Opinião

Teoria das nulidades processuais aplicada ao processo administrativo

Autor

  • Fernando Albuquerque

    é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

13 de abril de 2022, 19h04

A edição do Ato Conjunto SF/STF nº 1/2022 [1] fez ressurgir a discussão acerca da ausência de uniformidade da legislação que disponha acerca do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, a qual se desdobra não apenas em razão do microssistema jurídico que se dispõe a regulamentar  cada um dotado de particularidades, como também em razão da atividade legislativa atípica dos entes[2].

Tal circunstância resulta de uma legislação demasiadamente espaça e capaz de gerar insegurança jurídica em decorrência do advento de dúvida razoável quanto à legislação aplicável, notadamente considerando que o direito consiste em uma ciência na qual divergências interpretativas compõem a sua dinâmica.

Dentre as diretrizes eleitas no referido ato conjunto, destacamos a necessidade de assegurar a "garantia dos princípios do devido processo legal, da razoável duração do processo, da eficiência, da segurança jurídica, proteção da confiança e do impulso oficial" [3], sobre os quais pretendemos no presente ensaio, notadamente sobre a ótica da teoria das nulidades processuais.

Em termos didáticos, é possível compreender por "processo"  seja ele judicial ou administrativo  o conjunto sequenciado de atos destinados a um resultado final esperado, seja para atender a uma postulação jurídica, seja para a imposição de uma obrigação ou penalidade, ou mesmo para a execução destas.

Para tanto, a condução do processo administrativo deve se pautar nas famigeradas garantias constitucionais do processo, dentre as quais destacamos o princípio do devido processo legal (CF/88, artigo 5º, inciso LIV), cujo núcleo essencial repousa em assegurar o exercício efetivo do direito de ação (CF/88, artigo 5º, inciso XXXV) e do direito de defesa (CF/88, artigo 5º, inciso LV), com o fim na efetivação dos direitos e valores defendidos pela Constituição Federal (CF/88, Preâmbulo).

No âmbito da Administração Pública federal, as disposições gerais acerca do processo administrativo se encontram dispostas na Lei nº 9.784/99, sem prejuízo da regência prioritária de outras normas específicas à matéria em debate, a exemplo do Decreto nº 70.235/72 (Processo Administrativo Fiscal) e das Leis nº 8.666/93 nº 14.133/2021 (Processos/Procedimentos Licitatórios).

Além disto, respeitado o critério de especificidade das normas jurídicas para a resolução de antinomias, há ainda a possibilidade de aplicação supletiva (quando há previsão legislativa, porém incompleta) e subsidiária (quando não há previsão legislativa) das disposições estabelecidas no Código de Processo Civil (artigo 15), assim como supletiva e subsidiariamente ao Código de Processo Penal relativamente aos processos administrativos sancionadores [4].

Tal forma de integração tem por efeito prático possibilitar uma melhor compreensão acerca da materialização no âmbito do processo administrativo dos princípios processuais [5] que lhe são aplicáveis, inclusive  mas não unicamente  a partir de regras procedimentais próprias aos processos judiciais [6], ainda que não especificadas nas normas que regem o processo administrativo (LINDB, artigo 4º).

Tratando-se os princípios de espécie de norma jurídica de conteúdo aberto, a extensão destes deve se amoldar ao grau de implicação jurídica da resolução do mérito do processo na esfera subjetiva do administrado. Assim, qualquer que seja a sua carga jurídica, um princípio somente poderá deixar de ser aplicado em um caso concreto quando colidir com outro Princípio, hipótese na qual se empregará a regra de ponderação em função das circunstâncias do caso concreto, decidindo-se a favor de um deles, mas ainda assim preservando o núcleo essencial do princípio excepcionalizado.

Diferentemente do que sucede no campo do direito privado  no qual o princípio da legalidade se manifesta no sentido de assegurar a liberdade e a vontade privada dos indivíduos (CF/88, artigo 5º, inciso II), temos que no direito público  no qual se insere o direito processual  a legalidade impõe uma discricionariedade mínima [7].

