Opinião

Smart contracts: a nova forma de "codificar" os contratos

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18 de abril de 2022, 18h02

Em interessante estudo sobre os avanços da tecnologia no âmbito dos contratos, foi afirmado que "a beleza do Direito Contratual é encontrada em sua maleabilidade para responder a modelos contratuais inovadores e ainda cumprir suas funções de facilitação e regulação" [1]. A afirmação é interessante, pois, em perspectiva histórica, o que se constata é uma verdadeira capacidade do instituto "contrato" de se adaptar a diferentes contextos, sociedades, sistemas jurídicos e regimes políticos: de trocas presenciais informais a formas de contratação à distância (com cartas, telegramas, e-mails); da formalização por escrito aos contratos standard. Hoje, por um clique do mouse, pode-se adquirir produtos e serviços independentemente de fronteiras.

Diz-se que um dos mais novos passos nesse avanço tecnológico seria a possibilidade de estabelecer "smart contracts" — em tradução literal, "contratos inteligentes". Mas o que faz um contrato ser adjetivado como "inteligente"? Pense-se em exemplos do cotidiano: o smartphone faz mais do que apenas ligações, e o smart watch faz mais do que apenas indicar as horas. Logo, também o smart contract faria mais do que um contrato "tradicional".

Mas o que significa esse "algo a mais"?

O smart contract é um contrato inserido em plataforma que garante a execução automática das prestações por meio de uma máquina. Representa, assim, um passo adiante na tutela do crédito. Essa inserção é feita a partir do estabelecimento de uma linguagem codificada, a partir de proposição "se X, então Y" — com X e Y sendo predeterminados pelos contratantes, a exemplo de “se confirmado o pagamento, liberar o produto”, como ocorre no comumente mencionado exemplo da máquina de refrigerantes. A questão é tão presente que, na atualidade, já há inclusive a venda de roupas por meio dessas máquinas [2]. Inclusive, já se pensa em outros exemplos que a tecnologia tornará possíveis de ocorrer, como no caso de desativação do dispositivo de transmissão de marcha de veículo objeto de locação, diante do não pagamento [3].

É em razão das vastas possibilidades que se apresentam por meio da tecnologia que muito se tem escrito acerca de como os smart contracts revolucionarão a teoria contratual tradicional. Não se pretende, neste breve espaço, explorar todas essas possibilidades — quer-se, em verdade, destacar um aspecto terminológico da expressão e consequências disso.

Desde quando foi inicialmente arquitetada a ideia, houve uma profunda e indistinta utilização da expressão "smart contracts". No entanto, essa não é uma expressão verdadeiramente adequada. Não se está tratando de um tipo contratual ou, pelo menos, de um contrato (no seu sentido jurídico). A expressão quer revelar, em verdade, a utilização da tecnologia (um software) em contratações. Ou seja: trata-se mais de uma forma de contratar do que um contrato em si. Uma compra e venda seguirá sendo compra e venda, independentemente se feita de forma verbal, escrita, eletrônica ou por tecnologia — desde que presentes os elementos e requisitos necessários para a sua qualificação como compra e venda

Precisamente por se tratar de uma forma, ela não está restrita a contratos, podendo ser utilizada em outros atos jurídicos. Pense-se, por exemplo, na elaboração de um testamento: esse ato poderia ser codificado em tecnologia por meio da especificação de que todas as criptomoedas (para seguir-se no exemplo tecnológico) do testador, quando de seu falecimento, deverão ser transferidas à conta eletrônica do herdeiro indicado. O testador poderia, ainda, condicionar a transferência das criptomoedas a um evento futuro e incerto — tal como que a transferência somente seja feita após a colação de grau do herdeiro.

