Opinião

Criptomoedeiros e sistemas de pagamento virtuais

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18 de abril de 2022, 12h19

A corrupção é um problema endêmico no Brasil. Disso ninguém duvida. A grande onda anticorrupcional que varreu o país nos últimos anos destacou, no entanto, outra realidade que já era presente de há muitos anos. Trata-se da presença e sobrevida dos chamados doleiros. Poderiam eles ser vistos como indivíduos que negociam, compram e vendem dólares  ou moedas estrangeiras  no mercado paralelo. Mas será que teriam, tais indivíduos, presença também no mundo virtual? Essa, uma pergunta de importância quando tanto se discute aspectos jurídicos das criptomoedas.

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De outra sorte, caberia ainda a indagação penal sobre eventual tipificação de suas condutas atinentes a tal realidade. Note-se que uma leitura mais dura ou tradicional do Direito Penal poderia justificar que um doleiro, em tese, viesse a incorrer, entre outros, em crimes de evasão de divisas e de lavagem de dinheiro. Seria este, também, o caso paralelo no campo cripto?

Em primeiro lugar, que se diga que as criptomoedas inauguraram uma realidade completamente distinta a um mundo que pretende sistemas de regulação relativamente rígidos. Semelhante controle, aliás, mostra-se em desenvolvimento nas últimas décadas com escopos também penais, quer em termos de controle corrupcional, quer em termos de controle de lavagem de dinheiro. Mas não só. Na perspectiva de limitação de trânsito de dinheiros escusos, toda a sorte de títulos ao portador, bem como contas em países estrangeiros passaram ser melhor controladas. Tudo, no entanto, cai por terra, ao menos em parte, com o advento das criptomoedas.

As criptomoedas mostram-se, conceitualmente, como uma dimensão própria, um sistema monetário distinto do oficial [1], e sem necessárias vinculações ao mesmo. Seriam, portanto, e em tese, um típico palco ideal para comércio paralelo, em especial se for constatado, desde logo, um choque não adequado de um mundo tipicamente regulado  como o financeiro  e um mundo fundamentalmente não controlado  como o universo cripto.

A esse respeito, já se disse, em outro momento, que "toda a sorte de novas medidas preventivas e de controle ou teria enorme dificuldade de prova, dado justamente o anonimato em questão, ou poderia ser inefetiva, uma vez que em outros tantos países se tolera, com tranquilidade, o anonimato. Um futuro controle de compras de criptomoedas com cartões de crédito sem maiores reflexões poderia dificultar, em certa medida, a questão, mas, por outro lado, poderia fazer surgir uma nova versão de doleiros, algo como um criptomoedeiro. Poderia, ainda, suscitar quaisquer outras formas de aquisição clandestina de moedas virtuais" [2]. Por certo, não seria esse o objetivo ideal da formatação de controle externo, qual seja, a criação de um sistema paralelo de vulneração do próprio controle [3].

Aqui, aliás, encontra-se um ponto de convergência curioso. As dimensões que as criptomoedas estão a ganhar são de proporções inimagináveis aos seus críticos. Com a sua popularização, divulgação de valores em todos os meios de comunicação, enfim, dificilmente poderia se supor que pudessem ser, como há poucos anos, aprioristicamente colocadas na marginalidade. Seria algo mesmo próximo ao que se dava, anos atrás, com o mercado de moedas estrangeiras, nos quais, mesmo com a venda absolutamente controlada, notavam-se inúmeros negócios feitos com moedas em espécie. Novamente aqui, as burlas aos controles eram já vistas.

De se lembrar que as criptomoedas nasceram, entre tantas missões, também para se mostrar como unidade de troca. Mas isso implicaria, conforme a sorte de moeda, gastos computacionais que, senão inviabilizam, podem encarecer algumas operações de baixa monta. Buscando saída ideal a essa situação, acabam por se ver presentes sistemas com a lightning Network. Trata-se de um sistema que busca contornar a barreira da escalabilidade existente, por exemplo, no bitcoin, segundo o qual se utiliza canais de micro pagamentos instantâneos. Estes não chegam a delegar a custódia de fundos à terceiros, efetuando compensações por meio de intermediários confiáveis [4]. Tais compensações, no entanto, ao trabalhar em via paralela, vale dizer, previamente à sua inserção na blockchain, não deixam rastro algum, à exemplo de moedas justamente criticadas por se mostrarem de forma blindada a quaisquer verificações externas, como é o caso da criptomoeda monero [5].

