Opinião

Implicações da nova LIA e suas repercussões na jurisprudência do TRF-1

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18 de abril de 2022, 15h17

A Lei nº 14.230, que entrou em vigor em 26 de outubro de 2021, promoveu profundas alterações na sistemática da improbidade administrativa, tanto de natureza material quanto procedimental.

Faz-se necessário, assim, que os tribunais se debrucem sobre o tema: a uma, para estabelecer se as novas disposições legais são aplicáveis, de imediato, às ações já em curso; a duas, para dirimir dúvidas ou conflitos relacionados à aplicação da lei.

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, pela unanimidade de seus membros, a repercussão geral da questão e irá decidir a respeito da "(ir)retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente" (Tema 1199, ARE 843.989).

Nesse espaço, voltaremos nosso olhar para recentes decisões do Tribunal Regional da 1ª Região, que revelam os primeiros passos dados pelo tribunal na aplicação da nova lei. Abordaremos o tema sob dois aspectos: (1) a aplicação imediata da Lei nº 14.230 e (2) o cabimento de agravo de instrumento contra decisão que recebe a petição inicial da ação de improbidade.

1. Aplicação imediata da Lei nº 14.230

De acordo com o § 4º, artigo 1º, da LIA, introduzido pela Lei 14.230, "aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador". Entre os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador, está o da retroatividade da lei mais benéfica (artigo 5º, XL, CF), que encontra fundamento, também, no artigo 9º do Pacto de San José da Costa Rica [1].

Portanto, por disposição constitucional, assim como por força do Pacto de San José da Costa Rica, as disposições da Lei nº 14.230, por se relacionarem diretamente ao Direito Administrativo Sancionador, devem retroagir — quando mais benéficas —, alcançando os fatos ocorridos sob a égide do sistema normativo anterior.

Esse entendimento tem reverberado no TRF da 1ª Região. Em 8/3/2022, a 3ª Turma, por unanimidade, concluiu pela aplicação imediata da nova lei e reformou sentença para julgar improcedente ação de improbidade, ante a ausência de dolo específico do agente. Na ocasião, a relatora ponderou que "não se pode perder de vista que a Lei 14.230/2021 trouxe diversas inovações à Lei 8.429/92, inovações essas que se aplicam aos processos pendentes" [2].

O mesmo posicionamento pode ser observado em decisões monocráticas e liminares, nas quais assentou-se que "tais inovações trazidas por esse novo diploma legal em virtude de sua natureza jurídica, de cunho sancionatório (tantas as normas de natureza material e processual), devem ser observadas retroativamente aos casos em curso, por ser mais benéfica que a Lei nº 8.429/92, à luz do artigo 5º, XL da Constituição Federal" [3] [4].

Há, contudo, manifestação em sentido contrário, isto é, que não reconhece, preliminarmente, a aplicação imediata da Lei nº 14.230 aos processos em curso: "não se pode simplesmente suspender a instrução processual em razão das alterações promovidas na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei 14.230/2021 […] a questão relativa à expressa previsão legal no sentido da aplicação ao sistema de improbidade administrativa dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º, da LIA, na redação da Lei 14.230/2021), bem como a potencial retroatividade de lei mais benéfica em processos em tramitação, são matérias que deverão ser aprofundadas pelas partes após a instrução processual" [5].

2. Cabimento de agravo de instrumento contra decisão que recebe a petição inicial da ação de improbidade

Como se sabe, a Lei nº 14.230 eliminou a fase prévia da ação de improbidade administrativa (artigo 17, §§ 7º a 10), que exigia, do magistrado, um juízo de admissibilidade da ação — que poderia ser rejeitada (§ 8º) ou recebida (§ 9º) — e que permitia, ao réu, interpor agravo de instrumento contra a decisão que recebesse a petição inicial (§ 10).

Nesse cenário, tem-se a seguinte situação: cabe agravo de instrumento contra decisão que recebe a petição inicial sob a égide da Lei nº 8.429, mas cuja intimação só foi realizada após a entrada em vigor da Lei nº 14.230?

