Opinião

Fatos provados no âmbito fiscal são insuficientes para a persecução penal

Autor

  • Marcelo Vinicius Vieira

    é advogado criminalista sócio do Reale Advogados Associados mestre em Direito Processual Penal (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP) e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu (Universidade de Coimbra).

16 de abril de 2022, 15h19

Recentemente foi noticiada na imprensa importante decisão que destacou a necessidade de análise cautelosa das comunicações de inscrição em dívida ativa de créditos fiscais para apuração de eventual configuração de crime contra a ordem tributária por parte das autoridades criminais [1]. Na ocasião, o que se consignou foi a necessidade de haver indícios mínimos da intenção de fraudar ou suprimir tributos (dolo) na representação fiscal para fins penais para iniciar a persecução penal [2].

Mas nada obstante a inequívoca relevância de tal posicionamento, uma outra questão intimamente relacionada à interação entre o procedimento administrativo-fiscal e o processo penal ainda permanece carente do devido reconhecimento: a diferença entre os standards probatórios e o ônus objetivo da prova em um processo e outro.

O tema dos standards probatórios já foi prévia e irretocavelmente abordado nesta revista por eminentes juristas [3], mas, apenas para fins de coerência desse texto, faz-se oportuno (re)apresentar breve conceituação sobre o assunto. Em curtas linhas, os standards probatórios representam critérios que estabelecem o grau de confirmação necessário para que o julgador considere determinado enunciado fático como provado [4].

Trata-se, pois, de parâmetros mínimos (mensurados em termos de probabilidade) a serem superados para se julgar um "fato" — isto é, a descrição de um fato — como comprovado em determinado processo.

Como exemplos de standards probatórios, tradicionalmente é apontada a existência de quatro modelos, os quais podem ser definidos em escala crescente de rigor da seguinte forma: o da prova preponderante, o da prova clara e convincente, o da prova além de qualquer dúvida razoável e o da prova incompatível com qualquer hipótese de inocência [5].

Nesse esteio, uma hipótese fática (que se repute) comprovada de acordo com o standard probatório da prova incompatível com qualquer hipótese de inocência possui maior grau de confirmação do que aquela comprovada conforme o standard da prova preponderante. Assim, o "fato" possui maior probabilidade de ter efetivamente ocorrido se comprovado conforme o primeiro standard probatório em comparação com o segundo.

Em paralelo, intrinsecamente ligado aos standards probatórios se encontra o conceito atribuído ao chamado ônus objetivo da prova, que nada mais é que uma regra de julgamento para o caso de não superação do grau de prova necessário [6] (ou seja, do standard probatório).

Dessarte, caso ao final do processo um fato relevante para o julgamento não tenha sido suficientemente comprovado (ou seja, não tenha superado o standard probatório aplicável ao caso), o ônus objetivo da prova imporá ao julgador como ele deve julgar (regra de julgamento).

Exemplifica-se: a regra de julgamento (ônus objetivo da prova) no processo civil é extraída do artigo 373, do Código de Processo Civil. Assim, se o autor não superar o standard probatório para a demonstração de fato constitutivo, a demanda será julgada em favor do réu. Do contrário, se o autor superar o grau de prova exigido para sustentar fato constitutivo e o réu não transpor o standard probatório para amparar fato impeditivo, modificativo ou extintivo, deverá ser dada procedência à ação.

No processo penal, por sua vez, o ônus objetivo da prova é regido pelo in dubio pro reo, como manifestação da presunção da inocência. Assim, a não superação do standard probatório há de favorecer o acusado [7].

Ocorre que, para além das diferenças no ônus objetivo da prova, cada espécie de processo (civil, penal, administrativo, etc.) também se particulariza por se aplicarem standards probatórios diversos.

Nesse contexto, Humberto Ávila leciona que os fatores explicativos para a definição de diferentes standards probatórios em processos distintos são: (1) a natureza da infração imputada, (2) a gravidade das sanções a serem eventualmente aplicadas, (3) a natureza das alegações a serem provadas, (4) a amplitude de competências de que dispõem os envolvidos para investigar e (5) a complexidade das hipóteses a serem comprovadas [8].

Consequentemente, a se pautar por tais critérios, salta aos olhos que a comprovação de um ilícito penal evidentemente demanda um standard probatório mais elevado que a prova de um ilícito fiscal — leia-se, o fato a ser comprovado no processo penal demanda maior grau de confirmação que o fato a ser comprovado no processo administrativo-fiscal.