Decorrente deste preceito, o princípio do devido processo legal (CF/88, artigo 5º, inciso LIV) impõe que os atos processuais devem ser praticados/executados de acordo com a forma e a ritualística estabelecida na norma jurídica  quando esta assim o faz  e, sobretudo, em conformidade com outras garantias constitucionais (CPC/2015, artigo 1º), mesmo que não regramentadas expressamente em lei, posto serem de aplicação imediata (CF/88, artigo 5º, §1º).

Da aplicação conjunta do princípio do devido processo legal e com princípio da legalidade, deduz-se que os atos jurídicos praticados em desconformidade com a lei resultam em sua nulidade [8], ao menos em potencial perspectiva, isto porque, a despeito da importância da existência de um modelo legal e ritualístico a ser observado, este somente tem razão de existir quando destinada à proteção aos núcleos essenciais das garantias constitucionais do processo, cuja inaplicabilidade/contrariedade implicará em estado de inconstitucionalidade.

Desta forma, e tal como sucede em relação ao processo judicial, o processo administrativo não consiste em um fim próprio, mas sim em um "instrumento" para o alcance de uma "verdade" (positiva ou negativa) associada a um dos bens jurídicos tutelados pela Administração Pública, para que em decorrência desta se produzam os resultados jurídicos-materiais esperados, materializando o princípio da finalidade que, em fim, implicará na satisfação do interesse público.

Tal compreensão impõe a aplicação do princípio da instrumentalidade Processual, de acordo com qual são válidos os atos que atendam à sua finalidade essencial, ainda que praticados em desconformidade com as prescrições legais, tal como se extrai de diversos normativos processuais, a exemplo da Lei nº 9.784/99 (artigo 2º, parágrafo único, inciso VIII), do Código de Processo Civil (artigos 188 e 277) e do Código de Processo Penal (artigos 563, 566 e 572, inciso II).

Derivado deste, o princípio do formalismo moderado [9] obsta a decretação de nulidades fundamentadas em questões meramente formais que  ainda que legais  caracterizem como irrelevantes ou excessivos, ou mesmo que possam ser sanadas, tratando-se este de derivação dos princípios gerais da razoabilidade e da proporcionalidade.

Estas diretrizes principiológicas implicam em considerar as nulidades processuais como uma condição de ineficácia a ser decretada quando não atendida a sua finalidade essencial, o que supera a percepção de que as aquelas consistiriam em uma "sanção processual" que retiraria automaticamente a validade do ato defeituoso.

Naturalmente que, para fins e efeitos de aferição do atendimento ou não da "finalidade essencial" do ato processual desconforme  do que dependerá a sua validade, este não pode ser analisado de forma isolada, mas igualmente acerca da preservação ou não do núcleo essencial das garantias constitucionais do processo.

Ou seja: ainda que tenha atendido virtualmente a sua "finalidade essencial", para ser preservado, o ato defeituoso não poderá resultar em prejuízo à parte (CPC, artigos 282, §1º e 283, parágrafo único e CPP, artigo 563) ou à condução do processo [10].

Ademais, quando possível, o ato defeituoso  seja ele praticado pela Administração Pública ou pelos particulares  também estará sujeito à convalidação através da sua supressão, ratificação ou mesmo preclusão (CPC, artigo 278; CPP, artigo 571), o que implica na admissão da fungibilidade [11] e da possibilidade de saneamento de vícios formais (CPC, artigos 139, inciso IX, 352, 932, parágrafo único, 1.007, §§4º e 6º, 1.029, §3º).

Outrossim, mesmo quando decretada a sua nulidade, há de se observar a sua extensão (CPC, artigo 281; CPP, artigo 573, §1º), notadamente diante dos atos processuais supervenientes, o que resultará na aplicação do princípio da causalidade  nulidade estendida aos atos posteriores diretamente dependentes ou vinculados  e/ou do princípio da conservação — preservação dos atos processuais independentes ou desvinculados, tudo com vistas à atender ao princípio da eficiência (CF/88, artigo 37, caput) e ao princípio da finalidade, ambos pertinentes à Administração Pública.

Ao que se denota, a questão envolta das nulidades processuais  notadamente quando aplicada ao processo administrativo  está diretamente associada ao fenômeno da constitucionalização do direito, em especial do direito processual e do direito administrativo, sobretudo quanto às garantias do processo e aos princípios da Administração Pública.