Nesse exemplo, o smart contract — em verdade, smart will — poderá ser moldado a partir de diferentes variáveis: a que indica a conta eletrônica do testador; a que indica a conta eletrônica do herdeiro; a que indica se o testador está vivo (inicialmente disposta como "verdadeiro"); a que indica se o herdeiro obteve diploma de graduação (inicialmente disposta como "falso"). Será apenas quando a variável "testador vivo" for disposta como "falso" e quando a variável "herdeiro diplomado" for disposta como "verdadeiro" que, efetivamente, a tecnologia permitirá a transferência automática da herança. Para a modificação dessas variáveis, é possível se utilizar de serviços externos, denominados "oráculos", que buscarão informações no mundo real para depois inserirem-nas na plataforma. No exemplo dado, os oráculos podem buscar informações em obituários (para certificar o falecimento do testador) e monitorar registros de diplomas de graduação (para certificar a colação de grau do herdeiro) [4].

Esse exemplo reforça a inadequação da expressão "smart contract", pois a tecnologia a que a expressão quer se referir pode ser utilizada em outros atos jurídicos. Nada obstante, não se nega aqui que sua ampla utilização no discurso fez com que ela ganhasse vida própria.

Também se deve refletir sobre o verdadeiro significado da "inteligência" do contrato. Para inserir um contrato em plataforma, é necessário transformá-lo em estrutura binária codificada ("se X, então Y"), o que, em verdade, depende da própria capacidade do ser humano. Mesmo quando as partes falam o mesmo idioma, elas estão suscetíveis a ambiguidades, polissemias, contradições — e mais ainda quando não falam o mesmo idioma, em razão das imprecisões na tradução (em especial, de termos jurídicos).

Logo, as partes podem enfrentar dificuldades para a transformação da linguagem do contrato para uma estrutura binária codificada. Contratos complexos, de longa duração, possuem grande carga de circunstâncias negociais, que muitas vezes serão decisivas para a interpretação e a definição do (in)adimplemento; ainda, as partes podem optar por uma estrutura contratual mais flexível, permitindo ajustes ao longo da relação, ou mesmo utilizando conceitos indeterminados. Como estruturar uma obrigação de melhores esforços em linguagem binária de códigos? Mais: e se, em decorrência de uma imperfeita transformação em código, a tecnologia efetivar a execução do contrato antes do momento desejado para tanto? É possível que haja um deslocamento do possível litígio — não mais para forçar o adimplemento, mas para desfazê-lo.

Palavras e códigos são criações humanas; o ser humano é imperfeito por natureza. Talvez as dificuldades sejam inerentes ao atual estágio da tecnologia. Por isso, há quem afirme que os smart contracts não eliminam ambiguidades, apenas escondem-nas [5]. Isso não afasta a "inteligência" deles — já que há uma promessa de entrega de algo a mais em relação ao "contrato tradicional" —, assim como não impede que se considere como animadora a perspectiva de se ter um sistema privado de execução contratual por meio de código computacional. Apenas o tempo permitirá dizer se os smart contracts entregarão aquilo que hoje prometem.


[1] DIMATEO, Larry A; CANNARSA, Michel; PONCIBÒ, Cristina. Smart contracts and contract law. In: DIMATTEO, Larry A.; CANNARSA, Michel; PONCIBÒ, Cristina. The Cambridge Handbook of Smart Contracts, Blockchain Technology and Digital Platforms. Cambridge: University Press, 2020, p. 9.

[2] Acerca do exemplo da máquina de refrigerantes, ver SZABO, Nick. Formalizing and securing relationships on public networks, 1997. Disponível em https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/548/469. Sobre a máquina de venda de roupas, conferir: https://exame.com/negocios/apos-ca-renner-cria-maquina-para-vender-roupas-em-metro/.

[3] O exemplo foi retirado de TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Inteligência artificial, smart contracts e gestão do risco contratual. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (Coord.). O Direito Civil na era da inteligência artificial [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, item 4.

[4] O exemplo do testamento é dado por GATTESCHI, Valentina; LAMBERTI, Fabrizio; DEMARTINI, Claudio. Technology of smart contracts. In: DIMATTEO, Larry A.; CANNARSA, Michel; PONCIBÒ, Cristina. The Cambridge Handbook of Smart Contracts, Blockchain Technology and Digital Platforms. Cambridge: University Press, 2020, p. 43-44.

[5] GRIMMELMANN, James. All smart contracts are ambiguous. Journal of Law & Innovation, v. 2, n. 1, October/2019, p. 3.

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