Opinião

O Supremo Tribunal Federal "sem freio e contrapeso"

Autor

  • Sérgio Antunes Lima Junior

    é advogado mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-RJ) e em Direito da Energia e Desenvolvimento Sustentável pela Univiservidade de Estraburgo França doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra Portugal LLM em Direito Empresarial e Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) escritor e autor.

13 de abril de 2022, 16h11

"É uma experiência eterna que qualquer homem que detém poder tende a abusar dele: vai até encontrar limites" — Barão de Montesquieu.

A ideia de Estado constitucional democrático impõe a necessidade de clara identificação das formas de proteção e garantia de suas próprias normas (autodefesa constitucional) na Constituição [1].

Uma forma efetiva de se atender ao estabelecido pelo Constituinte é deixar claro, sem qualquer margem de dúvida ou interpretação, a exata limitação das funções do Estado, exercidas através dos respectivos Poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário), os quais devem atuar de forma independente e harmônica [2].

Sem adentrar no presente trabalho nas discussões teóricas da inter-relação entre as funções e os respectivos Poderes (freios e contrapesos [3], teoria do núcleo essencial, justiça funcional) é importante destacar que, em qualquer das teorias adotadas, haverá, sempre, um parâmetro que pode ser identificado como "consenso republicano de conformidade funcional".

Nas lições de Canotilho, "mantendo-as no quadro de competências constitucionalmente definido, não devendo modificar, por via interpretativa, a repartição, coordenação e equilíbrio de poderes, funções e tarefas inerentes ao referido quadro de competências" [4].

No entanto, por vezes e autorizados pela Constituição, algum dos Poderes exerce, de forma excepcional, funções atípicas, quando atuam em competências que, a princípio, seriam destinadas a um outro Poder, consideradas as características funcionais típicas de cada um [5].

Nesse sentido, é importante quebrar o discurso tradicional e ter como premissa de que, o controle de constitucionalidade da norma exercido pelo Poder Judiciário, ainda que autorizado e previsto pelo constituinte, especialmente o realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em qualquer de suas modalidades (concentrado ou difuso) evidencia uma verdadeira função atípica do Poder Judiciário.

E esta interpretação se torna por deveras importante para que as conclusões do entendimento possam identificar as limitações de atuação da Corte Suprema.

Nestes casos o "intérprete-Juiz" deixa de se colocar como aplicador das leis, elaboradas pelos legitimados (em sentido amplo) aos casos concretos (sua função típica) para se tornar o responsável por retirá-las (normas) do ordenamento, interferindo assim, na função típica dos outros Poderes.

Em agindo com base em sua função atípica, repita-se, ainda que autorizado pela Constituição, no exercício do controle de constitucionalidade das leis, não haveria espaço, portanto, para que sua competência viesse a ser alargada pela própria Corte, considerando tratar-se de exceção à regra, ainda que sob qualquer fundamento de proteção constitucional.

Tornar-se "guardião da constituição" não autoriza que, sob esta função, possa exercê-la em desconformidade com a própria Constituição que lhe garante legitimidade.

Há, com a devida venia, um equívoco, neste ponto, com relação à própria atuação do Supremo Tribunal Federal, ao tentar justificar uma suposta e "necessária" atuação político-normativa, apta a embasar uma análise ampla e disfuncional da referida Corte, considerada sua condição de "guardião da constituição" e de controlador constitucional das normas.

O reconhecimento de carência legislativa em determinada matéria, ou até mesmo de gap do governo, não devem servir de argumento para que o Poder Judiciário avance em funções que não lhe foram autorizadas pelo povo, verdadeiros legitimados e destinatários [6] das normas constitucionais, sobretudo quando diante de pessoas não eleitas, e escolhidas, como no caso do Brasil, de acordo com a conveniência política.

Seria mais fácil, rápido e eficaz alterar legislações, propor e impor políticas públicas através do Poder Judiciário, como a que se faz atualmente no país, do que aguardar longos debates sociais e todos os seus possíveis obstáculos e burocracias que demandam os temas sensíveis em atenção à real democracia [7].   

Transferiu-se, então, como solução, aos 11 (ministros), o que os 513 (deputados) e mais os 81 (senadores) não conseguem, em tese, realizar.

Ocorre que, para impor o que se pretende, qual seja, o alargamento das funções do Poder Judiciário, há de se perquirir, também, a necessidade de adaptação de todo um sistema e com prévia autorização do Constituinte.

Há de se verificar, de início, junto à sociedade, verdadeira legitimada, se há confiança de delegar ao Supremo Tribunal Federal o alargamento de sua competência.  

