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Amarante e Mendonça: Quem tem medo das mobilizações?

20 de abril de 2022, 14h47

Por João Armando Moretto Amarante, Pedro Marchi Mendonça

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Em recente notícia, fruto de trabalho investigativo da Agência Pública [1], apurou-se que aplicativo de entrega teria supostamente contratado agências de publicidade para atacar as greves e reivindicações de seus entregadores, mediante a criação de perfis falsos em redes sociais, páginas para divulgação de fake news, além da infiltração de agentes em manifestações para tentar desmobilizar o movimento.

De acordo com a publicação, a estratégia funcionaria da seguinte forma: nas redes sociais, páginas de conteúdo político e de memes criavam uma contra narrativa à pauta da greve. Nesse tipo de estratégia, a promoção de um discurso que interessa ao contratante do serviço (leia-se: empresa do aplicativo) é feita sem que se explicite a existência de patrocínio.

No caso, utilizando-se de linguagem que buscava recriar a forma como se comunicam os entregadores, as páginas exploravam assuntos sensíveis ao contratante das agências, numa tentativa de esvaziar o discurso que ganhara notoriedade com a paralisação dos entregadores em 1º de julho de 2020, desmobilizar as ações orquestradas pelo sindicato e líderes do movimento e, assim, atender aos interesses do contratante do serviço. Por sua vez, nas manifestações, as agências contratadas enviaram indivíduo que se fez passar por entregador. Nessa oportunidade, a ideia era transformar a pauta das manifestações em uma pauta em prol da vacinação prioritária dos entregadores, deturpando o real intento do movimento.

É com base nesses fatos que propomos a breve reflexão deste artigo. Se confirmada, a denúncia lança luz sobre o uso de táticas normalmente atribuídas ao jogo político e econômico para esvaziamento de pautas de reivindicação de trabalhadores, adoção de práticas antissindicais, com o intuito de inviabilizar o desenvolvimento a contento de direitos básicos de organização dos trabalhadores, especialmente em âmbito coletivo. O que tentaremos neste espaço é avaliar quais potenciais consequências, trabalhistas e criminais, da adoção de tais práticas, discutindo em que medida empresas e seus diretores podem ser responsabilizados caso se conclua que, de fato, trata-se de medidas voltadas à inviabilização de direitos laborais.

O ponto de contato entre as questões que afetam o direito do trabalho e aquelas relativas ao direito penal está não apenas na análise da potencial tipicidade dos atos, mas principalmente da constatação de que a definição de estratégias por parte das empresas deve levar em consideração um cenário de consequências interdisciplinares.

Um primeiro passo em nossa exploração é determinar se a contratação de agências de publicidade para "esvaziar a narrativa da greve" equivaleria a uma prática antissindical. Para Oscar Ermida Uriarte as práticas ou condutas antissindicais são as "que prejudiquem indevidamente um titular de direitos sindicais no exercício da atividade sindical ou por causa desta ou aqueles atos mediante os quais lhe são negadas, injustificadamente, as facilidades ou prerrogativas necessárias ao normal desempenho da ação coletiva" [2], ou seja, que dificultem a própria ação sindical [3].

O artigo 1º, da Convenção nº 98, da OIT, ratificada pelo Brasil em 18/11/1952, estabelece que "Os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego".

No âmbito constitucional, o artigo 8º, da CF, identifica como direitos fundamentais a liberdade sindical, a negociação coletiva de trabalho e, especialmente, em seu artigo 9º, o exercício do direito de greve, competindo aos trabalhadores decidirem sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender [4].

Assim, os atos ou práticas antissindicais inserem-se em um amplo espectro: quaisquer atos praticados pelo empregador que, direta ou indiretamente, cerceiam, desvirtuam ou impedem a legítima ação sindical em defesa e promoção dos interesses dos trabalhadores.

A título de exemplo, o Ministério Público do Trabalho considera como atos antissindicais as práticas de (1) cercear ou dificultar a adesão e o livre exercício do direito de greve; (2) constranger a trabalhadora ou o trabalhador a comparecer ao trabalho, com o objetivo de frustrar ou dificultar o exercício do direito de greve; (3) contratar, fora das hipóteses previstas na lei, trabalhadoras ou trabalhadores para substituir aqueles que aderiram ao movimento paredista legitimamente convocado; (4) implementar prêmio ou qualquer incentivo para incentivar trabalhadora ou trabalhador a não aderir ou participar de greve.

Visto o panorama normativo e doutrinário, voltemos ao nosso caso de análise.

