Opinião

Diferenças da afetação por repercussão geral e por recursos repetitivos

Autores

  • Frederico Augusto Leopoldino Koehler

    é doutorando pela USP mestre e bacharel em Direito pela UFPE ex-juiz federal instrutor no STJ atualmente juiz federal do TRF-5ª Região professor adjunto da UFPE professor do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) formador e conteudista da Enfam membro e secretário-geral adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e membro e secretário-geral da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

18 de abril de 2022, 6h01

Não há dúvidas de que os precedentes qualificados ou vinculantes constituem um dos grandes temas do atual Código de Processo Civil [1]. Contudo, o aspecto da formação dos precedentes ainda não está bem sedimentado pela jurisprudência dos tribunais, a qual se depara com maior frequência com essa temática em momento posterior, de aplicação dos paradigmas nos casos concretos.

Entre os temas que merecem um estudo mais aprofundado está a diferença da afetação por repercussão geral e por recursos repetitivos. Em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que o regime jurídico de ambas seria idêntico.

As duas modalidades de afetação permitem a suspensão de processos em âmbito nacional. A eficácia vinculante e as formas de adequação da decisão recorrida aos precedentes também estão previstas de maneira unitária.

Contudo, existe uma diferença fundamental entre a afetação por repercussão geral e a que ocorre em recursos repetitivos.

Nos recursos repetitivos, o tema afetado não necessariamente está restrito a um recurso. A própria sistemática de afetação demonstra isso. É perfeitamente possível que parte do tema afetado esteja representado em um dos recursos paradigmas e outras partes em recursos diversos.

Evidentemente, a afetação deve estar representada nos paradigmas, mas não é imprescindível que um único recurso abarque todos os capítulos do precedente em formação.

Essa concepção pode ser abstraída do artigo 1.036, §1º, do CPC ao prever que a controvérsia pode estar em representada em sua amplitude em dois ou mais recursos representativos[2].

O artigo 1.037 é ainda mais expressivo nessa demonstração. A questão pode ser afetada de imediato, enquanto os recursos representativos podem ser buscados em momento posterior. Isso pode se dar, inclusive, com a requisição de recursos de tribunais de justiça e de tribunais regionais federais [3].

Além disso, é perfeitamente possível que um determinado tema fique afetado sem que haja recurso paradigma identificado até que se encontre aquele ou aqueles que melhor representem a referida controvérsia.

Aliás, foi o que ocorreu no tema 951 do Superior Tribunal de Justiça. A afetação fixou as seguintes controvérsias:

"(a) Análise da sistemática de cálculo da renda mensal inicial no período de vigência da Consolidação das Leis da Previdência Social de 1984; e
(b) A incidência dos critérios elencados no artigo 144 da Lei 8.213/91 e, consequentemente, a possibilidade de se mesclar as regras de cálculos ínsitas na legislação revogada com a nova aos benefícios concedidos no denominado período Buraco Negro."

Inicialmente, foram selecionados como paradigmas os Recursos Especiais nº 1.589.069/SP , 1.348.636/SP, 1.348.638/SP e 1.595.745/SP. Contudo, a 1ª Seção do STJ acolheu questão de ordem para desafetar os referidos recursos, a serem substituídos posteriormente por outros que abarcassem a tese afetada, o que ainda não ocorreu.

É possível, portanto, que, em situações extremas, existir tema afetado sem recurso vinculado — mesmo que temporariamente —, como aconteceu no caso narrado.

Na repercussão geral, o recorrente deverá demonstrar que o tema discutido no processo ultrapassa o interesse da demanda de um ponto de vista econômico, social, político ou jurídico.

O fato de a questão ter que ultrapassar o interesse da demanda diz respeito à relevância do tema, mas não permite que o julgador enfrente questões estranhas ao recurso específico em que houve o reconhecimento da repercussão geral.

Essa limitação ao objeto do recurso consiste em diferença essencial entre a afetação por recurso extraordinário e por recurso repetitivo, mas nem sempre é observada na prática.

Um exemplo de grande impacto de aparente não observância dessa diferença técnica entre as afetações ocorreu no Tema 1.199 do Supremo Tribunal Federal.

