Opinião

Entre fetiches por ditadura e vivandeirismo, o que o Direito pode fazer?

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18 de abril de 2022, 9h45

O tema é: Estado Democrático de Direito. Previsto na Constituição do Brasil. Portanto, o cerne é o Direito. Que está regulado nesse estatuto jurídico do político de um país: a Constituição.

Spacca
O subtema: O fetiche por ditadura. Pode o Direito nos salvar dessa barbárie?

Constitucionalismo quer dizer "fazer democracia no Direito e pelo Direito". O ponto central é a institucionalidade. O Direito como condição de possibilidade para a própria democracia. Democracias consolidadas funcionam assim. Ou alguém viu, na Espanha ou Portugal, pessoas dizendo "essa Constituição atrapalha o país" ou "queremos Franco ou Salazar de volta"? Ou o chanceler da Alemanha dizer "me dá náusea cumprir a Constituição"?

Não? Então me sigam. Vou lhes contar sobre o meu "pânico institucional".

O constitucionalismo — essa invenção democrática — criou mecanismos para evitar que maiorias eventuais destruam a democracia. Autopreservação, eis a chave. Se eu habito com outras pessoas e tenho um contrato pelo qual as decisões são tomadas por votação, isso não garante que alterem o contrato e me joguem pela janela. Como me garanto? Colocando uma cláusula pela qual podem alterar o contrato por votação, menos a cláusula que diz que minha vida e dignidade devem ser preservadas acima de tudo. Essa é a metáfora ulissiana de todos conhecida. As correntes que amarram…

As cláusulas pétreas e as garantias institucionais (por exemplo, a divisão de Poderes) representam uma espécie de "quarto de pânico da democracia". Para que serve esse "quarto"? Simples. Quando os bárbaros — e existem muitos — ameaçam as instituições, protegemo-nos. Simbolicamente, é ali que nos abrigamos. É o porto seguro contra as maiorias eventuais. Que não são confiáveis.

Porém, não se trata, simplesmente, de possuirmos um "quarto do pânico". O ponto é termos instituições robustas. A institucionalidade é algo tão complexo que, por vezes, nem o "quarto do pânico" resolve. Voltando à metáfora de Ulisses, de nada adianta ser amarrado ao mastro e dar as ordens aos marinheiros, se estes retirarem a cera dos ouvidos e ouvirem o canto das sereias…!

Explico.

Instituições têm uma função. Metaforicamente, são como limpadores de para-brisas. São inúteis se não estiverem do lado de fora do carro, se me permitem essa plus platitude. Todavia, essa aparente obviedade é necessária porque estamos em um país em que

(i) o presidente defende abertamente a ditadura;
(ii) o presidente tentou dar um golpe em 7 de setembro de 2021;
(iii) o presidente manda o Supremo Tribunal calar a boca (em 31 de março de 2022);
(iv) o presidente pede que o povo de arme em desconfiança com as urnas eletrônicas;
(v) o presidente faz novas ameaças dia 14 de abril e "cutuca" o STF em (mais uma) motociata que custou mais de um milhão, organizada, pasmem, por um empresário bem de vida que se aproveitou de 5.700 do auxílio emergencial;
(vi) O presidente coloca sigilo de 100 anos no caso das dezenas de visitas de pastores evangélicos Arilton e Gilmar ao Palácio de governo e a ministérios (depois retirou o sigilo).
(vii) O ministro da Defesa diz que o golpe de 1964 foi um avanço.
(viii) O deputado mais votado do Brasil, filho do presidente, faz blague da tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão, presa pela ditadura e atirada, grávida, em uma cela junto a uma cobra.
(ix) E…só ficamos esperando qual será o próximo desprezo, menoscabo e contempo contra a institucionalidade democrática.

Isso tudo não nos diz nada?

Cabe a pergunta: dizer que as "instituições funcionam" pode apenas ser uma ficção da realidade ou, quem sabe, o nosso pânico diante do perigo da realidade da ficção?

Daí a outra indagação — fulcral: o Direito pode salvar a democracia? No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já deu mostras de que, até aqui, com muito custo político-institucional, isso não foi apenas possível como foi necessário, se pensarmos nas decisões sobre a pandemia, o inquérito em autodefesa contra os ataques à Corte (episódio que mais lhe gera críticas), a instalação da CPI da pandemia, o caso do orçamento secreto e os tristes eventos de 7 de setembro de 2021 (em que ministro do STF foi chamado de canalha).

Então, como é possível?

Sim, como é possível, em uma democracia, que o Supremo seja atacado quando o que estava em jogo era sua própria sobrevivência — e, por essa razão, a sobrevivência da própria democracia no Brasil? O garantismo textualista logo se volta contra as garantias… E então é o fim.

