Opinião

Linguagem neutra e liberdade de expressão: uma decisão judicial para todes

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15 de abril de 2022, 6h37

Em todo o mundo, o papel do Estado na garantia da liberdade de expressão artística é de extrema relevância, não apenas porque tem obrigação de desempenhar a tarefa de promotor desta liberdade, mas também porque pode exercer o perverso e danoso papel de violador, perseguidor e censor dos artistas e das artes, com edição de leis e/ou com execução de políticas públicas.

No Brasil, o governo federal tem sido acusado de operar um desmonte da política cultural e de perseguir, sob diversas formas, artistas e as artes. Denúncia neste sentido foi levada à Organização dos Estados Americanos (OEA) pela sociedade civil organizada, com realização, em dezembro de 2021, de audiência pública na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. As violações apontadas podem levar à responsabilização internacional do Brasil, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Portaria 604/21, da Secretaria Especial da Cultura (Secult)/Ministério do Turismo, que veda, nos projetos financiados pela Lei Rouanet, "o uso e/ou utilização, direta ou indiretamente, além de apologia, do que se convencionou chamar de linguagem neutra", é uma das situações de censura e violação à cultura enumeradas pelo Mobile- Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística em seu site e também relatada na audiência pública realizada na Comissão Interamericana em dezembro de 2021.

As respostas à censura e a outras formas institucionais de tolher a liberdade artística têm sido dadas pelo Judiciário, tanto pelo Supremo Tribunal Federal, nos julgamentos das ações originárias, como pelas magistraturas estadual e federal, na apreciação dos casos concretos.

No dia 31 de março deste ano, a aludida Portaria 604/21, questionada pelo Ministério Público Federal em ação civil pública, foi suspensa liminarmente, em decisão proferida pelo juiz federal Herley da Luz Brasil, titular da 2ª Vara Federal de Rio Branco, no Acre. O MPF trouxe normativas internacionais e a Constituição para respaldar a ACP e o direito à diversidade, destacando que a "'linguagem neutra' surge exatamente como ferramenta para o cumprimento dessa atribuição, pois combate preconceitos linguísticos, retira vieses que usualmente subordinam um gênero em relação a outro, e garante visibilidade a grupos que não se reconhecem dentro do sistema binário de linguagem". Na liminar, dentre outros fundamentos, o magistrado tomou por base as liberdades de informação e de expressão e a vedação constitucional da censura, realçando que "a utilização de linguagem neutra, além de não ofender qualquer direito, tampouco incitar violência, é expressão de manifestação que nada afeta o Estado ou a sociedade. Ao contrário, garante inclusão, dignidade, identidade e expressão de gênero, além de combater discriminação e preconceitos".

Há uma ação de controle abstrato de constitucionalidade já proposta sobre esse mesmo tema, no Supremo Tribunal Federal, a ADPF 918, ainda sem apreciação do pedido liminar. No entanto, as ações têm natureza e resultados diferentes. Um pedido importante na ACP, que não cabe na ação originária proposta no STF, é o de reparação por dano moral coletivo. O MFP, pelos sólidos argumentos aduzidos, situa o direito violado pela Portaria 604/21 como um dos pilares da democracia e por isso pede a condenação da União.

A discussão acerca da legalidade da restrição prevista na portaria da Secult foi posta, desde o início, sob fundamentos errados pela União, que fez confusão entre língua e linguagem, colocando a linguagem neutra no mesmo patamar da língua portuguesa, idioma oficial do país, com sede constitucional (artigo 13). A partir desse equívoco, argumentou a necessidade de se respeitar o monolinguismo, como se o uso de palavras neutras como "todes", "amigues" etc não integrassem o processo de acomodação da língua portuguesa ao uso vivo e cotidiano pelos seus falantes, inclusive com a incorporação de novos ingredientes ao caldo cultural. Processo, por sinal, muito comum aos patrimônios imateriais, que se caracterizam e sobrevivem exatamente porque, abertos à atualização constante, mesclam o legado do passado com o dinamismo do presente.

No site do Ministério do Turismo, a Secult apresenta nota para justificar a vedação da Portaria 604/21, na qual argumenta que a linguagem neutra "cria barreiras aos deficientes visuais e auditivos, por não haver tal linguagem correspondente nas libras e/ou braille, além de não ser impessoal, sendo 'comunicação' direcionada tão somente a um grupo". A menção à "criação de barreiras" por meio da linguagem neutra é inusitada, limitada, limitante e, de certa forma, violadora do direito das pessoas com deficiência visual ou auditiva de participarem da vida e produção cultural da comunidade.