Em um passado recente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, debruçava-se, apenas, na possibilidade de sua mera atuação contida, como um "legislador negativo", a teor do verbete nº 339 [8], da súmula do STF.

Ocorre que, já a há alguns anos, a Corte avançou muito chegando ao ponto atual em que, em uma espécie de super "neoconstitucionalismo" [9], provocado por determinado legitimado, na maioria das vezes, um partido político, sob a alegação de ofensa ao texto constitucional, sugere e determina a implementação de políticas públicas [10], definidas pelo Autor da ação.

Políticas estas que o Partido Político, autor da Ação, considera como a mais adequada e compatível com a sua interpretação da Constituição, seja por divergências ideológicas, ou até mesmo por estratégia política, em detrimento de uma política de governo implementada pelo Poder verdadeiramente legitimado e eleito, utilizando-se das chamadas ações estruturais [11].

Uma política pública, supostamente equivocada, em um Estado Democrático de Direito, deve ser afastada por quem, de direito, e pelas vias democráticas, sob pena de burla à vontade popular e ao pleno exercício do voto, que não deve ser resumido ou compreendido à uma simples escolha dos representantes, mas ao direito de fiscalização, através dos meios adequados e previstos, bem como à manutenção no cargo e das políticas públicas apresentadas e implementadas por estes, ressalvados os casos ilícitos. 

E tal fato se agrava quando ao fixar uma nova e ampla competência a si, sem o devido processo legislativo competente (Emenda Constitucional), o Supremo Tribunal Federal acaba atuando em desconformidade com a Constituição, e neste sentido, sugerindo, em tese, uma atuação passível de sanção, como ocorre com os demais Poderes.

Quando, por exemplo, um Chefe do Poder Executivo atua em desconformidade com suas funções e atribuições o ordenamento prevê inúmeras medidas de controle, em especial a exercida pelo próprio Poder Judiciário. Assim, também ocorre com os membros do Poder Legislativo.

Com isso, o que se impõe reflexão neste momento é o alargamento de competência da Corte decorrente de seu próprio entendimento, sem previsão constitucional, capaz de permitir até mesmo a sua intervenção direta em funções típicas e exclusivas de outro Poder (funções que não podem ser delegadas).

A implementação de política pública, seja por qualquer argumento, não pode ser jamais ser afetada ao Poder Judiciário, e por razões óbvias, não obstante a ausência de autorização constitucional.

Em resumo temos a seguinte situação no Brasil: Um Supremo Tribunal Federal atuando, sob alegada ofensa constitucional, supostamente, de forma ilegítima, interferindo diretamente em políticas públicas governamentais, provocado por Partidos Políticos, que na maioria das vezes acionam a Corte utilizando-a como ferramenta de divergência política/ideológica contra partido de oposição ao do Requerente, sem que haja qualquer possibilidade de controle externo dessas decisões.

Por outro lado, os que supostamente, estariam legitimados para a correção de abusos por parte dos Ministros da Suprema Corte, em sua grande parte, são investigados em procedimentos e processos que tramitam na própria Corte, e por vezes, representantes dos Partidos que utilizam a Corte como instrumento de divergência política.

Há, assim, um modelo extremamente ineficaz e incapaz de impor limites à supostos abusos e atuações desmedidas e ilegítimas da Suprema Corte.  

E para tanto, como visto, a Corte vem se utilizando da chamada teoria do "Estado de Coisas Inconstitucional" [12].

Há uma clara intervenção política e utilização da Corte para os debates que deveriam ficar adstritos às urnas e ao locais adequados e previstos pelo Poder Constituinte.

Ainda que a referida teoria traga referência em experiências do exterior e seja aplicada mediante análise, supostamente, criteriosa de seus requisitos, tenderá sempre ao subjetivismo de ocasião com clara ofensa à imparcialidade, fundamental ao exercício de julgar.

E, mais, a aplicação da teoria torna-se em um problema muito maior para a própria Corte, pois a abertura de precedentes (intervenção nas políticas públicas) poderá resultar em uma atribuição (e competência) de extrema responsabilidade ao Poder Judiciário, visto que o Brasil carece de segurança pública, de educação, saúde, saneamento, desemprego, moradia, dentre outros direitos fundamentais, e em todas as esferas federativas.

Assim, um determinado partido político poderia ingressar no Supremo Tribunal Federal para "implementação de sua política/ideologia" em um determinado estado, mas pecar com o mesmo problema (ou, inconstitucionalidade) em outro estado que detém a governabilidade.

