Opinião

Mulher trans merece proteção da Lei Maria da Penha, decide STJ

Autor

  • Renato de Mello Almada

    é advogado diretor jurídico da Confederação Brasileira de Cinofilia é pós-graduado em Direito dos Animais pela Faculdade de Direito de Lisboa (Portugal).

13 de abril de 2022, 9h21

Importante precedente foi aberto em recente julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao se posicionar a respeito da aplicação das normas de proteção da Lei Maria da Penha em relação às mulheres transexuais.

O caso foi julgado pela Sexta Turma do STJ, tendo por Relator o ministro Rogério Schietti Cruz, que primorosamente analisou a matéria. Para sintetizar o caso e a boa aplicação do direito, vale transcrever a ementa da decisão:

RECURSO ESPECIAL. MULHER TRANS. VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. APLICAÇÃO DA LEI N.11.340/2006, LEI MARIA DA PENHA. CRITÉRIO EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICO. AFASTAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE SEXO E GÊNERO. IDENTIDADE. VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DOMÉSTICO. RELAÇÃO DE PODER E MODUS OPERANDI. ALCANCE TELEOLÓGICO DA LEI. MEDIDAS PROTETIVAS. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO.
1. A aplicação da Lei Maria da Penha não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida.
2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha.
3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas.
4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.
5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que, no meu entender, o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é.
6. Na espécie, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei n. 11.340/2006, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente – especializado — para processar e julgar a ação penal.
7. As condutas descritas nos autos são tipicamente influenciadas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. O modus operandi das agressões — segurar pelos pulsos, causando lesões visíveis, arremessar diversas vezes contra a parede, tentar agredir com pedaço de pau e perseguir a vítima — são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agressor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas.
8. Recurso especial provido, a fim de reconhecer a violação do art. 5º da Lei n. 11.343/2006 e cassar o acórdão de origem para determinar a imposição das medidas protetivas requeridas pela vítima L. E. S. F. contra o ora recorrido.

Pouco ou nada há para se acrescentar ao robusto voto do Ministro Relator.

Na atualidade não há mais espaço para se deixar de reconhecer a identidade de gênero como caracterizadora da identidade feminina ou masculina para reconhecimento de direitos. Como bem salientado no voto em comento, "mulher trans mulher é".

Assim, sendo a mulher vítima de violência doméstica, independentemente se o conceito a ser utilizado seja biológico ou por identidade de gênero, merece ela a proteção da Lei Maria da Penha.

Cabe salientar que alguns Tribunais estaduais, incluído o de São Paulo, já vinham conferindo à mulher transexual a proteção da Lei Maria da Penha, em que pesem alguns julgados contrários.

Contudo, a decisão unânime proferida no julgamento realizado pelo STJ (REsp 1977124/SP), constitui precedente que pode — e deve — ser aplicado nas demais causas em tramitação no país e que guardam similaridade com a situação posta no caso analisado. Daí, a máxima importância que deve ser dada a esse julgamento, cuja riqueza de fundamentação contida não só no Acórdão, mas também nas Razões apresentadas pelo Ministério Público, serve de balizamento para o enfrentamento futuro do tema.

Em resumo, a própria Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º estatui que: Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Evidente, pois, que a questão determinante para a aplicação da Lei é a identidade de gênero e não somente a definição biológica de mulher. A proteção deve ser dada a todas que como mulher se definem. Essa, respeitadas as opiniões contrárias, é a conclusão que deve ser dada para aplicação dessa norma protetiva.

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