Observatório constitucional

O momento político no Brasil é propício para a adoção do semipresidencialismo?

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16 de abril de 2022, 8h00

É preciso questionar se este ano de 2022 é realmente oportuno para a instauração de um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados destinado a elaborar um projeto de reforma constitucional para a adoção do sistema semipresidencialista no Brasil2. O fato de ser um ano de eleições gerais no país já enseja motivo razoável para se colocar em dúvida a capacidade de desenvolvimento profícuo de um debate que tem por objeto novos desenhos constitucionais com o fim de alterar o próprio funcionamento do sistema político brasileiro. Não obstante, o problema maior vem da constatação de que, ante o persistente quadro de fragmentação partidária, a implementação de qualquer outro sistema de governo — parlamentarista, semipresidencialista ou suas possíveis variações institucionais — estará fadada ao fracasso.

É certo que o presidencialismo brasileiro é disfuncional e precisa ser reformado. E esse diagnóstico, além de não ser novidade, há muito é aplicável para a maioria dos presidencialismos latino-americanos, que padecem de problemas muito semelhantes ao brasileiro, em vários casos também decorrentes de um sistema partidário desorganizado e caracterizado historicamente pelo elevado grau de fragmentação.

Mas a importância da reforma constitucional de um sistema de governo traz consigo a necessidade de que o debate público sobre os melhores contornos do novo desenho das instituições políticas aconteça em momento político propício para a sua implementação, o que tende a não ocorrer quando os sistemas eleitoral e partidário são também disfuncionais.

A ciência política há muito constatou que sistemas partidários caracterizados historicamente pela alta fragmentação (como é o caso brasileiro) tendem a tornar muito difícil e complexo o funcionamento de qualquer sistema de governo, seja presidencialista ou parlamentarista, em razão do elevado custo que impõem aos governos para a formação de coalizões necessárias para a governabilidade.

No Brasil de hoje, como se sabe, persiste o antigo quadro de hiperfragmentação partidária, com mais de vinte partidos com representação parlamentar no Congresso Nacional, um problema que possui raízes na história da política partidária brasileira e para o qual, portanto, não existem soluções de curto ou médio prazo, cabendo atualmente apenas esperar o resultado prático da implementação de importantes e recentes reformas no sistema eleitoral, como a que instituiu a denominada cláusula de barreira.

Como ainda não é possível vislumbrar o impacto no sistema partidário das mudanças no sistema eleitoral (que só serão implementadas nas eleições deste ano de 2022), é bastante sensato perceber que neste ano eleitoral não existem condições propícias para um debate mais aprofundado sobre a reforma do sistema de governo. Com um quadro de elevada fragmentação partidária, qualquer sistema de governo padecerá dos mesmos problemas de instabilidade governamental decorrentes da dificuldade para formação de coalizões.

Como bem diagnosticou Sérgio Abranches em uma de suas últimas obras sobre o assunto, “houvesse ganhado o parlamentarismo, teríamos um parlamentarismo de coalizão”3. Portanto, não seria demais afirmar neste momento que, tomada a decisão legislativa pela adoção do semipresidencialismo e mantidos os atuais sistemas eleitoral e partidário, tudo indica que apena teríamos no Brasil um “semipresidencialismo de coalizão”, com todos os conhecidos problemas de governabilidade, que provavelmente seriam agravados pela instabilidade política que um sistema com esse tipo de desenho pode gerar na prática.

Na verdade, a combinação de um sistema de governo semipresidencialista com um sistema eleitoral proporcional e um sistema partidário fragmentado pode ser explosiva para todo o sistema político. Essa é uma lição dada pela história constitucional de outros sistemas políticos, cujo melhor exemplo está na República de Weimar, onde um sistema político com essas mesmas características – semipresidencialismo com sistema eleitoral proporcional e fragmentação partidária – na prática levou à paralisia do parlamento, à ascensão de um governo autoritário e ao colapso do próprio regime democrático.