[1] "Institui Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que dinamizem, unifiquem e modernizem o processo administrativo e tributário nacional".

[2] A Teoria dos Poderes Implícitos foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões (Recentemente: Tribunal Pleno, ADI 6.875, relator ministro Alexandre de Moraes, j. 21/02/2022), de acordo com a qual se compreende como "implícita" a competência para a prática de atos necessários ao exercício da Missão/Função estabelecida na Constituição Federal, desde que não expressamente vetada ou limitada.

[3] Consta o estabelecimento de "parâmetros para a consolidação de teses a serem observadas pela Administração Pública", tema sobre o qual já tivemos a oportunidade de discorrer anteriormente em artigo "Considerações sobre a inobservância pela Administração de teses fixadas pelo STF", publicado na Revista Consultor Jurídico em 11.01.22 e disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-11/opiniao-inobservancia-administracao-teses-fixadas-stf

[4] As sanções decorrentes da Tutela Penal, do Poder de Polícia e da Poder Disciplinar se inserem no Direito Punitivo do Estado, possuindo afinidades intrínsecas que lhe conhece um núcleo ontológico que lhe assegura Garantias Constitucionais em comum (CF/88, artigo 5º, incisos LIV, LV, LIV e LXXVIII) e, ainda que estes tenham se ramificados em searas autônomas, estes estão interligados por suas origens residentes na Tutela Punitiva do Estado. Inclusive, porém não menos importante, tal percepção se revela importante para a melhor compreensão acerca da posição da Tutela Penal como ultima ratio do ius puniendi, de modo que, a despeito do que dispõe o artigo 15 do CPC, compreendemos por mais adequada a aplicação supletiva e subsidiária do CPP.

[5] Por regra, todos os Princípios se encontram positivados, sendo que alguns de modo explícitos, ao passo que outros são implícitos (deduzidos a partir da interpretação isolada ou conjunta de outras disposições contidas no ordenamento jurídico), sendo ambas as categorias de igual relevância e força normativa. De acordo com Robert Alexy (Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2008, p. 90), os Princípios constituem "mandados de otimização" que constituem um dever ser abstrato e que "ordenam que algo seja realizado na maior medida possível". Nesta mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Melo destaca os Princípios como núcleo mandamental do ordenamento jurídico (Curso de Direito Administrativo, 2000, p. 748), o que lhe atribui elevado grau de imperatividade.

[6] De forma semelhante, em julgamento de grande repercussão nacional, o Supremo Tribunal Federal se dignou em realizar uma "filtragem constitucional" da Lei do Impeachment de modo que os procedimentos a serem adotados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal estejam em conformidade com as Garantias Constitucionais do Processo (Plenário, ADPF nº 378  MC, relator ministro Edson Fachin, redator do Acordão ministro Roberto Barroso, j. 17.12.2015).

[7] "A legalidade, como princípio de administração (CF, artigo 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso". Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

[8] No tocante ao Direito Administrativo, tomando-se por referência os Elementos-Requisitos básicos dos Atos Administrativos, são nulos os atos carentes de Competência; Finalidade; Forma; Motivo e Objeto.

[9] Também conhecido como Princípio do Não-Formalismo Excessivo, tal Princípio é amplamente utilizado no microssistema jurídico dos processos licitatórios  atualmente positivado nos artigos 12, inciso III, 59, incisos I e V, 71, §1º, da Lei nº 14.133/2021.

[10] Dada à dupla finalidade do processo administrativo  Defesa do Interesse Público e Proteção dos Direitos Subjetivos dos Administrados, temos que os preceitos que embasam a Teoria da Nulidade (em especial: Princípio da Instrumentalidade, Princípio da Primazia do Mérito, Princípio do Formalismo Moderado e Princípio da Finalidade) são igualmente aplicáveis aos atos praticados pelos particulares, os quais não podem ser considerados como inválidos em decorrência de irregularidades meramente formais e/ou sanáveis.

[11] No tocando à Fungibilidade Recursal, esta se encontra prevista de forma restrita no CPC (vide artigos 1.024, §3º, 1.032 e 1.032) e de forma ampla no CPP (artigos 579).

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