A norma processual é aplicável imediatamente nos processos em curso. Nos termos da jurisprudência do STJ, trata-se da "Teoria do Isolamento dos Atos Processuais (tempus regit actum), que orienta as regras de direito intertemporal em âmbito processual, segundo a qual o juízo de regularidade do ato praticado deve ser efetivado em consonância com a lei vigente no momento de sua realização".

Todavia, o artigo 14 do CPC faz ressalva no sentido de que serão "respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada".

Assim, se quando proferida a decisão era cabível o agravo de instrumento, não se pode privar a parte prejudicada pelo provimento jurisdicional de apresentar o recurso, a despeito de a intimação ter se dado na vigência de lei nova.

Outrossim, a própria Lei nº 14.230 prevê que "das decisões interlocutórias caberá agravo de instrumento" (artigo 17, § 21), dispositivo que corrobora a necessidade de se conhecer dos agravos de instrumento interpostos.

Nesse sentido, o tribunal admitiu — em decisão monocrática e preliminar — agravo de instrumento interposto contra decisão que recebeu a petição inicial de ação de improbidade [6].

Conclusões

Em que pese o curto lapso temporal transcorrido desde a entrada em vigor da Lei 14.230, temos verificado um profundo empenho por parte do Poder Judiciário na consolidação de precedentes acerca da matéria.

Decisões judiciais reconhecendo a aplicação imediata da Lei nº 14.230 têm se multiplicado, sugerindo uma possível orientação sistêmica nesse sentido. Quanto ao tema, observamos que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça estão atentos e determinados a consolidar uma jurisprudência uniforme que permita ao agente público maior segurança jurídica quando da tomada de decisões e, de outro lado, maior previsibilidade ao particular com relação a possíveis riscos envolvidos em contratações com o setor público.

De igual modo, o reconhecimento quanto ao cabimento de agravo de instrumento contra decisão que, à luz da legislação anterior, recebeu a petição inicial da ação de improbidade, demonstra o compromisso em se resguardar as regras de direito intertemporal no campo processual. Com isso, percebemos o respeito aos direitos e garantias inerentes ao Direito Administrativo Sancionador.

Após anos de debate no meio acadêmico e discussões acaloradas perante os tribunais, a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador ao sistema de improbidade administrativa, expressamente estipulado no artigo 1º, § 4º, da LIA, demonstra, sobretudo, o respeito ao sistema de garantias previsto na Constituição Federal. O papel constitucional conferido aos tribunais superiores para a uniformização do entendimento jurisprudencial mostra-se absolutamente relevante nesse cenário, de modo a afastar os efeitos deletérios oriundos de decisões divergentes acerca desse tema.

[1] ARTIGO 9.

Princípio da Legalidade e da Retroatividade

Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.

[2] Apelação nº 1000889-55.2017.4.01.3304, Rel. Des. Federal Mônica Sifuentes, 3ª Turma, j. 8.3.2022.

[3] AI nº 1001339-40.2022.4.01.0000, Rel. Des. Federal Ney Bello, Rel. Convocado Juiz Federal Marllon Sousa, j. 16.3.2022.

[4] Veja, ainda, AI nº 1006907-37.2022.4.01.0000, Rel. Des. Federal Mônica Sifuentes, j. 16.3.2022.

[5] AI nº 1044596-52.2021.4.01.0000, Rel. Des. Federal Néviton Guedes, Rel. Convocado Juiz Federal Érico Rodrigo Freitas Pinheiro, j. 14.12.2021.


[6] AI nº 1001339-40.2022.4.01.0000, Rel. Des. Federal Ney Bello, Rel. Convocado Juiz Federal Marllon Sousa, j. 16.3.2022.


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  • Brave

    é advogado nas áreas de relações governamentais, tribunais superiores, solução de conflitos e Direito sancionador.

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    é mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), pós-graduada em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e advogada do Barbosa, Müssnich Aragão Advogados em Brasília.

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