Afinal, (1) a ilicitude penal é mais sensível que a de natureza fiscal, (2) a privação ou a restrição da liberdade é mais severa que a multa, (3) os fatos a serem provados no processo penal são mais graves que aqueles que criam obrigações tributárias e (4) todos os meios de obtenção de prova previstos em lei (inclusive os mais invasivos) são autorizados na persecução penal, mas não no âmbito fiscal. Já quanto ao quinto critério identificado, não se olvida que fatos geradores de obrigações tributárias podem ser igualmente ou até mais complexos que os fatos típicos, ilícitos e culpáveis. Frente aos demais fatores, porém, isso não parece o suficiente para afastar a imperiosidade de se aplicar um standard probatório mais elevado no processo penal — e não só em comparação ao procedimento fiscal, aliás, mas em relação a todos as demais espécies processuais.

Diante de tal quadro, conclui-se que um determinado fato pode ser considerado como suficientemente comprovado no procedimento administrativo-fiscal, mas não no âmbito penal. Em outros termos, determinada(s) prova(s) colhida(s) no âmbito administrativo pode(m) superar o standard probatório aplicável à seara fiscal — mais baixo —, mas não atender ao standard probatório do processo penal — mais alto.

Por outro lado, também o ônus objetivo da prova difere no processo penal e no procedimento administrativo-fiscal. Deveras, é assente que no segundo são previstas diversas espécies de presunções que favorecem a administração, isto é, hipóteses em que a lei permite ao Fisco concluir pela ocorrência de um fato que não foi diretamente provado. Em tais ocasiões, há uma inversão do ônus (subjetivo) da prova, de modo que a regra de julgamento (ônus objetivo) se aplica em desfavor do contribuinte [9].

Desse modo, o juízo emanado no procedimento administrativo-fiscal de que determinado fato ocorreu pode ser mera decorrência da regra de julgamento decorrente da inversão do ônus da prova, quando o contribuinte não produzir uma prova que afaste certa presunção legal. Em tal hipótese, porém, o "fato comprovado" na seara fiscal certamente não atenderia ao standard probatório exigido no âmbito penal.

Exemplifica-se. O artigo 42 da Lei n. 9.430/96 prevê que, caso o contribuinte seja intimado e não comprove a origem de valores creditados em conta bancária mediante documentação hábil e idônea, caracteriza-se uma "omissão de receita ou de rendimento". Trata-se, evidentemente, de uma presunção legal, que autoriza uma conclusão — o contribuinte omitiu receita ou rendimento — sem haver prova direta dessa conduta, mas com base em regra de julgamento decorrente da inversão do ônus da prova.

E tal previsão, note-se, baseia-se em inferência pautada em máxima de experiência, qual seja, a de que aquele que deixa de comprovar a origem de valores o faz porque se trata de rendimento ou renda — o que, à toda evidência, trata-se de conclusão meramente possível (baixa ou média probabilidade), mas não necessária (alta probabilidade).

E conforme a previsão do artigo 1º, inciso I, da Lei n. 8.137/90, essa mesma conduta — omitir informação das autoridades fazendárias — em tese também pode configurar ilícito penal se implicar supressão ou redução de imposto (no exemplo em questão, seria possível que se tratasse da redução da base de cálculo para o recolhimento do Imposto de Renda).

Ocorre que, se a hipótese fática em questão — "houve omissão de receita ou rendimento" — atende aos critérios de comprovação no âmbito administrativo-fiscal, o mesmo certamente não se dá na seara penal.

Isso porque, como visto, no procedimento administrativo-fiscal se admite como verdadeira a conclusão "houve omissão de receita ou rendimento" sem haver nenhuma prova que demonstre, diretamente e com alta probabilidade, que o contribuinte deixou de informar receita ou rendimento. Como visto, essa conclusão é uma decorrência (legal) do fato de que o contribuinte deixou de comprovar a origem dos valores — resultado de regra de julgamento decorrente da inversão do ônus da prova.

Em face desse cenário, é forçoso reconhecer que deixar de comprovar a origem de valores creditados em conta bancária (fato provado) não autoriza conclusão segura, com alto grau de probabilidade, de que houve omissão em informar renda às autoridades fazendárias. Assim, essa conclusão fática atende o standard probatório do procedimento administrativo-fiscal, mas não o do processo penal.

Logo, em circunstâncias que tais, a persecução penal da eventual prática de crime contra a ordem tributária necessariamente demanda a busca e coleta de provas que aumentem o grau de probabilidade de sua ocorrência, não bastando o juízo definitivo da autoridade fiscal.

E mesmo em hipóteses em que não se verifiquem decisões administrativas proferidas com base em presunções, ainda assim essa análise probatória aprofundada pode se revelar necessária. Isso porque, como antecipado, o grau de suficiência de provas (standard probatório) do âmbito administrativo-fiscal é consideravelmente menor que o do penal.

É inequívoco, pois, que nem sempre o "fato" que se considera provado no procedimento administrativo-fiscal pode ser considerado provado na persecução penal. Por consequência, no curso da investigação criminal, a coleta de elementos probatórios sobre "fatos" já considerados provados no âmbito fiscal pode ser mesmo imprescindível, de modo a atender às exigências probatórias próprias do processo penal.

