Opinião

Reflexões sobre obter dictum do ministro Barroso sobre fim do voto de qualidade

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17 de abril de 2022, 6h32

Está em curso no Supremo Tribunal Federal o julgamento de três ações diretas de inconstitucionalidade que analisam a extinção (parcial) do quase centenário instituto do voto de qualidade no Carf, maior tribunal administrativo fiscal do país, para determinar que, havendo empate no julgamento, ao invés de prevalecer o voto do presidente do colegiado, adotar-se-á a solução favorável ao contribuinte (ADI  6.399, 6.403 e 6.415). A modificação foi introduzida pela Lei 13.988/2020, que incluiu o artigo 19-E na Lei 10.522/2002.

Passadas três assentadas do julgamento — duas virtuais e uma presencial — o veredito se encaminha no sentido da constitucionalidade, formal e material, do novo modelo. Por ora, já se manifestaram pela constitucionalidade material os ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. O feito agora está com vista ao ministro Nunes Marques.

Curiosamente, o que mais chamou a atenção no debate presencial não foi o mérito das ADI, mas a ressalva contida no voto-vista do ministro Roberto Barroso acerca da possibilidade de ajuizamento de ação pela PGFN "para restabelecer o lançamento tributário" nos casos em que houver empate no julgamento do Carf.

De modo geral, a sensação no plenário foi de perplexidade e aversão à ideia proposta por Barroso. Falou-se em venire contra factum proprium, in dubio pro contribuinte, redução de litigiosidade, arbitragem. Tudo a corroborar uma suposta repulsa natural do Direito à possibilidade de ajuizamento de ação, pela Fazenda Nacional, em face de decisão do Carf.

Se por um lado os argumentos contrários à hipótese sobejaram no debate, o contraponto do outro lado foi feito de forma um tanto contida pelo ministro Barroso, apesar da densidade dos fundamentos que sintetizou em poucos parágrafos de seu voto-vista.

Nesse contexto, se mostra pertinente esmiuçar um pouco mais a ideia do contraponto, como forma de estimular uma adequada reflexão sobre as complexidades que circundam a questão para além dos aforismos jurídicos.

Por primeiro, e isto está posto de forma clara no voto-vista do ministro Barroso, não há na hipótese um venire contra factum proprium. Isto porque, no julgamento resolvido sob a batuta do artigo 19-E da Lei 10.522/2002, o único "factum proprium" que existe por parte da Administração Tributária é o lançamento fiscal.

Explica-se: antes do artigo 19-E o critério de desempate no processo administrativo fiscal era o critério (juízo) do presidente do colegiado, e poderia ser favorável ou contrário à pretensão do contribuinte. A partir do 19-E não há mais critério (juízo) para desempate, pois não há previsão de um voto prevalecente. O empate quanto à exigência do crédito tributário passa a se revestir do caráter de uma não-decisão: a ausência de um veredito, cuja consequência normativa é definida em lei, não só prescindindo, mas também excluindo, qualquer pronunciamento de mérito, em sentido material, do órgão julgador.

Um exemplo singelo mostra que não se trata de sutileza conceitual: sabe-se que a decisão que considera determinado tipo de receita como não-operacional pode ser favorável para um contribuinte que discute a incidência da Cofins cumulativa, mas desfavorável para um contribuinte que discute a inclusão dessa receita no coeficiente do lucro presumido. Se estes dois casos forem julgados por um mesmo colegiado do Carf, no mesmo dia, e houver empate, o órgão terá que lavrar dois acórdãos "resolvendo favoravelmente ao contribuinte": um afirmando que a receita é operacional e outro dizendo ser não-operacional.

Isto demonstra que ao "resolver favoravelmente ao contribuinte", como impõe o artigo 19-E, o Carf não emana qualquer tipo de decisão quanto à questão submetida a julgamento, como bem captou o voto do ministro Barroso e como impõe o princípio da não-contradição, basilar de qualquer sistema lógico. O acórdão lavrado não pode ser, materialmente, considerado uma definição da Administração sobre o mérito da questão, mas apenas um instrumento de formalização da consequência normativa determinada pela nova lei.

Por consequência, se a União postular em juízo a confirmação do lançamento tributário, não haverá ofensa ao princípio nemo potest venire contra factum proprium, pois a tentativa do Carf de chegar a uma conclusão quanto à procedência ou improcedência do lançamento, nos dois casos, restou frustrada sem que haja qualquer decisão de mérito, em sentido material.

Na prática, nos parece que o lançamento tributário sob a vigência do artigo 19-E, uma vez impugnado, passou a ser gravado de uma excêntrica presunção de ilegitimidade: em não sendo confirmado pelas instâncias julgadoras  mesmo que tampouco seja rejeitado  o ato administrativo do lançamento não prevalece.

Daí porque subsiste o interesse de agir da União, consistente em acessar o Poder Judiciário para confirmar a legalidade e a veracidade das imputações feitas pelo lançamento fiscal realizado nos termos do artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN).

A pretensão estatal também não seria obstada por suposta confusão processual entre autor e réu na demanda a ser processada. A ação na hipótese, salvo melhor juízo, seria declaratória da exigibilidade do crédito tributário constituído pelo lançamento, ou algo que o valha, e não de anulação do acórdão do Carf  uma mera ficção jurídica, como apontou Barroso.

Evidentemente, possibilidade de ajuizamento não significa obrigatoriedade de ajuizamento, e cada caso deverá ser criteriosamente avaliado quanto ao risco de sucumbência e à importância da exação para a Fazenda Nacional (em concreto e em tese), não podendo tal possibilidade ser vista como porta aberta à litigância irresponsável e desmedida.

Claro que restam ainda outros aspectos relevantes a serem debatidos, como prescrição e decadência, a inexistência de um princípio explícito in dubio pro contribuinte no sistema brasileiro (a não ser para penalidades), bem como a própria expressão material do vocábulo "dúvida" inserto no artigo 112 do CTN.

De toda forma, nos quer parecer que o obter dictum do ministro Roberto Barroso na ADI 6.933 não traduz qualquer extravagância.

Pelo contrário, a possibilidade de ajuizamento na hipótese aventada, além de não encontrar óbices de ordem legal ou lógica, tem esteio em princípios de índole constitucional, como a equidade, a paridade de armas e a supremacia do interesse público.  

Diferentemente do que sugere o estereótipo, tão antigo quanto impreciso, de que a Fazenda Nacional representa apenas o chamado interesse público secundário, garantir a tutela do Poder Judiciário quando não se formou um veredito no contencioso administrativo sobre a legalidade da exação significa prestigiar os interesses de uma coletividade de contribuintes invisíveis: aqueles que não integram o processo, mas que têm a justa expectativa e o interesse legítimo de que a tributação alheia seja correta, equânime e reflita, tanto quanto possível dentro das margens interpretativas que a lei permite, a justa distribuição do peso do Estado entre todos.

Por fim, vale lembrar, como realçou a ministra Cármen Lúcia durante sua manifestação de voto, que a questão acerca do ajuizamento não foi objeto de pedido nas ações diretas e, portanto, trata-se de mero obter dictum, que não integrará nem a provável declaração de constitucionalidade da norma, nem tampouco a ratio decidendi do julgado. Não obstante, os Ministros se debruçaram sobre a ideia, de modo que aquilo que já foi dito, bem como aquilo que poderá ser trazido pelos que aguardam votar, terá importante caráter persuasivo sobre quem quer que se manifeste sobre o assunto.

Aguardemos o próximo capítulo.

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