A Constituição de Weimar estruturou e organizou os poderes da República em um arranjo constitucional que tinha o objetivo de estabelecer o equilíbrio entre o executivo e o parlamento, com um desenho que mesclava dois modelos republicanos conhecidos: o norte-americano, em que o Presidente chefia o governo com o auxílio de ministros que respondem apenas a ele; e o francês (da terceira república), em que o Presidente representa uma figura simbólica e o governo depende do parlamento. A República de Weimar apresentou uma fórmula constitucional de compromisso entre essas duas opções4, de modo que, por um lado, criou um sistema de governo em que o poder executivo dependia da confiança do parlamento (Reichstag); e, por outro lado, fortaleceu a figura do Presidente da República, dotado de legitimidade democrática eleitoral (eleito por sufrágio) e detentor do poder de nomear o chefe de governo e demais membros do executivo, além de poderes extraordinários para assegurar a ordem e a segurança públicas (previstos no famoso artigo 48 da Constituição de Weimar). Na verdade, ainda que com características dos sistemas parlamentaristas, o que aquela Constituição desenhou foi um sistema de caráter semipresidencialista.

No entanto, ao mesmo tempo em que confeccionou uma estrutura de pretenso equilíbrio entre os poderes, a Constituição de Weimar modelou um típico sistema proporcional para as eleições dos membros do parlamento, com a intenção de incentivar a formação de composições parlamentares plurais, representativas das mais diversas ideologias e correntes políticas. Mas o resultado da aplicação desse sistema eleitoral proporcional foi a proliferação de partidos com representação parlamentar e, como consequência da excessiva fragmentação partidária, a formação de um parlamento atomizado5, incapaz de formar maiorias estáveis suficientes para a legislação e o governo duradouros.

A República de Weimar conviveu com uma sucessão de parlamentos e governos. Nenhum parlamento chegou a finalizar um período legislativo completo. A legislatura deveria ser de quatro anos, mas no período entre 1920 e 1933, o Reichstag foi eleito oito vezes. Apenas o primeiro e o terceiro Reichstag conseguiram manter-se quase os quatro anos. O quarto, eleito em 1928, permaneceu algo mais de dois anos, e o eleito em 1930 não alcançou dois anos de funcionamento. E os demais foram ainda mais efêmeros: o de 1924 manteve-se apenas por alguns meses, assim como o sexto e o sétimo, eleitos em 31 de julho e em 6 de novembro de 1932, respectivamente. E essa instabilidade dos parlamentos também repercutiu na formação parlamentar (por coalizão) dos governos. Entre 1919 e 1933, foram criados ao menos vinte governos diferentes6.

Essa constante instabilidade conformou um parlamento impotente, que aos poucos foi perdendo poder político para o executivo7. Assim, ao invés do equilíbrio entre executivo e parlamento desejado pela estrutura formal da Constituição, o que se assistiu ao longo da década de 1920 foi a uma gradual transferência de poder político para o executivo e a ascensão do Presidente como figura central do sistema político de governo da República de Weimar. Como constatou Horst Möller, “a República de Weimar adoeceu da silenciosa mudança constitucional de um sistema semiparlamentarista a um sistema presidencialista”8. A combinação constitucional dos artigos 25 (poder presidencial de dissolução do parlamento) e 48 (poderes presidenciais extraordinários para situações de crise) com o artigo 53 (poder de nomeação e exoneração do chefe de governo e ministros), moldou uma figura presidencial com plenos poderes sobre o parlamento e o governo, que passaram a depender constantemente de sua autoridade política.

No início dos anos 1930, as principais decisões políticas já se tomavam mediante edição de decretos por parte do Presidente (em 1930 foram promulgados 5 decretos; em 1931 foram 44; e em 1932, 60), retirando o poder legislativo das mãos do parlamento e instaurando um modelo governamental que ficou conhecido como o Diktaturgewalt (poder ditatorial), que foi apoiado pela grande maioria dos políticos e da sociedade, por aglutinar qualidades como a liderança, a autoridade e a estabilidade, naquele momento necessárias ante os problemas vivenciados no parlamento. O crescimento dos poderes presidenciais atingiu seu ponto culminante em 30 de janeiro de 1933, quando o Presidente Paul von Hindenburg nomeou aquele que seria o último chefe de governo da República de Weimar: Adolf Hitler.

A história constitucional da República de Weimar assim nos ensina que a implementação de um sistema semipresidencialista com um sistema eleitoral proporcional e um sistema partidário fragmentado pode ser desastrosa para a democracia. É claro que Brasília não é Weimar e que o atual contexto histórico, político e institucional é completamente diferente daquele europeu da década de 1920. Mas as lições da história são sempre sábias e precisam ser observadas, pelo menos como um sinal de alerta.