E tais considerações se revelam oportunas porque, na praxe forense, é de todo comum observar alguma relutância (de boa-fé) das autoridades atuantes na fase investigativa (Polícia e Ministério Público) em apreciar questões fático-probatórias relacionadas ao objeto de persecução penal, como se se tratasse de rediscutir — de forma indevida — algo já definitivamente solucionado no âmbito administrativo-fiscal.

Por outro lado, não são raras as manifestações aduzindo que "a materialidade delitiva está comprovada pela Certidão de Dívida Ativa/pelo procedimento administrativo-fiscal", seja em denúncia, seja em requisições ou portarias de instauração de inquérito policial. Ainda, muitas vezes também se observa a remissão a tais documentos para limitar a investigação exclusivamente para apurar a autoria, uma vez que os fatos atinentes à materialidade já teriam sido comprovados no procedimento administrativo-fiscal. Assim, a Representação Fiscal para Fins Penais é tratada como algo quase sagrado, não admitindo questionamentos.

Mas se, como visto, os standards probatórios e a distribuição do ônus objetivo da prova são diversos na seara fiscal e no âmbito penal, não necessariamente o juízo sobre fatos do procedimento administrativo-fiscal implica a satisfação dos critérios exigidos no âmbito do processo penal. Assim, a decisão administrativa de que determinado fato gerador ou certa fraude ocorreu pode não atender os critérios aplicáveis ao processo penal, o que exigiria investigação também sobre esses mesmos fatos.

Daí, então, extrai-se outra imprescindível cautela a ser observada por parte das autoridades criminais sobre as comunicações de inscrição em dívida ativa de créditos fiscais nas apurações de crimes contra a ordem tributária: no mais das vezes, os fatos relatados em uma Representação Fiscal para Fins Penais não prescindem de reapreciação no âmbito penal.

Não se trata, é certo, de se atribuir à persecução penal uma função de rediscussão da querela jurídico-tributária, mas de dispensar a devida atenção aos fatos e, especialmente, às provas que os amparam para subsidiar a decisão final no procedimento administrativo-fiscal.

Igualmente, não se assevera qualquer impossibilidade a priori de se perseguir criminalmente fatos comunicados pelas autoridades fazendárias apenas porque as provas produzidas no procedimento administrativo-fiscal possuem standard probatório mais baixo. Afinal, tais provas não deixariam de configurar indícios merecedores de maior investigação por meio de inquérito policial. Dessarte, o simples fato de que uma decisão administrativa se ampara em presunção legal ou obedece a standard probatório diverso do penal não impede que haja a apuração criminal.

Por fim, também não se olvida que as provas colhidas no âmbito administrativo-fiscal eventualmente até podem atender o rigoroso standard probatório do processo penal, dispensando a busca de mais elementos probatórios para subsidiar a ocorrência do "fato" objeto de investigação. Entretanto, a par de esta hipótese certamente ser exceção e não regra, ainda assim não seria dispensada a avaliação dos fatos e provas colhidos na seara administrativa para se chegar a conclusão que tal.

Eis, pois, o cerne das reflexões que ora se apresentam: para além da cautela destacada pela 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, também se revela imprescindível que Polícia e Ministério Público dispensem especial atenção aos fatos e às provas que amparam a decisão final do procedimento administrativo-fiscal para proceder à persecução penal por crimes contra a ordem tributária. O fato ilícito provado pode reluzir aos olhos, mas não necessariamente ser ouro.


[2] Acórdão proferido pela 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no Habeas Corpus n. 5015192-55.2021.4.02.0000 (tornado público em 04 abr. 2022).

[3] MATIDA, Janaina; ROSA, Alexandre Morais da. Para entender standards probatórios a partir do salto com vara. São Paulo: Consultor Jurídico, 20/3/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-20/limite-penal-entender-standards-probatorios-partir-salto-vara. No mesmo sentido: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Para entender standards probatórios a partir do salto com vara: um complemento. São Paulo: Consultor Jurídico, 27/3/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-27/limite-penal-standards-probatorios-partir-salto-vara-complemento.

[4] TARUFFO, Michele. Evidence, Truth and the Rule of Law, in Revista de Processo, vol. 238, dezembro, 2014, p. 96.

[5] KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 37-45.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal, São Paulo: RT, 2003, p. 241.

[7] Idem, ibidem.

[8] ÁVILA, Humberto. Teoria da prova: standards de prova e os critérios de solidez da inferência probatória, in Revista de Processo, vol. 282, agosto, 2018, p. 120-1.

[9] KNIJNIK, op. cit., p. 132.

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    é advogado criminalista, sócio do Reale Advogados Associados, mestre em Direito Processual Penal (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP) e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu (Universidade de Coimbra).

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