Opinião

Ações judiciais de extensão de prazo de patentes farmacêuticas

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13 de abril de 2022, 18h05

O ano de 2021 foi marcado por um importante julgamento em propriedade intelectual pelo Supremo Tribunal Federal, que definiu a impossibilidade de prorrogação automática de prazos patentários para além de 20 anos contados da data do depósito do pedido, a partir da declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei da Propriedade Industrial (ADI 5.529). A partir de agora qualquer pedido de patente só poderá ser concedido pelo prazo de 20 anos, contados da data do depósito do pedido, excluída a possibilidade de prolongamento automático desse prazo quando o processo de análise e concessão pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) ultrapassar dez anos.

Em modulação, o STF preservou a vigência de patentes concedidas com prazo estendido, com exceção dos títulos patentários que sofriam questionamento judicial sobre a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI e também para medicamentos e equipamentos de uso em saúde, que tiveram o prazo de vigência reduzidos para 20 anos contados da data do depósito, decotado qualquer prazo adicional concedido.

Não se tem dúvida do refinamento jurídico e da qualidade técnica do voto condutor do ministro Dias Toffoli, proferido após acalorados debates pela nata da advocacia na mais alta corte do país. O resultado, todavia, parece não ter sido bem digerido por multinacionais farmacêuticas que, diante do resultado, passaram a se utilizar do Poder Judiciário com novas teses buscando reativar a extensão de prazos patentários, obtendo, em alguns casos, decisões liminares que garantam a elas a continuidade do período de exclusividade.

Nessas ações judiciais sustenta-se que o prazo de patente deva ser ajustado e prolongado pelo mesmo tempo de atraso do INPI na análise e concessão do título patentário, importando-se de outras legislações o chamado "patent term adjustment" (PTA) para aplicá-lo ao sistema patentário brasileiro, entendendo-se que assim não haverá a prorrogação automática antes permitida pelo parágrafo único do artigo 40 da LPI (declarado inconstitucional pelo STF) e, por consequência, não se descumprirá a decisão da Suprema Corte.

Afirma-se ainda que o depositante de patente não pode ser prejudicado pela morosidade na concessão causada pela lentidão do INPI (responsável pela concessão do título patentário) ou da Anvisa (responsável pela concessão da anuência prévia — com a observação de que o artigo 229-C da LPI foi revogado pela Lei 14.195/21, inexistindo, atualmente, essa exigência), de modo que esse prazo deva ser restituído, a título de compensação, ao titular da patente, que fez inúmeros investimentos em pesquisa e não pode ser penalizado por ato a ele não imputável, sob pena de violação de normas infraconstitucionais que estabelecem prazos para prática de atos em processos administrativos e princípios constitucionais de eficiência e duração razoável do processo.

Não se pode negar que a construção jurídica seja criativa e que possa, em um primeiro momento, ser sedutora aos olhos de alguns julgadores, mas que, quando analisada em profundidade, constata-se se tratar de tese jurídica vazia construída às pressas para alimentar, ainda que provisoriamente, uma necessidade financeira imediata, que traz prejuízos incomensuráveis aos cofres públicos, à indústria de medicamentos genéricos e à coletividade.

Muitos poderiam se perguntar: mas a questão já não se encontra decidida em caráter definitivo pelo STF? Sim, a questão se encontra decidida definitivamente pelo STF, não sendo mais passível de insurgência recursal, de modo que, pela qualificação jurídica do precedente (acórdão proferido em ação direta de inconstitucionalidade), gera efeitos imediatos e vinculantes sobre a administração pública direta, indireta e Poder Judiciário.

E o risco envolvido (contingência gerada com essas novas demandas) como fica? Essa é a grande pergunta e aqui há um misto de alguns fatores, como o alto risco jurídico envolvido, o grande poder financeiro existente e um histórico (favorável às multinacionais) de que o Poder Judiciário acaba não atuando com o rigor necessário na punição de atores que intentam ações judiciais infundadas (a exemplo de julgados em torno de patentes pipeline e mailbox), que, embora sejam teses jurídicas frágeis (não acolhidas pelo Poder Judiciário), ainda assim garantem liminares que mantenham a exclusividade de produtos no mercado por algum período adicional, não sendo, posteriormente, ressarcidos a contento as perdas e os danos causados aos prejudicados (incluindo-se aqui o próprio Poder Público).

Dois motivos centrais fazem com que essas ações (atualmente aproximadamente 30 demandas propostas) possam ser consideradas ocas juridicamente.

O primeiro porque busca, de forma oblíqua, a ressuscitar artigo de lei já declarado inconstitucional pelo STF (e logo na sequência revogado pelo legislador – Lei 14.195/21), somado à tentativa de importação e customização do PTA (Patent Term Adjustament), previsto em alguns países – mas com muitas ressalvas/limitações e dentro de outro arcabouço legal de propriedade intelectual — mas inexistente em nosso ordenamento jurídico, não cabendo ao Poder Judiciário aplicá-lo, sob pena de se criar norma, usurpando matéria de competência exclusiva do Legislativo.

Segundo porque a aceitação da tese pelo Poder Judiciário levaria a que titulares patentários tivessem tratamentos desiguais mesmo estando em situação formal e materialmente idênticas (ambos depositantes de pedido de patente perante o INPI), já que aquele que obtiver judicialmente a extensão do prazo patentário poderá receber indenização de eventuais infratores por período superior a 20 anos (em contraposição aos outros que só terão resguardado esse direito pelo prazo máximo de 20 anos), levando-se em conta que a lei garante ao titular o direito à recomposição de danos ocorridos a partir da data do depósito do pedido de patente (artigo 44, da LPI).