Há ou não há razões para pânico institucional?

Vamos lá. Além de tudo isso, existe um conjunto de rádios e estações de TV espalhadas pelo Brasil — falo em concessões públicas— em que proliferam pregações de coisas como AI-5, intervenção via art. 142-CF, ofensas aos ministros do STF, fechamento da Corte Suprema e coisas desse nível, além de explícita campanha eleitoral antecipada — vedada por lei. Um fetiche por ditadura.

No RS, não são necessários mais do que dez minutos de amostragem nos principais veículos de comunicação. No jornal de maior circulação, Zero Hora, vale lembrar, por todos — e aqui é necessário dar os nomes — o conhecido J. R. Guzzo (que conseguiu a façanha de ser demitido da revista Veja pelo extremismo) e o desconhecido Eugênio Ésber, os quais, colunas sim, colunas também sim, fazem pregações antidemocráticas. Deve ser por conta do "pluralismo" do veículo.

Isso não é motivo para um "pânico institucional"?

E olhem que não falei da Jovem Pan — cinco minutos e o coeficiente de pânico sobe para o grau máximo. Assustemo-nos. Acordemos. Isso está acontecendo. O vivandeirismo alvoroçado vive. Estacionam nos bivaques.  

Para além de tudo isso, há um ponto de estofo: trata-se da constante "corda esticada", que pode provocar fadiga de metais. Esse "cabo de guerra", se de um lado tem permanentemente o presidente da República, não pode (não deve) ter, do outro, apenas o STF. Isto porque o Congresso Nacional deveria dar respostas mais incisivas aos ataques à democracia. Será que o presidente da República, ao defender a ditadura (que, não esqueçamos, fechou o Parlamento três vezes) e mandar a Suprema Corte calar a boca, não ultrapassou o Rubicão? A pergunta é retórica. Como pode alguém eleito pelo povo defender um regime que fechou o parlamento em três ocasiões?

Com 130 pedidos de impeachment e o Presidente da Câmara sentado em cima, estariam, mesmo, os limpadores de para-brisas instalados do lado de fora do carro? Teríamos cera suficiente para tapar os ouvidos dos marinheiros de Ulisses?

O pânico!

Por isso, há meses falo em "pânico institucional". Precisava de palavras para expressar uma coisa que me aperta o peito. O que é isto? É quando temos o "quarto do pânico" e podemos até nos abrigar. O problema é que talvez a chave não esteja (mais) conosco. Está com o invasor. E aí, como se faz? Para onde vamos quando o quarto do pânico está prestes a ser incendiado?

Por isso — e essa questão simboliza os sintomas do pânico institucional — quando vejo o senador gaúcho Lasier Martins1, da tribuna do senado, bizarramente, em vez de ficar espantado com o que fez e faz um parlamentar, clamar pelo impeachment do min. Alexandre de Moraes por ter agido em relação a um deputado que ameaçou o STF, a integridade física de ministros e defendeu o AI-5, só posso ficar em "pânico institucional". Parlamentares agem contra as instituições republicanas. É de um paradoxo digno do mais paradoxal dos países.

Eis o nosso dilema: temos o "quarto do pânico", mas a chave parece estar do lado de fora. Temos capacidade de retomar a chave? Ou a democracia é de fancaria? A propósito, um bom teste: como ficarão as compras bizarras do Ministério da Defesa? As compras não são tão graves quanto o ministro da Defesa, leia-se, governo, achar que não precisa dar satisfação a ninguém. Esse desdém e esse "às favas para a accountabillity" reforçam o meu "pânico institucional".

Como morrem as democracias, o fim da democracia… tantos livros, tantos avisos e continuamos tranquilos. Não seria essa uma nova definição de estupidez? A realidade em nossa cara e seguimos ignorando. Como os negacionistas que insistiam na "gripezinha" quando a realidade do país já mostrava valas comuns. Assustador. Como é possível isso?

Conta Eráclio Zepeda: quando as águas da enchente cobrem a tudo e "derrumbam las casas", é porque de há muito começou a chover na serra. Nós é que não nos demos conta.

Numa palavra final: como diz Jon Elster (quem criou a metáfora "constitucionalismo-correntes de Ulisses"), o problema não é explicar por que tantas constituições fracassam em impor obediência a seus criadores e nunca passam de meros pedaços de papel escrito. A questão está em compreender de que maneira muitas constituições conseguem adquirir essa misteriosa capacidade de serem obedecidas.

Qual será o nosso caso?


1 Aliás, seus quase oito anos de mandato se resumem a criticar o STF. Seu sonho é "impichar" ministros do STF.

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