O tema afetado foi a (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/2021, a chamada Nova Lei de Improbidade Administrativa, nos seguintes termos:

"Definição de eventual (IR)RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente."

No entanto, o Agravo em Recurso Extraordinário nº 843.989 parece tratar apenas de parte dos temas da repercussão geral. Ele aborda a questão do dolo e a prescrição de maneira genérica, não tratando da prescrição intercorrente, uma das grandes novidades da nova legislação e que possui peculiaridades [4].

Frisa-se que, nesse caso, existe ainda um agravante. O tema afetado foi a retroatividade ou irretroatividade de uma lei de grande impacto, como é o caso da Lei nº 14.230/2021.

Existe nesse caso uma evidente ampliação do tema que é objeto do recurso. Isso fica claro quando se observa que, no julgamento da repercussão geral, utiliza-se a expressão "em especial" com nítida finalidade de não restrição aos dois temas objeto do recurso. O intuito parece ser que o STF, ao julgar o mérito do tema afetado em repercussão geral, possa avançar sobre qualquer discussão que toque na temática da (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/2021, não se limitando aos pontos objeto do recurso extraordinário, que, como dito, se limitam à questão do dolo e da prescrição — aqui se restringindo à alegação de que "imprescritibilidade prevista no artigo 37, § 5º, da CF/1988 refere-se a danos decorrentes de atos de improbidade administrativa, e não a ilícito civil" (trecho do relatório do ministro Alexandre de Moraes no voto em que reconhece a repercussão geral da matéria constitucional no ARE nº 843.989 RG/PR).

Esse procedimento, no entanto, somente é possível para a sistemática de recursos repetitivos, e desde que selecionados outros recursos que abrangem toda a temática cuja afetação se propõe.

Essa é a razão de o legislador do Código de Processo Civil ter previsto a afetação por repercussão geral e a afetação por recurso extraordinário repetitivo no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Caso existisse identidade de tratamento, bastaria a previsão normativa de uma única técnica de afetação.

Somente será possível que o tema afetado supere o objeto de um recurso específico na modalidade de afetação de recursos repetitivos. Isso ocorrerá quando se realize a seleção de pelo menos dois recursos paradigmas, podendo ser indicados inúmeros recursos, sendo que cada um deles pode tratar de apenas parte do objeto da afetação.

Por conseguinte, é imprescindível a distinção entre a afetação por reconhecimento de repercussão geral e que se dá em recursos repetitivos. Enquanto no caso dos recursos repetitivos é possível que o tema afetado seja mais amplo que um recurso paradigma específico, no caso de reconhecimento de repercussão geral o contorno da afetação deve ser restrito ao objeto do recurso.


[1] Sobre o tema dos precedentes, vide: MONNERAT, Fábio Victor. Súmulas e precedentes qualificados: técnicas de formação e aplicação. São Paulo: Saraiva, 2019; PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3ª ed.. Salvador: Juspodivm, 2018; MACEDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 3ª ed.. Salvador: Juspodivm, 2018.

[2] Artigo 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.
§ 1º. O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.

[3] Artigo 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036, proferirá decisão de afetação, na qual:
I – identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento;
II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional;
III – poderá requisitar aos presidentes ou aos vice-presidentes dos tribunais de justiça ou dos tribunais regionais federais a remessa de um recurso representativo da controvérsia.

[4] Sobre o tema da prescrição na Nova LIA, vide nosso texto publicado nesse portal: KOEHLER, Frederico Leopoldino; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Regime de prescrição na nova Lei de Improbidade Administrativa. Acesso online por https://www.conjur.com.br/2022-fev-09/koehler-flumignan-regime-prescricao-lei-improbidade

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    é juiz federal, ex-juiz federal instrutor no STJ, doutorando pela USP, mestre pela UFPE, professor da UFPE e do mestrado da Enfam, membro e diretor do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

  • Brave

    é assessor de ministro do STJ, procurador do estado de Pernambuco, doutor e mestre pela USP, professor da UPE e da Asces/Unita, professor do mestrado profissional do Cers e membro da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

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