E pior, a depender de quem esteja como Chefe do Poder Executivo, os questionamentos poderão ser diversos (ideologicamente) e não caberia, assim, ao Poder Judiciário, através dos seus 11 Ministros nomeados, determinar qual política a seguir ou ser implementado por determinado ente ou Poder da República, sob a alegação de um "estado de coisas contrário a Constituição".

Poder-se-ia tentar defender essa atuação indiscriminada sob a alegação de uma suposta imensa fragilidade e ausência de qualidade, além da má atuação (ou, omissão), de forma constante, dos demais Poderes, tornando assim, a Corte, a única capaz e responsável pela correção de todo o mal da República.

Deve-se, assim, começar o debate para a implementação de um modelo que traga maior segurança jurídica ao cidadão e à própria Corte, com um Supremo Tribunal Federal, especificamente constitucional, separando-o das demais competências e atribuições, sobretudo as de natureza criminal.

O Brasil possui uma Corte com ministros altamente capacitados para o exercício de suas funções típicas e atípicas (autorizadas pela Constituição), mas que são, erroneamente estigmatizados pelo sistema implementado e suas consequentes mazelas.

O que se tem visto, ultimamente, como tentativa de diminuir suas atribuições e competências são medidas paliativas e que tornam a Corte ainda mais vulnerável às críticas.

Está na hora da sociedade civil, da OAB, do Ministério Público, com o próprio Poder Judiciário, buscarem uma solução harmônica para que se tenha um modelo digno, transparente e justo na República Federativa do Brasil, sem o cometimento de abusos e maior respeito ao cidadão.

 


[1] "garantia de existência da própria Constituição, Verfassungsbestandsgarantien (na Alemanha) e constituição da própria constituição, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Canotilho Gomes JJ. 7ª edição, Almedina, 2003".

[2] Artigo 2º CRFB/88

[3] "Em Roma, tendo o povo a maior parte do poder legislativo, parte do poder executivo e parte do poder de julgar, esse grande poder necessitava ser contrabalançado por outro" Motesquieu, Do Espirito das Leis, 1º Vol. Pág. 206, Clássicos Garnier da Difusão Européia do Livro, 1962.

[4] Ob. Cit.

[5] "Artigo 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional".

[6] "O senhor da soberania, o povo que vota e decide, cala e obedece, permanece mudo ao apelo à sua palavra", "Os Donos do Poder  Formação do Patronato Político Brasileiro", Raymundo Faro, Biblioteca Azul, 5ª edição, pág. 697.

[7] "A democracia, no plano da ideia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está submetido a essa ordem, isto é, o povo", "A Democracia", Hans Kelsen, Ed. Martins Fontes, 2019, pág. 35.

[8] "Verbete nº 339, da Súmula do STF: Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia".

[9] "O neoconstitucionalismo implicou um retorno a uma fase pré-kelseniana, ou seja, a uma fase em que vigoravam teorias sociológicas que, oriundas das concepções de Augusto Comte e de Émile Durkeim, compreendiam o direito como um capítulo da sociologia", "Sereis Como Deuses  o STF e a Subversão da Justiça", Ed.: EDA, pag 83

[10] "ADPF 635: Intervenção na Politica de Segurança Publica do Estado do RJ".

[11] "Já na tutela estrutural, a vítima da violação do direito não é um indivíduo, mas um grupo, e o conceito de parte é pulverizado, uma vez que há um número significativo de pessoas, grupos, associações, agentes públicos e políticos com interesse na causa e que serão diretamente afetados pela decisão", "Ações Estruturais e o Estado de Coisas Inconstitucional  A Tutela dos Direitos Fundamentais em Casos de Graves Violações pelo Poder Público", Eduardo Sousa Dantas, Editora Juruá, 2019, págs. 91/92.

[12] "O Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) é um instituto criado pela Corte Constitucional Colombiana e declarado quando a Corte se depara com uma situação de violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que afeta um número amplo de pessoas. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da medida cautelar na ADPF 347/DF, que trata sobre as condições desumanas do sistema carcerário brasileiro, inovou ao apresentar esse instituto ao ordenamento jurídico do país. O objetivo do presente trabalho é levantar a discussão sobre a declaração do ECI no Brasil, procurando verificar quais as possíveis consequências do uso dessa ferramenta pelo Supremo Tribunal Federal em ações que envolvem a implementação de políticas públicas", https://bibliotecadigital.stf.jus.br/xmlui/handle/123456789/1132

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    é advogado, mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-RJ) e em Direito da Energia e Desenvolvimento Sustentável pela Univiservidade de Estraburgo, França, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra, Portugal, LLM em Direito Empresarial e Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), escritor e autor.

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