A apelação é recurso dotado de efeito suspensivo ope legis (artigo 1.012 do CPC). Significa dizer que a sentença recorrida ou ainda passível de recurso [1] não produz efeitos até que julgada a apelação — ressalvadas as exceções previstas no §1º do mesmo dispositivo. Por evidente, é dotada de tal efeito a apelação que preenche os pressupostos de admissibilidade recursal. Uma apelação que é intempestiva não produz efeito suspensivo — assim como não produz quaisquer outros efeitos próprios do recurso.
Ocorre que, embora tal raciocínio não exija maiores digressões, há um problema prático: como não mais existe juízo de admissibilidade da apelação pelo juízo de 1º grau (ao contrário do verificado ao tempo do CPC/73), compete ao tribunal, apenas, dizer se o recurso é ou não tempestivo — ainda que por decisão monocrática do relator.
Da prática forense brasileira, não é difícil conceber cenário no qual uma apelação aguarde julgamento por um, dois ou três anos para que então seja decretada a sua inadmissão por intempestividade. Se, com sorte, a inadmissão ocorrer por decisão monocrática, a via do agravo interno estará disponível ao apelante renitente — será necessário aguardar o julgamento colegiado de qualquer forma.
Até lá, a parte vencedora foi submetida ao prejuízo de não ter reconhecido, em seu favor, o trânsito em julgado da sentença que lhe é favorável. Para ficar em apenas dois exemplos, basta pensar na vedação à expedição de precatório e RPV sobre valor controvertido enquanto não for certificado o trânsito em julgado (artigo 100, §5º, da CF); e na necessidade de prestação de onerosas garantias para que seja viabilizado o cumprimento provisório de sentença (artigo 520, IV, do CPC).
Posto o problema, qual deve ser a interpretação conferida ao artigo 1.012 do CPC diante da apelação manifestamente intempestiva? Em especial, qual é o nível de controle — se é que há algum — passível de ser exercido pelo Juízo de 1º grau diante do recurso inadmissível?
O primeiro parâmetro hermenêutico a ser verificado é o da boa-fé objetiva. Há intempestividades e intempestividades. Não são equiparáveis situações limítrofes, nas quais a (in) tempestividade é passível de controvérsia — como aquela de um dia diante de um feriado municipal não comprovado com a interposição do recurso; ou então instabilidade de sistema de processo eletrônico a impedir o protocolo no prazo — com situações de má-fé escancarada. Pense-se em uma situação em que a parte interpõe apelação meses depois da publicação da sentença sem sequer demonstrar nulidade da intimação.
A boa-fé já é parâmetro adotado pela jurisprudência do STJ no concernente ao prazo decadencial da ação rescisória. A Súmula 401 do STJ estabelece que o prazo decadencial para propositura da rescisória começa a correr quando não couber mais recurso "do último pronunciamento judicial". Isso se aplica inclusive a recursos que sejam posteriormente considerados intempestivos — à exceção dos casos em que há comprovada má-fé [2].
A tese aqui defendida é que, sendo manifesta a intempestividade, agregada a elementos de má-fé da parte recorrente a serem aferidos no caso concreto, há espaço para que o Juízo de 1º grau afaste o efeito suspensivo automático da apelação.
Não se propõe uma descabida repristinação ao regime de admissibilidade da apelação do CPC/73 — o que, aliás, já foi cogitado em mais de um julgado do Superior Tribunal de Justiça [3]. Continua a competir ao Tribunal admitir ou não o recurso. O que haverá será o escrutínio do juízo de 1º grau sobre os efeitos a serem produzidos pela sentença prolatada enquanto não há decisão do tribunal — para, por exemplo, autorizar o cumprimento de sentença como se definitivo fosse.
Não se trata de proposta desconhecida do sistema processual vigente. Já há, em larga medida, um amplo controle do juízo de 1º grau acerca dos efeitos que serão de imediato produzidos pela sentença — ou seja, se a apelação a ser interposta será ou não dotada de efeito suspensivo automático. É possível, em qualquer caso, que o juízo de 1º grau conceda tutela provisória na sentença, situação na qual a apelação não é dotada de efeito suspensivo automático (artigo 1.012, §1º, V, do CPC). Sequer é necessário que haja perigo de dano, pois a tutela concedida na sentença pode se dar a título de evidência.
Ao conceder tutela provisória na sentença, o juízo de 1º grau já afasta, de pronto, o efeito suspensivo automático da futura apelação tempestiva. Se quem pode o mais pode o menos, detém o juízo de 1º grau controle acerca dos efeitos a serem produzidos pela apelação interposta extemporaneamente.
Em qualquer caso, para além do espaço de atuação do juiz de 1º grau, cabe consignar que a via da tutela provisória recursal está aberta tanto para o apelante, quanto para o apelado. Interposta apelação dotada de efeito suspensivo automático, em qualquer caso, pode o apelado requerer diretamente ao Tribunal a atribuição de eficácia imediata à sentença.
Sendo a apelação intempestiva, haverá, perante o tribunal, probabilidade de direito em favor do apelado referente à inadmissão do recurso, independentemente da discussão de mérito. Aqui, mais uma vez , é indiferente a discussão acerca da existência ou não de perigo de dano, pois basta demonstrar probabilidade de provimento do recurso.
Atenta-se, nesse aspecto, à distinção que o artigo 1.012, §4º, do CPC faz entre a hipótese de "probabilidade de provimento do recurso" (situação em que não se exige perigo de dano — a conformar tutela da evidência recursal) e a hipótese em que "sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou de difícil reparação" (na qual o perigo de dano é requisito de concessão — tutela de urgência recursal).
O fato é que não cabe ao processo civil tolerar que uma parte que não tem direito (no caso, o de recorrer) se beneficie de forma indevida das peculiaridades do sistema recursal e das problemáticas da realidade forense do país. É necessário garantir que o apelado não permaneça à mercê do perdedor recalcitrante — principalmente se houver má-fé envolvida. Como remédio, portanto, há duas formas de atuação da parte prejudicada diante da apelação intempestiva: pedido ao Juízo de 1º grau que seja desconsiderado o efeito suspensivo automático; e/ou pedido ao Tribunal para que atribua eficácia imediata à sentença.
[1] "Mesmo antes de interposto o recurso, a decisão, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, é ato ainda ineficaz, e a interposição apenas prolonga semelhante ineficácia, que cessaria se não se interpusesse recurso". Cf. BARBOSA MOREIRA, J.C. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 476 a 565, vol. V, 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 257.
[2] EREsp 1352730/AM, relator ministro RAUL ARAÚJO, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/08/2015, DJe 10/09/2015.
[3] "Embora, sob a égide do CPC/2015, a competência para o recebimento da apelação seja dos órgãos jurisdicionais de segundo grau, não se mostra razoável anular a decisão do magistrado de primeiro grau quando o recurso é manifestamente inadmissível". Cf. RMS 54.549/MG, relator ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/10/2017, DJe 30/11/2017. No mesmo sentido: AgInt no RMS 54.301/SC, relatora ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 01/06/2020, DJe 05/06/2020. Ainda, no mesmo sentido, em Tribunal de piso: TRF-3 — AI: 50212681020174030000 SP, relator: desembargador federal OTAVIO PEIXOTO JUNIOR, Data de Julgamento: 09/07/2020, 2ª Turma, Data de Publicação: e — DJF3 Judicial 1 DATA: 15/07/2020