Comecemos com um destaque: embora o conflito em questão esteja normalmente ligado às figuras dos empregadores, essa noção, hoje, deve ser superada e ajustada, especialmente porque, com o avanço da tecnologia e das novas formas de trabalho, mitigou-se o mero elo empregatício entre as empresas e seus trabalhadores. Isso significa que, mesmo diante de não serem, em tese, formalmente empregadores, ainda assim aplicativos de entrega poderiam, mesmo fora da relação de subordinação, cometer atos que dificultem, inviabilizem ou violem os direitos sociais dos trabalhadores (mobilização, divulgação, greve etc.), mormente porque a relação jurídica entre tais empresas e entregadores é, ao menos, uma relação de trabalho, o que já tornaria obrigatória a observância de um mínimo de princípios contratuais, tais como a boa-fé.

Assim, se confirmada a conduta noticiada, constata-se que, de acordo com todas as normas apresentadas, é possível a caracterização de práticas ou atos antissindicais, ainda que não vinculados a uma relação de emprego. Assim, podemos afirmar que o direito de greve ou de sindicalização não está atrelado à existência de uma relação formal de emprego. Dito isso, tampouco se pode afirmar que a violação a tais direitos só possa ser cometida por empregadores. Assim, mesmo que haja questões relevantes na discussão quanto à natureza da relação de trabalho entre entregadores e aplicativos de entrega, a constatação de que o exercício de direitos coletivos dos trabalhadores e sua violação independem da existência de um vínculo formal permite que superemos essa questão.

Dito isso, as consequências trabalhistas podem ser várias: desde o início de procedimentos de fiscalização pelas entidades administrativas competentes, com a cominação de multa por infração à legislação do trabalho, até mesmo a instauração de inquéritos civis pelo Ministério Público do Trabalho, inclusive com o pagamento de indenização por danos morais coletivos, assinatura de TAC e até mesmo a intervenção judicial, com a fixação de tutelas inibitórias etc.

Com base no que dissemos até agora, pensemos agora nas possíveis consequências de natureza criminal.

A parte especial do Código Penal prevê uma série de crimes voltados à proteção da organização do trabalho. No caso em questão, merece destaque o artigo 203, que tipifica a conduta de "frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho". Não nos cabe aqui discutir se haveria formas mais eficientes de sancionar a violação de direitos trabalhistas. Nosso interesse se limita em discutir se, hipoteticamente, as condutas de utilizar contas falsas em redes sociais, criadas para fomentar uma contra narrativa à greve, e infiltrar agentes disfarçados, para influenciar a alteração de pautas da manifestação, preencheriam a figura típica prevista no artigo 203.

Para responder a essa questão será preciso percorrer três importantes passos: identificar o direito trabalhista assegurado a ser frustrado; descrever a conduta tipificada ("frustrar"); e analisar as condições previstas pelo tipo (que a prática se dê mediante violência ou fraude).

Primeiro, é preciso que afirmemos que a mobilização e associação sindical integra o rol de direitos trabalhistas dos entregadores. A resposta a este ponto já obtivemos e por isso não nos alongaremos. Como vimos, a Constituição reconhece, expressamente, em seus artigos 8º e 9º, a natureza de direito assegurado à manifestação, associação e à greve. Quanto à greve, por exemplo, sua inclusão no rol de direitos trabalhistas passíveis de serem frustrados está incorporada de forma incontroversa nos comentários feitos ao artigo 203 do Código Penal. Nas palavras de Fragoso, por exemplo, "É induvidoso que o direito de greve, embora não existisse à época da edição do CP, constitui hoje um direito trabalhista. O direito de greve pode ser objeto da frustração, violenta ou fraudulenta, que caracterizaria este delito" [5].

Em nosso caso, ainda que não possamos falar expressamente em greve, não há dúvida que o direito de organização sindical e manifestação relativa a pautas favoráveis à categoria são direitos assegurados pela legislação constitucional e infraconstitucional.

Em segundo lugar, deve-se determinar o sentido do verbo nuclear do tipo. Quem frustra algo impede sua plena realização. No caso da ação descrita no artigo 203, é preciso que o autor impeça que o titular do direito trabalhista o exerça em sua plenitude. Ou seja, a norma não exige que a ação impossibilite totalmente o exercício do direito, sendo suficiente que haja uma diminuição da possibilidade de exercício do direito. No caso em questão seria possível identificar duas restrições ao direito à organização e manifestação dos trabalhadores: a criação de perfis falsos e a divulgação de informações falsas e de memes em canais de comunicação utilizados para mobilizar entregadores altera a pauta de discussão, restringindo a divulgação do conteúdo central, a ponto de impedir que mais entregadores recebam conteúdos relevantes relacionados à mobilização; e, de igual maneira, a introdução de demandas paralelas por meio de agentes infiltrados gera uma diminuição da manifestação em prol da pauta inicial. De forma mais concreta, as ações de desmobilização podem vir a restringir o número de entregadores engajados na causa e também mudar o foco do pleito original.

