favorável ao sujeito passivo, como visto, ainda suscitará muitas controvérsias. Mas a sua convalidação irrestrita pelo STF, para a qual nunca faltaram boas razões jurídicas, tornou-se imperiosa para o reequilíbrio da relação Fisco x contribuinte após a manutenção do bônus pago com a receita de multas. Nenhum servidor público pode decidir a própria remuneração.

[1] Substituindo o Ministro Marco Aurélio, o Ministro André Mendonça não vota no caso.

[2] O afastamento da regra em relação aos processos não tributários de competência do Carf, como os relativos a questões aduaneiras ou a direitos antidumping, parece-nos correto, diante (i) da redação do artigo 19-E, que fala em “crédito tributário”); (ii) da manutenção do artigo 25, parágrafo 9º, do Decreto 70.235/72, que deve ter alguma aplicação; e, aqui sim, (iii) da falta de pertinência temática entre essas outras matérias e a MP 899/2019, que versava transação tributária.

Autores

  • é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

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