Estes são apenas alguns poucos exemplos que evidenciam as dificuldades de uma regulação inadequada do setor. Ao imaginar respostas similares a situações absolutamente distintas, incorrer-se-á em erro fatal. Da mesma forma que, em princípios das estipulações acerca das chamadas regras de compliance, buscaram-se especialistas em diversas áreas, econômicas, jurídicas e regulatórias, além de outras tantas [6], haverá de se imaginar que regulações em campo de criptomoedas não podem ser gizadas com pensamento financeiro ou monetário unidimensional, pois os riscos e implicações seriam, sim, muito piores do que qualquer pretensa solução.

O avanço diuturno do mercado cripto simplesmente não parece aceitar respostas prontas de elementos externos. As implicações tangenciadas a ele, bem como efeitos potencialmente deletérios, são muitos, bem como são inúmeras as possibilidades de válvulas de escape. Enfim, uma eventual má regulação, em que simplesmente se pretenda a limitação de pagamentos P2P, ou, mesmo, de vinculações a declarações voluntárias dos proprietários de criptomoedas, pode gerar um efeito colateral de amplas dimensões, como seria o caso do surgimento ou incremento significativo de criptomoedeiros, algo que findaria por gerar mais problemas que soluções. Isso para não se falar em sistemas tecnológicos  como os de pagamento  que, ao apertar de um botão, contornam toda uma série de pretensos controles.

Não seria de se estranhar, portanto, que, como um real novo campo de trabalho em construção, esse universo cripto finde por buscar, também, novos especialistas em regulação e, mesmo, no espaço jurídico. Tenha-se em conta, de ampla forma, que todo e qualquer preconceito  mesmo os frequentemente penais  deve ser deixado de lado quando se passa a trabalhar no universo cripto. Nele, se está em uma dimensão em formação, e distante de boa parte das bases conceituais que o campo analógico acabou por sedimentar. Há, pois, de se buscar um, senão ideal, ao menos não inadequado sistema de freios e contrapesos, que possa, derradeiramente, responder aos problemas postos, e não simplesmente, criar outros tantos, tendo-se em conta, sempre, que novos sistemas modais de pagamento parecem ser, também, uma realidade posta pela transformação virtual.

[1] Cf. SADDI, Jairo. Moeda digital soberana (Central Bank Digital Currency). In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 31 e ss. BAROISSI-FILHO, Milton; SZTAJN, Raquel. Natureza jurídica da moeda e os desafios da moeda virtual: a moeda virtual digital emitida pelos Bancos Centrais. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 177 e ss.

[2] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bitcoin e suas fronteiras penais: em busca do marco penal das criptomoedas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 168.

[3] Cf. as interessantes observações de NAJJARIAN, Ilene Patrícia de Noronha. O token fungível, infungível e a mobilização de riquezas. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 102 e ss.

[4] Cf., sob o aspecto tributário, GOMES, Daniel de Paiva; GOMES, Eduardo de Paiva. Controvérsias tributárias envolvendo NFT’s (Non-Fungible Tokens) e seu uso no setor artístico. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 75 e ss.

[5] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; CAMARGO, Beatriz Correa. Ocultar o oculto: apontamentos sobre a lavagem de dinheiro em tempos de criptomoedas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 174, p. 145 e s., 2021.

[6] Como já ponderaram Tavares Guerreiro e Buschinelli, "para o futuro, portanto, é necessário que haja uma equilibrada busca entre o objetivo de proteção dos investidores, conferida pelo arcabouço jurídico e regulatório existente, com a necessidade de promover a inovação financeira, mecanismo relevante para o contínuo desenvolvimento econômico nacional". GUERREIRO, José Alexandre Tavares; BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. ICOs (Initial Coin Offering) e a disciplina dos valores mobiliários. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 486.

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