Há diversas produções artísticas que veiculam palavras ou expressões únicas, inventadas e que nem por isso deixam de ser compreendidas e consideradas como arte genuinamente brasileira. A composição Magamalabares, de Carlinhos Brown, lindamente cantada por Marisa Monte, que começa com palavras inexistentes no dicionário – Magamalabares/Acqua Marã/No parquinho oxáiê, a canção de Vinicius de Moraes e Toquinho que traz a intraduzível expressão "a tonga, da mironga do Kabuletê" ou o romance "Grandes Sertões: veredas", de Guimarães Rosa, com uma genial desconstrução do português para dar vida à fala do sertanejo, são obras brasileiras imprescindíveis para todes e que podem ser traduzidos em libras e braille. Seria equivocado dizer que essas criações artísticas veiculam "barreiras" à comunicação. É exatamente o contrário: essas obras são elogios à diversidade cultural e aproximam as pessoas e grupos diferentes.

No mais, a justificativa da Secult para vedação é preconceituosa porque considera que as pessoas com deficiência visual ou auditiva não são potenciais usuárias da linguagem neutra e que não podem pertencer a grupos que não se reconhecem no sistema binário de linguagem. É difícil saber como o governo chegou a esse enquadramento, já que o ordenamento jurídico brasileiro — desde a Constituição, passando pela Convenção das pessoas com deficiência da ONU e Lei nacional (EPD) — tem teor inclusivo e de constante busca por equidade.

O MPF trouxe inovação ao tema da diversidade linguística ao considerar a existência de dano coletivo para uma situação de censura, via vedação de subsídios públicos, à linguagem neutra, que adapta a língua portuguesa a valores que acolhem certos grupos que não se veem representados pelo sistema binário linguístico.

A jurisprudência pátria se formou no sentido de que só pode ser reconhecida a pertinência da concessão de dano moral coletivo quando se verificar ofensa ao acervo jurídico ou a direitos protetivos de um grupo ou da coletividade, ou ainda de desgosto coletivo ou violação a valores compartilhados e guardados pela coletividade. Assim, para aferição do dano moral coletivo é desnecessária a demonstração de que determinada coletividade sentiu dor, repulsa ou indignação. No mais, a violação ocorrida deve ser significativa, intolerável e grave a ponto de produzir intranquilidade social.

A liminar concedida pela justiça federal acreana é consonante com a jurisprudência da Corte Constitucional. O STF já julgou cerca de duas dezenas de casos emblemáticos sobre liberdade de expressão, sempre rechaçando a censura prévia, apontando soluções no caso de confronto com outros direitos fundamentais e indicando mecanismos de reparação, com responsabilização ulterior.

Em ações nas quais se discute a constitucionalidade de normas que estruturam as políticas públicas culturais, o STF tem reafirmado a importância de aporte de recursos, públicos ou privados, para amplo acesso à cultura, destacando que o papel do Estado como promotor/garantidor de atividades culturais se realiza por meios de incentivos fiscais e financiamento público direto.

Em 2019, houve o polêmico caso da apreensão de obras com temática LGBT na Bienal do Livro do Rio, cujo mote o romance gráfico foi a revista "Vingadores, a cruzada das crianças" (Salvat), que exibiu um beijo na boca entre dois personagens masculinos. A decisão do presidente do TJ-RJ foi no sentido de permitir que agentes da prefeitura recolhessem outras obras com temática LGBT que fossem voltadas ao público infanto-juvenil e não estivessem lacradas.

O STF proferiu duas decisões para cassar a autorização judicial de apreensão dos livros: uma, da lavra do ministro Dias Toffoli, enquanto presidente da corte e no atendimento a pedido do Ministério Público Federal, da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, por meio da Suspensão de Liminar 1248 (SL 1.248); e outra, pelo ministro Gilmar, que se pronunciou na Reclamação 36.742 (Rcl 36.742) impetrada pelos organizadores da Bienal.

Nas duas reclamações, as decisões dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes partiram da concepção da pluralidade de ideias como algo estrutural da democracia brasileira, destacando a proibição constitucional à censura prévia, afastando o amparo do ato judicial reclamado nos artigos 78 e 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ressaltado a posição do STF no reconhecimento e proteção dos direitos do grupo LGBT, especialmente de não discriminação, de orientação sexual e de identidade de gênero.

Os debates no judiciário sobre a importância da diversidade de ideias e de posições contramajoritárias para o pleno gozo da liberdade expressão artística, bem como sobre a produção artística como produto relevante para a democracia e para a socialização, ficam mais ricos quanto mais consigam se interligar com a reflexão sobre normas e mecanismos que impeçam o uso da máquina pública para censurar e calar artistas.

Enquanto aguardamos a resposta final do judiciário acerca da inconstitucionalidade da vedação da linguagem neutra para projetos submetidos à lei Rouanet, temos uma liminar com pontos muito bem lançados pelo juiz federal Herley Brasil, que protege a coletividade da intraduzível (e bem compreensível!) praga rogada por Vinicius e Toquinho para os que "ouvem e não falam/olham e não veem/leem e não sabem": a praga de lhes mandar pra "tonga da mironga do Kaburetê".

Autores

  • é desembargadora no Tribunal Regional Federal da 3ª Região e mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo. Realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo - NEV-USP (2009-2010).

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