A análise realista da situação retratada acima revela que o agraciado com a decisão judicial prolongará o período de exclusividade mercadológica (ou seja, continuará a excluir concorrentes do mercado por prazo superior a 20 anos) e ainda terá, por outro lado, garantido o direito de buscar indenização retroativa contra eventuais infratores a partir da data do depósito do pedido de patente (que, igualmente, terá ultrapassado 20 anos). Ganharia, assim, nas duas pontas, na indenização contada do depósito e na extensão no prazo de vigência patentária.

Terceiro porque o improvável êxito perante o Poder Judiciário não restabelecerá o prazo de vigência das patentes, para estendê-los além dos 20 anos contados da data depósito, ainda que fique comprovada (após a devida instrução probatória) a mora atribuível ao INPI ou à Anvisa, já que a única solução aceitável nessa situação seria a condenação de referidos órgãos ligados ao governo federal ao pagamento de indenização (pecúnia) por eventuais prejuízos causados aos titulares patentários.

Isso porque o domínio público patentário é incondicional e irreversível, de modo que, passando a tecnologia a ser de uso livre (ao final do prazo de 20 anos), não poderá mais ser reapropriada pelo seu antigo titular, justamente porque o interesse coletivo deve se sobrepor ao interesse individual, segundo ditames e valores constitucionais (interesse coletivo vs interesse particular) e direito patentário (como exceção) vs livre concorrência (como regra geral). Portanto, a tese construída (ainda que exitosa seja) não deverá significar a devolução de vigência de prazo patentário (único requerimento manejado em referidas demandas judiciais).

Todos esses fatores evidenciam que não há o exercício de um direito legítimo e, feitas todas as ressalvas necessárias ao delicado tema que trata do acesso à justiça, parece-nos que no caso há um movimento estruturado de determinados players de mercado que atuam de forma orquestrada e coordenada mediante a propositura de ações natimortas para a obtenção de uma vantagem mercadológica ilícita, em evidente infração à ordem econômica.

Essa atitude inibe entrantes e concorrentes no mercado atual e, igualmente, estabelece um indevido monopólio em prejuízo do Estado (SUS, principalmente, que adquire medicamentos custosos e fornece à população brasileira) e ao próprio cidadão comum, penalizado por ter que pagar mais caro por um medicamento, que poderia ser disponibilizado em opções genéricas de mesma qualidade e eficácia e com preços mais acessíveis.

Caracteriza-se, na denominação norte-americana, hipótese de sham litigation, consubstanciada na abusividade no exercício do direito de ação sem fundamentação minimamente plausível (até porque, relembra-se, contraria julgado vinculante exarado pelo STF na ADI 5.529), gerando insegurança jurídica e instabilidade no mercado, visando a inibir o uso legítimo de tecnologia por terceiros de forma desimpedida.

A incerteza jurídica criada em torno de um suposto direito de obtenção de prazo patentário adicional propicia um impacto negativo de ordem econômica, que só restará superado quando advierem decisões finais nessas demandas judiciais (o que levará anos). Nesse ínterim, muitas empresas deixarão de usar a tecnologia que se encontra sob o domínio público e a oferecer produtos concorrentes a preços mais acessíveis, além de sobrestarem a pesquisa e o desenvolvimento de novos produtos a partir de referidas tecnologias que não mais gozam de proteção legal.

Essa estratégia — que parte de um pretenso direito de propriedade intelectual e se utiliza indevidamente do Poder Judiciário para se buscar legitimar a tese e afugentar entrantes e concorrentes de mercado — pode ter um efeito imediato conveniente, em sede de liminares, mas com certeza carrega consigo uma arriscada contingência a longo prazo, sobretudo porque poderão advir sérios e volumosos prejuízos financeiros a terceiros.

Como se disse anteriormente, as empresas optam pela estratégia de mover as ações judiciais e assumir o risco, para que possam colher os proveitos imediatos, mas deixam de antever as consequências que poderão advir dessa conduta, em grande medida porque as punições previstas na legislação brasileira não são severas o bastante, de modo que, se sopesados os prós e os contras, o saldo pode parecer positivo aos olhos daqueles que decidem por propô-las.

Felizmente, o Judiciário vem respondendo bem a essas demandas (apenas duas liminares concedidas e mantidas até o momento), o que já indica que a tese não tem sustentação jurídica minimamente plausível e extrapola o exercício regular e legítimo de um direito (mostrando-se, logo de início, que se trata de um exercício abusivo de direito sob várias perspectivas de análise: abuso no exercício de direito patentário, abuso do direito de demandar (sham litigation), infração à ordem econômica e concorrencial e, ainda, violação a precedente qualificado e vinculante do STF).

A magnitude das consequências é impensável: basta se imaginar em uma liminar que mantenha vivo o prazo de vigência de uma patente de medicamento, que, por consequência, impeça o lançamento de um produto genérico por um concorrente ou que imponha uma aquisição a preço maior pela União ou mesmo pelo próprio consumidor final. Portanto, no tocante ao tema recomposição financeira de prejuízos causados (sem mencionar eventuais ações no Cade, do Ministério Público e da Advocacia Geral da União) é possível prever (quando da revogação dessas liminares) indenizações em patamares elevadíssimos e inimagináveis.

O que não se sabe é se referidas empresas de capital preponderantemente estrangeiro estarão preparadas para garantir minimamente o pagamento desses valores indenizatórios, levando-se em conta que muitas delas não têm ativos no Brasil e podem não estar considerando o risco real envolvido em seus provisionamentos financeiros ou em reports às matrizes. Enfim, a resposta só virá com o tempo e será, de duas, uma: ou um erro grave foi cometido ou um acerto milagroso foi alcançado.

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