No Brasil, o sistema eleitoral proporcional, muito semelhante ao adotado na Constituição de Weimar, continua sendo adotado com o objetivo de incentivar o pluralismo político, mas permanece gerando um sistema partidário hiperfragmentado, que torna extremamente complexa e difícil a tarefa imposta ao presidente de construção de amplas coalizões parlamentares necessárias para o governo. E aqui cabe lembrar a advertência que o conhecido cientista político Giovanni Sartori fez ao afirmar que “em comparação com os partidos brasileiros, os alemães durante a República de Weimar foram partidos modelo”9.

O cerne do problema do sistema político no Brasil está no sistema de partidos e não no sistema de governo. No peculiar presidencialismo de coalizão brasileiro, o problema reside na coalizão e não no presidencialismo. Portanto, os esforços institucionais para a reforma constitucional do sistema político deveriam primeiro se concentrar nos partidos políticos e apenas em momento posterior focar o presidencialismo.

As eleições gerais de 2022 prometem impactar profundamente o sistema partidário brasileiro, não apenas pela implementação da cláusula de barreira, mas também pela formação das novas (e ainda desconhecidas) federações partidárias. E ainda é difícil estabelecer qualquer prognóstico mais seguro sobre o efetivo impacto dessas mudanças no quadro partidário brasileiro.

Nessa conjuntura política própria de um ano eleitoral conturbado e imprevisível, é prematuro qualquer esforço de elaboração de um projeto de reforma constitucional do sistema de governo no Brasil.

Estudos e pesquisas sobre os sistemas políticos sempre são importantes para o aprimoramento de uma democracia. E é com esse objetivo que o grupo de trabalho formado na Câmara dos Deputados pode dar uma valiosa contribuição para o aperfeiçoamento do regime democrático.

Em vez de se engajar na elaboração de um projeto de reforma constitucional do sistema de governo, o grupo de parlamentares e juristas poderá estudar as lições da história dos sistemas políticos e tentar vislumbrar as possíveis consequências político-institucionais de arranjos constitucionais que combinam o sistema eleitoral proporcional com um sistema de governo com as características do semipresidencialismo. E, após as eleições gerais de 2022, talvez seja possível avistar um horizonte mais claro e definido do quadro partidário que possa viabilizar um momento político mais propício para se trabalhar em possíveis reformas do presidencialismo no Brasil.


2 Ato do Presidente da Câmara dos Deputados, de 16 de março de 2022, que institui grupo de trabalho destinado a analisar e debater temas relacionados ao sistema de governo semipresidencialista.

3 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras; 2018, p. 14.

4 VAN CAENEGEM, R. C. Uma introdução histórica ao Direito Constitucional ocidental. Trad. Alexandre Vaz Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 2009, p. 326.

5 ABRAHAM, David. The collapse of the Weimar Republic: political economy and crisis. Princeton: Princeton University Press; 1981, p. 301-312.

6 MÖLLER, Horst. La República de Weimar: una democracia inacabada. Trad. Paula Sánchez. Madrid: Antonio Machado Libros; 2006, posição 3389 (livro eletrônico).

7 Como observou Horst Möller, “si se compara la duración de los cargos de los presidentes, de los gobiernos y de los períodos de legislatura del Reichstag, parece evidente que los presidentes representaban el único factor estable dentro de ese triángulo de poder. La plenitud de poderes constitucionales del jefe de estado, que conllevaba el fortalecimiento fáctico de su posición, se conseguía a costa de la debilidad de los otros dos altos órganos constitucionales”. MÖLLER, Horst. La República de Weimar: una democracia inacabada. Trad. Paula Sánchez. Madrid: Antonio Machado Libros; 2006, posição 3410 (livro eletrônico).

8 MÖLLER, Horst. La República de Weimar: una democracia inacabada. Trad. Paula Sánchez. Madrid: Antonio Machado Libros; 2006, posição 3421 (livro eletrônico).

 

9 SARTORI, Giovanni. Ingeniería constitucional comparada: una investigación de estructuras, incentivos y resultados. México: Fondo de Cultura Económica; 2005, p. 112.

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