Por fim, a frustração do direito trabalhista deve ter resultado do uso de violência ou fraude. Em nosso caso é incontroverso não haver violência; os mecanismos usados se distanciam dos meios tradicionais de intimidação, lançando mão de rebuscadas técnicas de comunicação, que a partir de perfis falsos em redes sociais, geradores de igualmente falso engajamento, esvaziam a pauta legitimamente lançada pelos trabalhadores. O que precisamos responder, portanto, é se ao assim agir, o sujeito frustra direitos trabalhistas mediante fraude.

Elemento comum a uma série de crimes, a fraude consubstancia-se no emprego de meios que permitam o induzimento do sujeito a erro ou sua manutenção. Trata-se da criação de um contexto artificial, gerador de engano e dissimulação da vítima. No caso da frustração de direitos trabalhistas, a fraude está voltada a "enganar o trabalhador (ou quem o represente), privando-o do direito trabalhista" [6].

Voltando as atenções ao nosso caso, a criação de perfis e páginas falsas, voltadas a produzir engajamento artificial que simule realidade diversa daquela que fomenta a organização dos trabalhadores equivale à adoção de meios fraudulentos, aptos a dissimular, enganar ou manter em erro os titulares do direito, impossibilitando-os, assim, do exercício da plenitude do que lhes é assegurado. Afinal, há duas potenciais dissimulações: a primeira, a introdução de perfis e informações falsas gera um (des)engajamento artificial; e, a segunda, novas pautas introduzidas por agentes infiltrados alteram de modo não natural as pautas originais, dando uma impressão aos entregadores de que há uma legitimidade em relação à demanda introduzida.

Uma última consideração merece ser feita e diz respeito ao sujeito ativo do crime previsto no artigo 203. O crime de frustrar direito trabalhista não se exige que o sujeito ativo possua características especiais. Integram o rol de potenciais autores, todo e qualquer sujeito, independentemente se eram ou não, ao tempo da fraude ou violência, empregadores ou contratantes dos titulares dos direitos frustrados. Do ponto de vista concreto, o fato de se tratar de crime comum implica que eventual responsabilização penal poderia esparramar-se, atingindo não apenas aqueles a quem se poderia, intuitivamente, atribuir responsabilidade — pensemos aqui nos diretores da empresa contratante dos serviços de comunicação destinada à frustração da mobilização —, mas também aqueles sujeitos que tenham efetivamente agido de forma a frustrar o direito trabalhista — novamente, com base em nosso caso, os publicitários e demais sujeitos envolvidos.

No mais, trata-se não apenas de comportamento contraproducente que enxerga a parte antagônica como inimiga (do ponto de vista do diálogo social, dos deveres da colaboração, solidariedade e boa-fé), como também de ato violador de direitos sociais constitucionalmente assegurados, e, potencialmente, conduta típica, prevista no Código Penal e cuja responsabilização recairia sobre as pessoas físicas que tivessem de qualquer forma contribuído na realização da conduta de frustrar direito trabalhista.


[2] URIARTE, Oscar Emirda. A proteção contra os atos anti-sindicais. São Paulo: LTr, 1989. p. 10.

[3] Sobre o direito de ação sindical, Manuel-Carlos Palomeque López aponta que a liberdade sindical compreende o direito dos trabalhadores à atividade sindical, ao exercício livre da ação sindical, tanto dentro como fora da empresa, ou seja, o exercício daquelas atividades que permitem a defesa e proteção dos próprios trabalhadores. LÓPEZ, Manuel-Carlos Palomeque. Derecho sindical espanõl. 3ª ed. Madrid: Tecnos, 1989, p.119-121.

[4] Nesse sentido, o §2º, do art. 6º, da lei 5583/89 (Lei de Greve) estabelece que "É vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento". Afinal, não haveria sentido em estimular condutas que atentem contra direito intimamente ligado aos preceitos republicanos e derivado da própria liberdade coletiva.

[5] FRAGOSO, Christiano Falk. Comentários ao artigo 203. In: SOUZA, Luciano Anderson de (Coord.), Código Penal Comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 729.

[6] FRAGOSO, Christiano Falk. Comentários ao artigo 203. In: SOUZA, Luciano Anderson de (Coord.), Código Penal Comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 729.