Embargos culturais

Reflexão sobre o momento em que o Quixote foi armado cavaleiro

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

17 de abril de 2022, 8h00

Há parte de nós mesmos que não compreendemos até que lermos o Quixote. Com essa forte imagem o crítico norte-americano Harold Bloom nos lembra a humanidade do cavaleiro da triste figura. Esse lado humano do Quixote consistia justamente na tênue divisão que fazia entre realidade e fantasia. Quem de nós não fantasiamos o tempo todo? Como seria a realidade sem algum delírio que nos acene com alguma esperança? Não há nada, absolutamente nada, que nos impeça de sonhar.

Spacca
Ainda na estalagem onde foi acolhido no início de suas andanças o Quixote viveu sua graciosa cerimônia de coroação. Nessa consagração, o Quixote, conduzido pela imaginação de Cervantes, atravessou o portal que o separa dos mortais. Antes, jantou, com frugalidade, como sempre. Implorou ao dono da venda que o ordenasse cavaleiro, pela noite. O estalajadeiro, cuja suspeita sobre a loucura da triste figura passava a ser uma certeza, aderiu à loucura. Não há como se contradizer os insanos. É uma insanidade. O dono da venda aproveitou para afirmar que já foi cavaleiro, que andou por muitos lugares, e citou todos. Os tradutores e comentaristas, entre eles Sérgio Molina, afirmam que todos esses lugares que o estalajadeiro mencionou eram na verdade lugares de má fama, na fantasia topográfica da Espanha de fins do século XVI.

Prático, o dono da venda perguntou ao Quixote se ele trazia dinheiro. O quase cavaleiro respondeu que não. Afirmou que sinceramente não se lembrava de ter lido nos tomos de cavalaria se cavaleiros andantes carregassem o vil metal. Sentindo-se o padrinho do Quixote, o dono da estalagem observou que era necessário que se carregasse dinheiro, camisas limpas e algum unguento, para socorrer feridas que ocorressem. Tentou colocar um limite na fábula que o Quixote vivia.

O Quixote deixou então suas armas sob uma pia. Dava voltas. Em vigília, aguardava a passagem da noite. Para abastecer-se de água um peão que por lá passava retirou as armas do Quixote. Enfurecido, Quixote atacou o intruso, com violência, em desagravo, com a mente em Dulcinéia. Não admitiu tamanha ousadia por parte do peão. Revidou. As pessoas que lá estavam atiraram pedras no cavaleiro que tomavam por maluco. A saraivada só terminou com a intervenção do estalajadeiro. José Veríssimo, um precursor da crítica literária moderna no Brasil, enfatizava que o Quixote era o protetor da fraqueza humilde contra a violência forte.

Realizou-se a cerimônia. O estalajadeiro segurava um livro de registro de vendas, que tomaram por um livro sagrado. Como mandava o ritual, golpeou o Quixote. Duas mulheres (Tolosa e Moleira), respectivamente, providenciaram a espada e as esporas, que o Quixote já trazia consigo. Agradecido, o cavaleiro determinou que a partir de então as mulheres tratassem seus pais por "Dom", e exigissem que fossem tratadas por "Donas". Estendia a elas privilégios de nobreza. Percebe-se a grandeza dessas mulheres, no acolhimento dos delírios daquele homem de quem todos riam. Chama a atenção no Quixote, lembra-nos San Tiago Dantas, a repercussão múltipla que suas aventuras projetavam nos demais personagens da narrativa. O Quixote não fala para si. Não há monólogos. É sociável, aberto, convive com todos, ainda que nos limites de sua suposta insensatez.

Armado cavaleiro, o Quixote deixou a estalagem em busca de aventuras. O dono do lugar nada lhe cobrou. Sentia-se aliviado com a partida daquela estranha figura. Nas palavras de Unamuno, o Quixote estava preparado para defender os serviçais e os humildes. Uma opção certa, humana, de uma espécie humana extinta, ou quase extinta.

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